Blog do Flavio Gomes
F-1

MERCEDES W13

SÃO PAULO (prata é pop) – Acho que o mais importante na apresentação do carro novo da Mercedes, hoje, foi a volta de Lewis Hamilton ao mundo dos vivos. Sim, porque no endereço da Via Láctea registrado como Planeta Terra, neste ano da graça de 2022, só pode ser considerado vivo quem tem contas ativas […]

SÃO PAULO (prata é pop) – Acho que o mais importante na apresentação do carro novo da Mercedes, hoje, foi a volta de Lewis Hamilton ao mundo dos vivos. Sim, porque no endereço da Via Láctea registrado como Planeta Terra, neste ano da graça de 2022, só pode ser considerado vivo quem tem contas ativas (se possível verificadas) no Instagram, no Twitter e no TikTok. E Lewis, vejam vocês, desaparecera no dia 11 de dezembro depois da sessão que definiu o grid de largada para o GP de Abu Dhabi. No dia seguinte foi esfolado pelo diretor de provas Michael Masi, perdeu o título mundial para Max Verstappen e evaporou.

Só foi reaparecer em 5 de fevereiro vestindo uma calça amarela e vermelha, um moletom branco, um boné escuro, um sorriso luminoso e umas montanhas atrás. Aparentemente, o Grand Canyon. Digo aparentemente porque eu mesmo tenho uma foto antiga, de quando era criança, com neve ao fundo e um boneco com uma cenoura no nariz e cachecol enrolado no pescoço em cima de um trenó. E nunca tinha estado em nenhum lugar parecido na minha curta existência, muito menos feito um boneco de neve com uma cenoura no nariz. Nos estúdios de fotos de antigamente a gente podia escolher uns cenários assim. O que me garante que esse Grand Canyon do Hamilton aí é mesmo o Grand Canyon? Ele bem que pode ter tirado essa foto no japonês aqui perto que até hoje vive disso — suas fotos de pilotos de avião e aeromoças são incomparáveis.

Hamilton no Grand Canyon: isso aí é cenário

Reparem bem na foto, que não tem nem sombra. Está na cara que é fajuta. Mas não importa. Lewis precisava falar, hoje iria aparecer publicamente de verdade junto com o púbere companheiro de equipe e o carro com cheirinho de novo, e eu achava, como escrevi ontem, que ele não diria nada de muito importante porque a Mercedes iria distribuir algumas declarações bonitinhas e ficaria tudo por isso mesmo — fiz até um inflamado discurso sobre a demonização da imprensa e não sei mais o quê.

Pois teve entrevista de verdade, e Hamilton falou. E não foi pouco.

Primeiro, disse que nunca tinha pensado em parar de correr. Depois, contou que deu uma sumida porque precisava de um tempo para ficar com a família e os amigos, dar uma descansada, fazer um churrasco (mentira, ele é vegano), tomar uma cervejinha (não sei se é mentira, nunca vi Hamilton beber), aquela desligada que todo mundo precisa quando chegam as férias, sabe como é?

Mas não ficou nesse lenga-lenga, não. Lewis afirmou que “perdeu um pouco a fé no sistema” após a última corrida de 2021. E que, apesar disso, decidiu que não era hora de chutar o balde (“It’s not time to kick the bucket yet”, no original): “Ainda que momentos como este possam definir carreiras, me recuso a deixar que definam a minha. Então, resolvi me concentrar em ser o melhor que posso e voltar mais forte do que nunca. Coloquei toda minha energia e meu tempo nisso, em garantir que serei um piloto melhor do que jamais se viu”.

Lewis pronto pra outra: melhor do que nunca

Eu, se fosse Verstappen, ficaria com medo se ouvisse isso de um cara como Hamilton. Mas Max não deve nem ter lido nada a respeito. Seria bom que lesse, porém. Porque se se interessasse pelo que pensa o rival, entenderia que Lewis não engoliu as decisões que tiraram dele o octacampeonato. “Sei que não posso mudar o passado e nada poderá mudar o que senti naquele momento, nem como me sinto [em relação ao que aconteceu em Abu Dhabi]. Mas é bom ver que a FIA está tomando medidas para melhorar as coisas. Temos de ver ações reais. Confiança é algo que se perde num piscar de olhos, num estalar de dedos. E construí-la leva tempo. É um primeiro passo, mas não significa, ainda, que necessariamente mudou tudo.”

Lewis, claro, se referia à demissão de Michael Masi e às mudanças anunciadas pela FIA ontem na estrutura da direção de provas, que incluirá dois diretores e uma sala de controle virtual, uma espécie de VAR da F-1. “Responsabilidade é a palavra-chave. Temos de aproveitar este momento para garantir que isso não ocorra nunca mais a ninguém no esporte. Temos de ficar vigilantes e garantir que as regras se apliquem de forma justa, precisa e coerente.”

Ihhhhhhhh chamou pro pau, disse que o título de Verstappen de injusto, falou que foi roubado e xingou o outro de ladrão, ihhhhhhhhhh, agora a chapa vai esquentar!

Bom, não foi exatamente isso, mas foi. Sem citar nomes, Hamilton deixou muito claro que a aplicação das regras foi injusta, imprecisa e incoerente, que Masi é um bosta, que ficou puto dentro do macacão e que é melhor ninguém se meter a engraçadinho de novo com ele porque, se acontecer outra vez, não vai ficar quieto, não. “If they fuck me again, I’ll kick the tent pole”, teria dito fora do microfone.

Depois, aí sim citando nomes, falou de Verstappen e Latifi, o piloto da Williams que bateu nas últimas voltas em Abu Dhabi levando ao acionamento do safety-car que lhe tirou a vitória e a taça. Com o campeão, Lewis foi simpático: “Nada disso tem a ver com Max. Ele fez o que qualquer um faria naquela hora. É um grande adversário e não tenho problema nenhum com ele. Não guardo rancores”. Ao canadense, reservou empatia — Nicholas foi bombardeado nas redes sociais com ameaças e discursos de ódio. “Estive em contato com ele o tempo todo. Sei como essas situações podem ser difíceis. É importante que ele saiba que tem apoio das pessoas ao redor dele”, falou. “Existe muita paixão neste esporte, é o que o torna tão especial. Mas temos de canalizar isso de maneira positiva, não negativa.”

Na pista: Hamilton andou em Silverstone

Isso posto, vamos ao carro, que se chama W13. Que, como todos devem ter notado, não é mais preto. A Mercedes, depois de duas temporadas usando a cor do carro como forma de apoiar as ações e manifestações antirracistas deflagradas por Hamilton, retomou o prata clássico que é marca registrada da montadora desde os anos 30 do século passado. “O prateado está no nosso DNA, na nossa história”, justificou Toto Wolff, o chefe. “Assim como o preto passou a fazer parte também, e nossas ações vão nessa direção.”

Também acho que a negritude nas carenagens já cumpriu sua missão, e com louvor. Foi ato de enorme significado que chamou a atenção de todo mundo. Mas deixou de ser novidade, e assim acaba perdendo o efeito. Muito mais importante é o que a Mercedes está fazendo agora com o Accelerate 25, um programa interno que, até 2025, fará com que a equipe tenha entre seus novos contratados não menos que 25% de profissionais com origem em minorias étnicas, religiosas, de gênero ou sociais. No primeiro ano desse programa, 38% das contratações vieram desses grupos, superando as previsões iniciais. O número de mulheres trabalhando na fábrica subiu de 12% para 14% do total de funcionários. As minorias étnicas eram representadas na Mercedes por 3% dos trabalhadores, e agora são 6%.

O carro novo tem linhas bem mais convencionais que o da Ferrari apresentado ontem, por exemplo. A carenagem do motor e os sidepods possuem um formato que parece mais simples e funcional, assim como o bico (menos fino que o da F-1-75) e as entradas de ar laterais. É, por assim dizer, um automóvel discreto que combina com o estilo “menos é mais” dos prateados. Suspeita-se que novidade, mesmo, esteja debaixo do capô: o motor. A Mercedes pôde fazer uma atualização da sua unidade de potência, e o que se comenta é que será o ponto forte do time em 2022.

De perfil: carro não apresenta formas exóticas como a Ferrari

Como todo mundo, a equipe teve de partir de uma folha em branco para fazer um carro dentro do novo regulamento. “Foram 18 meses de trabalho e 98% dele não tem nada do carro do ano passado. Só o volante é o mesmo”, disse Wolff, para depois filosofar do alto dos oito títulos seguidos de Construtores que os alemães empilharam desde 2014, quando começou a era híbrida na categoria: “Nós não podemos contar com o sucesso do passado para garantir que vamos continuar vencendo, mas podemos contar com nosso pessoal, nossa cultura, nossa estrutura, nossa mentalidade de fazer sempre o melhor possível”.

Muito humilde, mas ele tem razão. A Mercedes, assim como Red Bull e Ferrari, são as equipes que mais perderam com a adoção do teto de gastos da F-1, de US$ 140 milhões anuais para as coisas referentes às fábricas e aos automóveis — salários estão fora da conta. Claro que quem gastava muito mais do que isso terá de conviver com uma realidade mais austera. Os que já trabalhavam nessa faixa orçamentária vão sentir menos dificuldades. Se a Mercedes terá de cortar a máquina de café espresso da oficina, a Alpine já passa o seu no coador faz tempo.

Para piorar as coisas na onda comunista que tomou conta da F-1, quanto mais bem classificada uma equipe num ano, menos horas de uso de túnel de vento e de programas de CFD (Computational Fluid Dynamics) terá no ano seguinte. O que significa que a Haas, por exemplo, vai dispor de muito mais tempo para desenvolver seu carro em termos aerodinâmicos do que a Mercedes.

O diretor-técnico Mike Elliott acha que, com a eliminação dos apêndices aerodinâmicos que infestavam asas, laterais e carenagens até o ano passado, o desenvolvimento dos modelos novos neste ano se dará muito mais em peças grandes e no desenho geral do carro. Por isso, o time se concentrou mais em realocar de forma bem compactada os componentes internos sob a cobertura do motor do que em grandes arroubos de design.

As suspensões foram redesenhadas, o que todo mundo fez por causa das novas rodas, e os estudos de rendimento do motor com a Petronas foram intensificados, já que neste ano o combustível vai receber 10% de etanol — a ideia da F-1 é usar 100% de combustíveis renováveis em 2026. Os pneus novos, para rodas de 18 polegadas, não preocupam tanto. Ao contrário. Eles não superaquecem como os que vestiam as rodinhas de 13 polegadas, e por isso serão mais fáceis de administrar ao longo das corridas.

Depois de cinco anos com Valtteri Bottas ao seu lado, sujeito calmo, pacato e camarada, Hamilton terá como companheiro em 2022 o espevitado George Russell. Não é propriamente um desconhecido. O inglês chegou à Mercedes no começo de 2017 para integrar o grupo de jovenzinhos promissores do time. Naquele ano mesmo foi campeão da GP3 e no seguinte ganhou o título da F-2. Então, foi alocado por três temporadas na Williams, onde mostrou seriedade e talento, foi lapidado e ganhou experiência.

O caminho natural de Russell era mesmo virar titular da Mercedes, agora que a equipe precisa preparar um sucessor para Lewis — que tem 37 anos, mais dois de contrato e não é eterno, como os diamantes. Se não se meter a tratar o parceiro multicampeão como adversário, vai se dar bem. George terá de entender, ao menos no começo dessa caminhada, que está lá para aprender e ajudar. Depois, quando Hamilton parar, será livre para voar como bem entender.

Sobre o nome do carro, que é algo que vocês sempre perguntam, essa é fácil. No começo do ano, em conversa telefônica com Hamilton, que passava uns dias em São Bernardo do Campo, Toto perguntou, em inglês, quem iria ganhar as eleições no Brasil (“who wins?”), país tão caro ao piloto, como se sabe.

“Wins 13”, respondeu Lewis.