GIRA MONDO, GIRA

SÃO PAULO (deu certo) – Não tenho certeza se era uma carranca de boi, ou apenas um par de chifres. De todo modo, o ornamento na fachada do restaurante era impossível de não ser notado se seu lugar no banco de trás do carro ficasse atrás do assento do passageiro, que era meu caso, já que o irmão mais velho ficava atrás do meu pai, que dirigia, e o mais novo, no meio. A janela do lado direito era a minha, por algum desígnio quiçá divino. Sempre foi assim, o que limitava a paisagem ao que se podia enxergar à direita, e quando a Variant subia a alça de saída da grande avenida para fazer o retorno rumo ao bairro que se derramava pelo lado esquerdo, meu olhar instintivamente procurava aqueles chifres inexplicáveis que funcionavam como uma clara referência visual, um sinal de que estávamos chegando em casa.

Restaurante Dançante Bambu, informava o letreiro que eu já conseguia ler, e a construção que na minha memória era imponente, de madeira escura e telhado pronunciado, guardava alguma semelhança com as peças do meu Forte Apache, associação tortuosa estabelecida, talvez, por causa dos chifres espetados na entrada do estabelecimento, ou da chaminé de pedras. O Forte Apache também tinha casas de madeira, chaminés, bois e cavalos. Aquele lugar, no entanto, me parecia proibido para crianças porque segundo meu pai só funcionava à noite e as pessoas iam lá para dançar durante o jantar, algo que para mim fazia tão pouco sentido quanto aquela carantonha guampuda na porta.

Dia desses alguém me mandou uma foto aérea antiga da região. Não sei quando foi tirada, mas é anterior a 1968, porque meu prédio não estava lá ainda — vê-se perfeitamente o terreno onde seria construído no ano seguinte. Mas o Bambu, sim. O restaurante foi inaugurado em 1950, portanto está lá há mais de setenta anos, o que é verdadeiramente assombroso. Há alguns anos desapareceram da casa de madeira os chifres e o letreiro, a sensação de abandono era visível, mas esta semana passei por ali a pé e notei que uma reforma está sendo tocada com vigor. Fui pesquisar e descobri que o Bambu vai reabrir, não sei exatamente quando, espero que recoloquem a careta do boi e o grande letreiro, e apurei que o nome não será mudado e ele continuará dançante. Como não sou mais criança, poderei, finalmente, frequentá-lo.

À direita da construção circular, do outro lado da rua: Bambu já estava lá, na esquina

Na foto também consegui identificar, na minha rua, o bar do Márcio, o posto de gasolina que segue no mesmo lugar e algumas casas que ainda estão de pé em nosso pequeno quarteirão. Meu bairro não é particularmente afamado, embora seja vizinho da principal artéria Norte-Sul da cidade e nele eu me sinta bem por ter ao alcance da vista o aeroporto construído pela mesma empresa que fez o autódromo de Interlagos, cujo acesso se dá por esse mesmo eixo viário, assim como posso ver o prédio onde meus filhos moram, do outro lado da grande avenida, e se me deslocar para o outro lado do apartamento, o Setor Leste, consigo divisar as proximidades do galpão onde guardo meus carrinhos. Sendo assim, tenho sempre a sensação de que estou perto de tudo que me é necessário, e tem outra coisa que gosto muito, que é ver meu prédio quando chego de avião à cidade. É bom saber que ele continua lá impávido, tranquilo e infalível depois de longas jornadas por outras bandas.

Mas meu bairro, eu dizia, não é nomeadamente ilustre por não apresentar nada de especial do ponto de vista histórico e arquitetônico, embora eu considere o Bambu um símbolo citadino tão expressivo quanto a Torre Eiffel ou a Catedral da Sagrada Família, especialmente se na reforma forem recuperados os cornos bovinos do frontispício. Admito, porém, que nem todos estão preparados para reconhecer sua relevância, e por isso evito falar publicamente sobre o tema, muito menos digo que moro “perto do Bambu” como diria “ao lado do Empire States” se vivesse em Nova York, ou “vizinho da Fontana di Trevi” caso tivesse a fortuna de morar em Roma.

Imagem antiga do restaurante: faltam os chifres na fachada

Tal juízo formado sobre a singeleza do arrabalde onde me assentei há mais de uma década caiu por terra, contudo, nesta semana. Ao folhear o jornal de ontem, quinta-feira, deparei-me com uma matéria muito interessante sobre a vida de Elis Regina em São Paulo, assinada pelo jornalista Renato Contente. É um ótimo nome, Renato Contente. Elis morava num apartamento em Cerqueira César, na rua Melo Alves, quando passou mal e foi levada para as Clínicas, ali ao lado, no dia 19 de janeiro de 1982, há exatos quarenta anos. Também viveu no Centro, no Jardim América e no Brooklin. A reportagem indica um roteiro informal de sítios que tiveram alguma importância na vida pessoal e na carreira da cantora — o bar onde estreou na capital, em 1964, os teatros onde eram gravados seus programas de TV, locais onde se apresentou em shows épicos, o cemitério onde foi enterrada –, e correndo pelo texto fiquei sabendo que nos anos 70 Elis comprou um boteco para seus pais, Romeu e Ercy. “Romeu morreu em 1984, dois anos após a filha, e Ercy tocaria o estabelecimento até 1990, quando repassou o ponto para o seu então fornecedor de pães, João Batista”, escreve Contente.

O bar do Batista: local histórico

Avenida Ceci, 868, Saúde. O local é situado oficialmente na Saúde, mas todos nós, que moramos por aqui, sabemos que a Saúde é grande demais, e por isso a Ceci fica mesmo no Planalto Paulista, comedido bairro sem grandes atrações até a descoberta tardia da magnitude do bar do piauiense Batista, que trabalhava na vizinha Padaria Ceci e levava pães aos pais de Elis, e se nunca na vida tive um bar para chamar de meu, adotei o Batista quando me mudei para cá em 2010, porque o Batista pessoalmente fazia a caipirinha e o sanduíche de pernil das minhas primeiras noites solitárias nas redondezas, e hoje, quando vamos almoçar um PF nas tardes ensolaradas da metrópole, minha cearense tijucana se desborda em ternura à mesa diante das pequenas travessas com arroz, feijão, farinha e rabada, junto a uma obrigatória garrafa de tubaína e à voz inconfundível do Batista, tão inconfundível quanto a de Elis, porque são essas vozes que ficam na nossa vida.

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Paulo
Paulo
2 anos atrás

O fechamento comparando a voz da Elis com a voz do Batista foi fenomenal.

Allphew
Allphew
2 anos atrás

Que texto delicioso! Sim, eu leio blog e adoro textão!

Matheus
Matheus
2 anos atrás

Não sei se vai ler esses comentários, mas cara, como eu amo ler esses textos. Quando escreve suas memórias e fala do passado tem quase o mesmo efeito de ouvir “In my life” dos Beatles.
Leio vez ou outra o “memórias de um dia de maio” um texto seu que tenho como meu favorito.

Não por tudo o que aconteceu naquele fim de semana narrado, mas pela história do repórter e da médica do hospital Maggiore, “esta bela médica de sorriso tímido e olhinhos espertos que um dia entrou na minha vida e, como todas as pessoas que amamos um dia, nela ficou para sempre, porque ao contrário do que já escreveram tantos, nenhum amor acaba.

Cara muito obrigado por esse texto e tantos outros!

Carlos Cintra
Carlos Cintra
2 anos atrás

Flavio, o Bambu esta em reforma desde o inicio de 2020, mas ficou parado por conta da pandemia. Agora que voltou à tona. Mas é legal ver essa foto aérea do bairro que convivo e moro há 20 anos. Eu convivo na verdade desde minha infância. Lembro da Padaria Ceci quando ainda não estava tão modernizada, com as famosas “televisões de Cachorro” com frango assado na porta. O Posto Ceci que esta la há muito tempo, e o famoso bar do Batista, foto que você postou, fora o famoso Bambu. Uma pena essa ideia de construir um shopping no terreno da Cruz Vermelha, e a degradação do prédio histórico da DF Vasconscelos (que agora é do Creci mas esta abandonado), fora a falta de segurança do bairro.

Carlos Cintra
Carlos Cintra
Reply to  Flavio Gomes
2 anos atrás

O que sei é que a associação do bairro esta batendo forte para não ser aprovada a construção desse shopping.

Luiz Roberto " Caconde "
Luiz Roberto " Caconde "
2 anos atrás

Que bom que vc voltou a escrever essa coluna. Rua Ceci, meus pais me levavam para tomar vacina em Posto de Saúde na década de 60.. Eramos morador do Jardim da Saúde.

Paulo Teixeira
Paulo Teixeira
2 anos atrás

Flávio,não entendí a foto…
não estaria invertida?

se a pista é de Congonhas,seria à direita na foto,não é?

Guilherme Coelho
Guilherme Coelho
2 anos atrás

Que maravilha de texto Flávio! Não sou natural do Planalto, mas tenho amigos que moram na região e identifico todos esses lugares. A Ceci é um caminho constante que fiz e faço pra ir do Jabaquara (onde moro) à Bela Vista onde meu pai tem comércio. Fiquei bastante identificado com os lugares. Aliás, anos atrás tive a oportunidade de apertar sua mão no shopping Ibirapuera, estava eu diante de um ídolo! Nunca pare de publicar textos no blog!

Last edited 2 anos atrás by Guilherme Coelho
Frank
Frank
2 anos atrás

Flavio que delícia de texto, morava no planalto estudava no arqui, passei centenas de vezes na frente do bambu ,sempre intrigado, quando comecei a ler o primeiro letreiro de rua que li foi panificadora Ceci. Bons tempos, aliás como esquecer loja paraíso , Sebring, Ibirapuera.,Autorama , irmao celidônio , irmao batatinha,,irmao Leao, como esquecer as domingueiras e bailes de garagem , a vida era boa.

Enio Alexandre
Enio Alexandre
2 anos atrás

Também faço isso na minha cidade. Caminho para ver o que há de pé do tempo que era criança. Meu pai tinha uma Variant branca. Rs

guest
guest
2 anos atrás

Vendo essa foto lembrei-me da música “a força da grana que ergue e destroi coisas belas”… como eram os “índios” antigamente!

jeferson de araújo pereira
jeferson de araújo pereira
2 anos atrás

Faz muiiiiiiito tempo, mas eu ainda me lembro quando passei em frente pela primeira vez e li: Restaurante Dançante Bambu. Meu primeiro pensamento foi fazer uma piada. “Como isso funciona? A comida fica “dançando” em cima da mesa???”

Depois, sem piada, e ainda analisando a “fusão” de dançar e comer em um mesmo lugar, pensei isso: “o que os clientes querem fazer aqui? Comer ou dançar? Ou ambos? E quem não sabe dançar, como é que fica?”

Leonardo
Leonardo
2 anos atrás

Meus pais moram no interior aqui no RS e, há uns meses, meu pai encontrou tubaína à venda no supermercado depois de muito tempo. Agora, tem sempre uma garrafinha de tubaína na geladeira, porque meu sobrinho experimentou e adorou.
Obrigado pelos seus textos!!

Last edited 2 anos atrás by Leonardo
Marcelo Duarte
Marcelo Duarte
2 anos atrás

Meu pai também tinha uma Variant, e eu também me sentava do lado direito.

Pedro Leonardo
Pedro Leonardo
2 anos atrás

Belo texto. Como diria aquele vampiro maldito, “tem que manter isso, viu”.

Valter
Valter
2 anos atrás

Na padaria Ceci tinha um Português que não tirava a camisa da Portuguesa pra nada.

Sueli
Sueli
2 anos atrás

Como é bom ler o que escreve, deveria ser obrigatório vc escrever pra nosso deleite todos os dias.

Last edited 2 anos atrás by Sueli