Blog do Flavio Gomes
Turismo

BERLIM, ALEXANDERPLATZ

BERLIM (dormir, mais tarde) – O que mais gosto em Berlim é a Alexanderplatz. E o que mais gosto na Alexanderplatz é o Homem-Salsicha. O cara que vende bratwurst com pão e mostarda carregando a grelha apoiada na barriga por um euro e vinte centavos. Deve ter em outras cidades, também. Mas eu sempre vi os […]

BERLIM (dormir, mais tarde) – O que mais gosto em Berlim é a Alexanderplatz. E o que mais gosto na Alexanderplatz é o Homem-Salsicha. O cara que vende bratwurst com pão e mostarda carregando a grelha apoiada na barriga por um euro e vinte centavos. Deve ter em outras cidades, também. Mas eu sempre vi os Homens-Salsicha aqui, então que seja Alexanderplatz o planeta natal dos heróis berlinenses. Minhas refeições hoje foram fornecidas pelos Homens-Salsicha. Três, com intervalos de 10 minutos entre elas.

Gerd foi conhecer o Muro de Berlim pela manhã. O dia estava frio e cinzento. Choveu, parou, choveu, parou. Estou bem perto de onde ficava o Muro, e andaram colocando umas réplicas de pedaços famosos ao longo da linha de trem, com pinturas clássicas que ficavam do lado de lá. Estacionei o carrinho atrás de outro Trabant. Era de uma empresa de turismo que faz um tour pela cidade e chama o passeio de safári.

Safári é na selva. Tontos.

Parei o carro, saí para sacar uns retratos e imediatamente chegou gente para tirar fotos do Gerd. É que não hão mais Trabants em Berlim. Pausa para o “hão”. O verbo haver é até hoje ranqueado na minha mente deturpada como a maior decepção gramática de todos os tempos. Aos sete ou oito anos, depois de aprender sua conjugação pervertida, escrevi uma redação na escola  e usei “hão”. “No limoeiro hão limões”, algo assim. A professora corrigiu. Haver não flexiona. Como, não flexiona? O que é flexiona? Fiquei com raiva da professora, do verbo e dos limões. Nunca mais escrevi hão. Resolvi escrever hoje.

(Vou pegar uma cerveja.)

Como não hão mais Trabants em Berlim, todo mundo olha para o Gerd. Até a turma do safari, que veio em bando logo depois. Entrei na fila. A menina que dirigia o primeiro, uma peruinha, ficou feliz da vida ao ver um Trabi autêntico, dirigido por um alemão autêntico (eu), sem carregar turistas apertados no banco de trás.

Me mandei para Friedrichstrasse. Sempre tem, hão, novidades perto de Checkpoint Charlie, o posto de fronteira mais popular daqueles tempos, onde um dia a URSS meteu dez tanques de um lado e os EUA enfiaram mais dez do outro, e ficaram se olhando por 14 horas, ou 16, sei lá quantas, um país rosnando para o outro, e depois foram todos embora, coisa mais sem graça da porra.

Antigamente tinha mais ambulantes vendendo pedaços do Muro em Checkpoint Charlie. Hoje eram três, só, e nem pedaço do Muro vi. Só chapéus russos e uniformes falsos da polícia alemã-oriental. Os camelôs já não são mais os mesmos. E a área estava infestada por ciganos infantis, romenos, talvez, que perguntavam a todos “do you speak English?”, e todos diziam “no, I don’t”, e eles iam embora.

Entrei no museu de Checkpoint Charlie para ver as últimas. Gosto desse museu, e de ler nas paredes as histórias dos caras que conseguiram fugir de Berlim Oriental por túneis, ou com aviões construídos no fundo do quintal, ou escondidos dentro do painel de carros. O Muro foi uma medida extrema do governo da DDR (doravante assim será chamada a República Democrática da Alemanha, RDA em português), erguido em 13 de agosto de 1961 com arame farpado, porque desde a criação do país, em 1949, 2,5 milhões de cidadãos haviam se pirulitado para o lado ocidental via Berlim-idem. A economia estava indo para o saco. No dia 14, 65 mil berlinenses orientais saíram de casa para trabalhar do outro lado e não puderam atravessar. Só em 1963 que o governo da DDR passou a permitir visitas de parentes, e acho que o resto todo mundo sabe — Gorbatchov assumiu em 1985, viu que a URSS estava quebrando, começou a abrir a economia, e os satélites fizeram o mesmo, até a dissolução da Cortina de Ferro e de nações inteiras, algumas artificialmente coladas com Super Bonder, como a Checoslováquia e a Iugoslávia.

O Muro começou a cair graças aos movimentos apoiados pela igreja na Alemanha Oriental. Não houve violência, os coroinhas e os padres resolveram a parada. Leipzig foi a primeira cidade a se manifestar em massa pacificamente, e no dia 9 de novembro um pica-grossa do Partido anunciou mudanças nas regras de entrada e saída de Berlim Oriental, dando uma certa relaxada no negócio, e aí escorregou nas palavras ao dizer que uma dessas novas medidas tinha efeito imediato. “Efeito imediato” para a turma do Leste louca por uma calça Levi’s era imediato mesmo. Arrebentaram o Muro e acabou tudo. Foi a maior festança. Vai fazer 20 anos.

Mas a Alemanha Oriental, como dizem por aqui, fica cada vez melhor, na medida em que passa o tempo. Tem muita gente com saudades do regime estável, seguro, sossegado e, de certa forma, ingênuo da DDR. Tirando a Stasi, que pentelhava todo mundo e transformava cada cidadão num delator em potencial, e os guardas de fronteira, que mataram 125 (algumas fontes falam em 92) pessoas que tentaram atravessar o Muro na marra, a Alemanha Oriental era uma boa ideia. Que deu errado, claro, porque num mundo comandado pelo mercado e pelo capital, mesmo um país que despreza ambos se fode de canudinho.

Os alemães orientais têm uma imagem meio cinzenta por conta da propaganda anticomunista que martelou nossos doces lares durante décadas, mas não se enganem. Eram divertidos e adoravam uma sacanagem. Foram os maiores nudistas de todos os tempos em todos os reinos e impérios. No verão, se mandavam peladões para as praias do Báltico e não queriam nem saber. Há estatísticas, não sei de onde tiram esses números, que dizem que 10% dos habitantes da DDR eram naturistas juramentados e praticantes, e que 80% da população tirou a roupa na praia ou no lago pelo menos uma vez na vida.

Ninguém reprimia os peladões. Ainda bem. Os livros de fotos dessa época, anos 70/80, são melhores que qualquer “Playboy”… As meninas do Leste eram muito sorridentes, interessantes e atléticas. E peludas.

A DDR me interessa bastante, não só pelos carros e pelas loiras peladas e peludas. É um negócio tão recente e absurdo do ponto de vista ocidental que me espanto o tempo todo ao lembrar que há apenas 20 anos o mundo era dividido em dois pelo Muro que hoje é vendido aos pedaços nas lojas de souvenir.

Ao sair de Checkpoint Charlie, fui a um museu muito interessante, o DDR Museum, que foi eleito o “museu do ano” da Europa em 2008. Pequeno, na beira do Spree, mas muito carinhoso e bem montado. Não faz apologia de nada, apenas mostra como era diferente a vida na Alemanha Oriental, como era possível viver com uma ou duas marcas de pasta de dente e sabonete, como as pessoas aprenderam a se virar diante da escassez, como o governo se empenhava na educação das crianças desde os 11 meses de vida, em prover habitação e pleno emprego, em promover a amizade entre os trabalhadores, a simplicidade como “way of life”, se é que me entendem.

Claro que os dirigentes do Partido eram filhos da puta, como quase sempre, mas no geral as pessoas viviam bem, sem grandes sustos, casavam, tinham filhos, esperavam seus Trabants, tiravam a roupa na praia no verão, faziam esporte, trepavam, iam à escola, ficavam gratos quando saía a chave de seu apartamento novo. Se não dava para limpar a bunda com papel Neve perfumado de folha dupla, me parece que não era algo que incomodasse demais. Tinha cerveja, salsicha, bar, automóvel, trabalho, escola, teto, bonde, trem, ônibus, cigarro, camisinha, café, loja de departamentos, mercadinho, banda de rock (procure no Google a Puhdys, que vendeu 15 milhões de discos, de acordo com o museu), discoteca, festival, campo de futebol, piscina, roupa nova (de tecido sintético, porque era difícil arrumar algodão; e quem desenhava os modelitos era o Modeinstitut Berlim, até isso o governo fazia, o que livrava o povo de coisas como a São Paulo Fashion Week e seus estilistas afetados), aparelho de TV coloridos, revistas jornais, emissoras de rádio, cinema, universidades.

Uma das críticas que fazem ao antigo regime diz respeito à doutrinação da molecada com ideias marxistas-leninistas desde cedo nas escolas, como se fosse um pecado ensinar aquilo em que se acredita. O que se faz numa escola brasileira hoje desde pequeno? Ensina-se a competição, o mata-primeiro-senão-ele-te-come-no-mercado-de-trabalho, a dar valor ao dinheiro, ao ter, ter mais sempre, e o que é isso que não uma doutrina escroto-capitalista que enfiam na cabeça das crianças mal elas saem das fraldas? Rotos falando de esfarrapados.

Gerd ficou boa parte do dia protegido do frio cortante deste outono gelado numa garagem subterrânea perto da ilha dos museus e eu fui bater perna mal agasalhado porque não esperava este clima glacial. Amanhã vou descer para Dresden, tomara que melhore um pouco. De noite, encontramos um amigo meu e o amigo do meu amigo, e fomos tomar uma cerveja num bar legal de Friedrichshain , a Vila Madalena do lado oriental. Na minha cabeça, ainda há dois lados. E quem conhece Berlim sabe bem onde começa um e termina o outro, mesmo sem Muro. Todos os três quisemos nos casar com a garçonete, cheguei a pedir ao Maurício para avisar minha família que iria fixar residência aqui depois que esbarrei o cotovelo sem querer na bunda da moça.

Deixei a dupla perto da Alexanderplatz e fui dar uma volta pelo Ocidente. Passei pelo Portão de Brandenburgo (por fora; não passa mais carro ali), pelo Reichstag, segui pela Unter den Linden, margeei o Tiergarten e fui fazer a volta só em Charlottenburg, para acabar a noite num simpático Hooter’s debaixo da linha de trem comendo frango frito apimentado, essas coisas americanas têm alguma serventia, afinal, porque já estava tudo fechado do lado de cá.

Gerd me esperava sossegado na vaga no meio da avenida, sozinho, o sereno cobrindo seu teto de fibra de algodão e plástico e os vidros da frente e de trás. Dizem que na DDR se esperava por um Trabant por 16 anos. O nome quer dizer “companheiro” (na verdade verdadeira, “satélite”, mas pode ser entendido como “companheiro”, também, dependendo do contexto), e os carrinhos acabavam virando mesmo parte da família, porque ninguém trocava todo ano. Era para a vida toda. A temperatura estava em seis ou sete graus. Liguei o motorzinho de 600 cc e coloquei seus 26 bravos HPs em marcha. Do lado da torneirinha da gasolina tem um botão do sistema de aquecimento. Puxei, tremendo.

O calor vindo não sei de onde, daquele botão mágico, talvez, me invadiu e eu disse obrigado a Gerd, um bom parceiro.