Blog do Flavio Gomes
F-1

AUSSIES (4)

SÃO PAULO (shit happens) – “Max Verstappen não ganha o GP da Austrália”. Essa seria a manchete que eu usaria na edição de segunda-feira do meu jornal, se jornais ainda existissem. É verdade que no nosso ofício, aprendemos que títulos de reportagens não devem ter formulações com negativas — se algo não aconteceu, é porque […]

Leclerc festeja com Sainz, o vencedor: dobradinha da Ferrari

SÃO PAULO (shit happens) – “Max Verstappen não ganha o GP da Austrália”. Essa seria a manchete que eu usaria na edição de segunda-feira do meu jornal, se jornais ainda existissem.

É verdade que no nosso ofício, aprendemos que títulos de reportagens não devem ter formulações com negativas — se algo não aconteceu, é porque outro algo ocorreu, e sendo assim por que não dizer logo o que foi? Porque, no caso em questão, Verstappen não ganhar uma corrida é mais notícia do que qualquer outro vencer. Pois me desculpe o vencedor da corrida de Melbourne, Carlos Sainz. Seu nome nas páginas do meu jornal iria para o que a gente chamava de “linha fina”, o subtítulo que complementa a informação mais relevante para o leitor. Então, abaixo da manchete “Max Verstappen não ganha o GP da Austrália”, eu, como bom editor, acrescentaria: “Holandês tem problema no freio e Ferrari faz dobradinha com Sainz e Leclerc; Norris completa pódio”.

Essas duas frases resumem bem o que foi a terceira etapa do Mundial de F-1 no circuito de Albert Park. O piloto da Red Bull só não levou mais uma porque teve um raro problema técnico em seu carro logo nas primeiras voltas, deixando o caminho aberto para o grande destaque do fim de semana. Sainz, ainda convalescendo da cirurgia de apêndice de duas semanas atrás que o tirou do GP da Arábia Saudita, treinou e correu com dores, conseguiu um belo segundo lugar no grid e acabou vencendo.

De qualquer forma, Sainz merece aplausos, sim. Não só pelas condições físicas precárias que enfrentou para correr na Austrália, como também por ser o único piloto a vencer nas últimas 26 corridas da F-1 sem vestir o macacão da Red Bull. Desde o GP de Abu Dhabi de 2022 o time austríaco só perdeu duas provas, ambas para o espanhol. Aquela corrida aconteceu num 20 de novembro. O que significa que em 855 dias contados a partir daquela data o único piloto capaz de bater a equipe dos energéticos foi ele. Com o detalhe adicional de que Sainz é, hoje, um piloto sem carro para 2025, já que será substituído por Lewis Hamilton na Ferrari no ano que vem.

Mas não faltará lugar para o intérprete de “Smooth Operator”, canção cujo refrão costuma cantarolar pelo rádio quando consegue um resultado digno de ser comemorado. Como foi a vitória de Melbourne na madrugada de hoje, com uma atuação segura e sem erros, ainda que não se deva ignorar, claro, que tenha sido facilitada pelo abandono de Verstappen.

Largada em Melbourne: Max sustenta a ponta, mas por pouco tempo

O GP da Austrália foi disputado com sol, céu azul e 20°C de temperatura, sob comemoração dos organizadores da prova que contabilizaram a presença de 452.055 torcedores nos quatro dias do evento, recorde de público para corridas no país.

Verstappen largou muito bem, mas já na segunda volta, com muito apetite, Sainz passou o holandês e assumiu a liderança. “Está esquisito…”, falou Max pelo rádio, sem entender direito o que se passava com seu carro. E estava mesmo. Aí começou a sair fumaça da roda traseira direita e, para espanto geral de todos no autódromo, a clara constatação: o RB20 quebrou!

Max parou no box na quinta volta e os mecânicos da equipe cercaram seu carro com extintores de incêndio. O freio chegou em chamas no pit lane. E o abandono, quase inacreditável, estava consumado. O primeiro de Verstappen desde o GP da Austrália de 2022. Foram 43 corridas seguidas vendo a bandeira quadriculada, 35 delas em primeiro lugar, 39 no pódio, todas nos pontos. Dentro da garagem, a TV mostrou o piloto irritadíssimo. E ele explicou o motivo depois. “Quando parei com o freio pegando fogo, vieram no carro como se eu fosse fazer um pit stop. Que sentido fazia um pit stop com o carro daquele jeito?”

Depois, mais calmo, explicou que o problema foi notado assim que a corrida começou. “Desde a largada percebemos que tinha algo errado. Foi como andar com o freio de mão puxado, por isso logo no início percebi que o carro estava muito estranho em algumas curvas. São coisas que acontecem, a gente fica triste, mas este ainda é um esporte mecânico. É uma pena, porque tínhamos a chance de ganhar. O importante agora é descobrir o que aconteceu para não acontecer de novo.”

No panic, como dizem na Inglaterra.

Sainz na liderança: controle da corrida

Na oitava volta, Hamilton, que largara com pneus macios, foi para os boxes e colocou os compostos mais duros da Pirelli. Na nona, Russell fez o mesmo, mas tinha largado de médios — como quase todo mundo. Na décima vieram Leclerc e Piastri. Sainz, na liderança, já tinha quase 5s de vantagem para Norris. Pérez era o terceiro graças às paradas dos que estavam à sua frente, com Alonso em quarto e Hülkenberg em quinto – esses dois largaram com pneus duros e deixaram para trocar mais tarde.

Pelo rádio, a Ferrari orientava Sainz com boa parte do alfabeto, citando planos A e B em uma dúzia de voltas. O espanhol, talvez confuso com a sopa de letrinhas, decidiu acelerar, apenas. Leclerc e Piastri, com pneus novos, deixaram o alemão da Haas para trás sem muita dificuldade e foram em busca de seus sonhados troféus, estimulados pela ausência de Verstappen da corrida.

Na volta 15, Norris e Pérez, segundo e terceiro, fizeram seus pit stops. Alonso subiu para segundo. Àquela altura, apenas Sainz e Gasly, este em sétimo, tinham pneus médios. Os dois, mais Alonso e Hülkenberg, eram os únicos que ainda não tinham parado para trocar pneus.

Alonso: estratégia de parar mais tarde para tentar alguma coisa

O líder trocou os seus na volta 17. No mesmo momento, Hamilton quebrou de repente: motor. Alonso passou à ponta, com Sainz em segundo. Um safety-car virtual foi acionado para que a Mercedes #44 fosse retirada da pista. O espanhol da Aston Martin, então, aproveitou para ir aos boxes e colocou pneus médios. Voltou em quinto, atrás das duplas de Ferrari e McLaren – a ordem era Sainz, Leclerc, Piastri e Norris; o australiano, em sua parada, ganhou a posição do companheiro papaia.

À Red Bull, restou depositar suas esperanças em Pérez, que depois das paradas se colocou em sétimo. E à Ferrari, rezar para que Leclerc e Sainz não se pegassem de tapa. Isso porque o monegasco começou a se aproximar do espanhol perigosamente. Naquele momento, Carlos tentava lembrar quais seriam os planos C, D e E, que certamente seu engenheiro indicaria em algum momento. Na dúvida, mais uma vez, apenas acelerou. Foi o plano que deu certo.

Pérez ganhou a sexta posição na volta 21, passando por Russell com facilidade. E saiu à caça de Alonso. Fechando a zona de pontos, de oitavo a décimo, apareciam Stroll, Tsunoda e Albon – com o carro de Sargeant, que não largou porque teve de ceder a viatura ao companheiro depois do acidente do tailandês na sexta-feira. Pelo menos até ali a aposta da Williams em Alex se mostrava certeira.

Sorriso no pódio: terceira vitória na carreira

Pérez assumiu a quinta posição na volta 28, passando por Alonso também sem dificuldade. Mas não conseguiu escapar e teve de aguentar, por um tempo, o asturiano em seus retrovisores. Lá na frente, Leclerc acabou mesmo não conseguindo atacar Sainz. Na metade da prova, 29ª volta, o espanhol já tinha mais de 5s sobre o companheiro. E foi nesse momento que a McLaren mandou Piastri deixar Norris passar, porque o inglês vinha mais rápido e teria como atacar a Ferrari #16. A torcida australiana não gostou. Mas pelo ritmo de Lando, a ordem fazia algum sentido, por mais antipática que fosse. Nem Piastri reclamou. “Era o certo a fazer”, disse.

Norris assumiu a segunda colocação sem ter de passar Charlinho, que foi para os boxes na volta 35. Voltou em quarto, exatamente na frente de Pérez e Alonso, que continuavam brigando separados por menos de 1s. O mexicano, então, parou pela segunda vez. Voltou em nono. Tanto ele quanto Leclerc seguiram com pneus duros.

Norris: ritmo mais forte que Piastri o levou ao pódio

Piastri, então terceiro, foi para seu segundo pit stop na volta 40. Norris, segundo, na 41ª. Sainz seguia tranquilo na ponta, mas a Ferrari demorava para chamá-lo para trocar pneus. Leclerc, que já tinha trocado, recuperou o segundo lugar quando o #4 da McLaren parou. E, finalmente, Sainz foi para os boxes na 42ª. A parada foi tranquila e o espanhol voltou ainda na liderança, agora 6s à frente do companheiro. Alonso também foi para os boxes e voltou em sétimo, longe de Pérez.

Faltavam 15 voltas e todos os pilotos na pista já tinham feito dois pit stops. A exceção era Russell, quinto colocado, com uma troca apenas. Sainz, Leclerc, Norris e Piastri eram os quatro primeiros. George parou na volta 46 e voltou em sétimo, atrás de Alonso.

E foi essa a última boa briga da corrida, com Russell alcançando El Fodón do Carro Verdón na volta 55, a três do final. Que terminou com uma batida forte do piloto da Mercedes na última volta, levando a corrida a ser encerrada com o safety-car virtual acionado. Ele perdeu a traseira na curva 6 e bateu forte no muro, destroçando seu carro, que ficou tombado sobre os próprios pneus no meio da pista.

Russell tombado: batida na última volta

Alonso foi chamado pelos comissários por suspeita de “brake test” com Russell. Teria tirado o pé de propósito para assustar o piloto da Mercedes. Este evitou culpar o veterano bicampeão, mas falou que o rival, sim, freou uns 100 metros antes do normal no ponto em que bateu, algo que não estava esperando. “Por isso é bom esclarecer as coisas”, completou. O espanhol alegou que tinha problemas para recarregar a bateria nas últimas voltas e que não estava olhando para trás no momento, e sim para a frente.

Sainz venceu, com Leclerc em segundo e Norris fechando o pódio. Piastri, Pérez, Alonso, Stroll, Tsunoda, Hülkenberg e Magnussen completaram a zona de pontos (veja a atualização abaixo, na caixinha verde). Charlinho fez a melhor volta da corrida e levou o ponto extra. Destaques na turma do fundão para o japonês da Tem de Digitar a Senha, em oitavo, e a dupla da Haas em nono e décimo. Albon acabou em 11º. Foi uma linda vitória do espanhol, a terceira de sua carreira – antes vencera na Inglaterra em 2022 e em Singapura no ano passado.

ATUALIZAÇÃO – Os detalhes virão na próxima postagem, mas horas depois da corrida Alonso levou 20s de punição por “pilotar de forma potencialmente perigosa”, na opinião dos comissários em Melbourne. Caiu do sexto para o oitavo lugar. Stroll subiu para sexto e Tsunoda, para sétimo. Mas já antecipo que, na minha visão, a punição é injusta. Um piloto tem o direito de defender sua posição, ainda que desacelerando um pouco antes como fez Alonso — que se justificou dizendo que tinha problemas no acelerador e precisava carregar a bateria para sair mais forte da curva; tem cara de cascata, porque foi a única vez que isso aconteceu naquele ponto, de acordo com a investigação dos comissários. Mas ele não enfiou o pé no freio no meio de uma reta, o que caracterizaria um “brake test” — como fez Verstappen com Hamilton em 2021 na Arábia Saudita. Poderia se defender também, sei lá, freando mais dentro das curvas. Como diz o Tadeu Schmidt, “a estratégia é de vocês”. Fernandinho usou de malícia, experiência. Russell se atrapalhou atrás dele, reagiu tarde. Poderia tentar a ultrapassagem ao perceber que o espanhol tinha diminuído a velocidade. Pilotos fazem isso o tempo todo, faz parte do jogo, em qualquer categoria. Cabe a quem está atrás prestar atenção, evitar uma batida, aproveitar uma eventual chance de passar se o rival diminuir sua velocidade deliberadamente. O que fez Senna em Mônaco/1992 contra Mansell? Estava na frente, brecava onde queria, acelerava onde achava que devia. Nigel que se virasse atrás dele. Ninguém reclamou. Muito menos o inglês. O cara da frente não é obrigado a acelerar 100% sempre, pode usar tais recursos para induzir o adversário ao erro, desde que isso não gere nenhuma situação de risco. “Ah, mas Russell bateu!” Bateu porque, como ele mesmo disse, “fui pego de surpresa, não estava esperando”. Pois que espere, da próxima vez. Corrida de carro não é videogame. Não cabe a comissários esportivos determinarem como um piloto tem de pilotar, onde deve frear, onde acelerar. Não há nada no regulamento que obrigue alguém a fazer todas as voltas de um GP freando e acelerando sempre no mesmo ponto. Isso é ridículo.

E as entrevistas pós-corrida foram conduzidas, vejam só, por Günther Steiner, ex-chefe da Haas e agora comentarista da RTL alemã. Começou perguntando a Sainz como ele se sentia vencendo uma prova duas semanas depois de ser operado. “A vida é uma montanha-russa”, filosofou o ferrarista. “Estou muito feliz e orgulhoso. Recomendo a todos os outros pilotos que tirem o apêndice, a gente fica mais rápido”, brincou. Leclerc disse que seu companheiro mereceu a vitória: “Carlos teve um fim de semana incrível. Estou muito feliz por ele e pela equipe”.

Sainz levou a bandeira espanhola para o pódio e festejou com algum comedimento, já que ainda sente dores e se recupera da cirurgia de Jedá. Na plateia, seu pai Carlos, um dos grandes pilotos de rali da história, não escondia o orgulho no olhar. Os mecânicos da Ferrari cantaram o hino italiano a plenos pulmões, tirando enorme peso dos ombros. Foi a 86ª dobradinha da equipe na história. A última fora registrada no Bahrein em 2022, com Leclerc em primeiro e Sainz em segundo.

Resultado final: abandonos de dois campeões mundiais

Depois de três corridas, Verstappen segue na liderança do Mundial com 51 pontos, seguido por Leclerc (47), Pérez (46), Sainz (40) e Piastri (28) nas cinco primeiras posições. Entre as equipes, a Red Bull tem 97, contra 93 da Ferrari e 55 da McLaren.

A próxima etapa do campeonato acontece no Japão, daqui a duas semanas.