Blog do Flavio Gomes
Gira mondo

GIRA MONDO, GIRA

SÃO PAULO (deu certo) – Não tenho certeza se era uma carranca de boi, ou apenas um par de chifres. De todo modo, o ornamento na fachada do restaurante era impossível de não ser notado se seu lugar no banco de trás do carro ficasse atrás do assento do passageiro, que era meu caso, já […]

SÃO PAULO (deu certo) – Não tenho certeza se era uma carranca de boi, ou apenas um par de chifres. De todo modo, o ornamento na fachada do restaurante era impossível de não ser notado se seu lugar no banco de trás do carro ficasse atrás do assento do passageiro, que era meu caso, já que o irmão mais velho ficava atrás do meu pai, que dirigia, e o mais novo, no meio. A janela do lado direito era a minha, por algum desígnio quiçá divino. Sempre foi assim, o que limitava a paisagem ao que se podia enxergar à direita, e quando a Variant subia a alça de saída da grande avenida para fazer o retorno rumo ao bairro que se derramava pelo lado esquerdo, meu olhar instintivamente procurava aqueles chifres inexplicáveis que funcionavam como uma clara referência visual, um sinal de que estávamos chegando em casa.

Restaurante Dançante Bambu, informava o letreiro que eu já conseguia ler, e a construção que na minha memória era imponente, de madeira escura e telhado pronunciado, guardava alguma semelhança com as peças do meu Forte Apache, associação tortuosa estabelecida, talvez, por causa dos chifres espetados na entrada do estabelecimento, ou da chaminé de pedras. O Forte Apache também tinha casas de madeira, chaminés, bois e cavalos. Aquele lugar, no entanto, me parecia proibido para crianças porque segundo meu pai só funcionava à noite e as pessoas iam lá para dançar durante o jantar, algo que para mim fazia tão pouco sentido quanto aquela carantonha guampuda na porta.

Dia desses alguém me mandou uma foto aérea antiga da região. Não sei quando foi tirada, mas é anterior a 1968, porque meu prédio não estava lá ainda — vê-se perfeitamente o terreno onde seria construído no ano seguinte. Mas o Bambu, sim. O restaurante foi inaugurado em 1950, portanto está lá há mais de setenta anos, o que é verdadeiramente assombroso. Há alguns anos desapareceram da casa de madeira os chifres e o letreiro, a sensação de abandono era visível, mas esta semana passei por ali a pé e notei que uma reforma está sendo tocada com vigor. Fui pesquisar e descobri que o Bambu vai reabrir, não sei exatamente quando, espero que recoloquem a careta do boi e o grande letreiro, e apurei que o nome não será mudado e ele continuará dançante. Como não sou mais criança, poderei, finalmente, frequentá-lo.

À direita da construção circular, do outro lado da rua: Bambu já estava lá, na esquina

Na foto também consegui identificar, na minha rua, o bar do Márcio, o posto de gasolina que segue no mesmo lugar e algumas casas que ainda estão de pé em nosso pequeno quarteirão. Meu bairro não é particularmente afamado, embora seja vizinho da principal artéria Norte-Sul da cidade e nele eu me sinta bem por ter ao alcance da vista o aeroporto construído pela mesma empresa que fez o autódromo de Interlagos, cujo acesso se dá por esse mesmo eixo viário, assim como posso ver o prédio onde meus filhos moram, do outro lado da grande avenida, e se me deslocar para o outro lado do apartamento, o Setor Leste, consigo divisar as proximidades do galpão onde guardo meus carrinhos. Sendo assim, tenho sempre a sensação de que estou perto de tudo que me é necessário, e tem outra coisa que gosto muito, que é ver meu prédio quando chego de avião à cidade. É bom saber que ele continua lá impávido, tranquilo e infalível depois de longas jornadas por outras bandas.

Mas meu bairro, eu dizia, não é nomeadamente ilustre por não apresentar nada de especial do ponto de vista histórico e arquitetônico, embora eu considere o Bambu um símbolo citadino tão expressivo quanto a Torre Eiffel ou a Catedral da Sagrada Família, especialmente se na reforma forem recuperados os cornos bovinos do frontispício. Admito, porém, que nem todos estão preparados para reconhecer sua relevância, e por isso evito falar publicamente sobre o tema, muito menos digo que moro “perto do Bambu” como diria “ao lado do Empire States” se vivesse em Nova York, ou “vizinho da Fontana di Trevi” caso tivesse a fortuna de morar em Roma.

Imagem antiga do restaurante: faltam os chifres na fachada

Tal juízo formado sobre a singeleza do arrabalde onde me assentei há mais de uma década caiu por terra, contudo, nesta semana. Ao folhear o jornal de ontem, quinta-feira, deparei-me com uma matéria muito interessante sobre a vida de Elis Regina em São Paulo, assinada pelo jornalista Renato Contente. É um ótimo nome, Renato Contente. Elis morava num apartamento em Cerqueira César, na rua Melo Alves, quando passou mal e foi levada para as Clínicas, ali ao lado, no dia 19 de janeiro de 1982, há exatos quarenta anos. Também viveu no Centro, no Jardim América e no Brooklin. A reportagem indica um roteiro informal de sítios que tiveram alguma importância na vida pessoal e na carreira da cantora — o bar onde estreou na capital, em 1964, os teatros onde eram gravados seus programas de TV, locais onde se apresentou em shows épicos, o cemitério onde foi enterrada –, e correndo pelo texto fiquei sabendo que nos anos 70 Elis comprou um boteco para seus pais, Romeu e Ercy. “Romeu morreu em 1984, dois anos após a filha, e Ercy tocaria o estabelecimento até 1990, quando repassou o ponto para o seu então fornecedor de pães, João Batista”, escreve Contente.

O bar do Batista: local histórico

Avenida Ceci, 868, Saúde. O local é situado oficialmente na Saúde, mas todos nós, que moramos por aqui, sabemos que a Saúde é grande demais, e por isso a Ceci fica mesmo no Planalto Paulista, comedido bairro sem grandes atrações até a descoberta tardia da magnitude do bar do piauiense Batista, que trabalhava na vizinha Padaria Ceci e levava pães aos pais de Elis, e se nunca na vida tive um bar para chamar de meu, adotei o Batista quando me mudei para cá em 2010, porque o Batista pessoalmente fazia a caipirinha e o sanduíche de pernil das minhas primeiras noites solitárias nas redondezas, e hoje, quando vamos almoçar um PF nas tardes ensolaradas da metrópole, minha cearense tijucana se desborda em ternura à mesa diante das pequenas travessas com arroz, feijão, farinha e rabada, junto a uma obrigatória garrafa de tubaína e à voz inconfundível do Batista, tão inconfundível quanto a de Elis, porque são essas vozes que ficam na nossa vida.