Blog do Flavio Gomes
Turismo

BLOK NA POKUTU

  PRAGA (acontece) – Era questão de tempo. Praga é uma cidade cheia de placas de proibido. O centro é muito antigo, as ruas são estreitas e em muitas delas só passam bondes. Cheguei de noite, sem mapa, confiando no meu senso de direção (que nem estava tão errado assim), mas acabei entrando numa rua […]

 

PRAGA (acontece) – Era questão de tempo. Praga é uma cidade cheia de placas de proibido. O centro é muito antigo, as ruas são estreitas e em muitas delas só passam bondes. Cheguei de noite, sem mapa, confiando no meu senso de direção (que nem estava tão errado assim), mas acabei entrando numa rua exclusiva para bondes. Isso acontece direto, e não é por mal. É que às vezes não tem outro jeito, ou você entra, ou vai parar na Ucrânia. Aí é batata. No Leste, sempre aparece um policial. No meu caso, nem foi preciso esperar muito. O Barkas (não era um Barkas, é licença poética; era uma van Renault, ou Fiat, algo assim) já estava parado na minha frente, multando um carinha local. O guarda olhou para Gerd, para mim, e me mandou parar, claro.

Não falo checo. Ninguém fala checo, nem húngaro. Nem os checos e os húngaros. É uma brincadeira desses eslavos. Eles devem falar português, entre eles. Mas quando dão com um turista, desatam a falar com acentos nas consoantes. É impossível compreender um idioma que coloca acentos nas consoantes.

Algumas palavras, no entanto, são universais. Passaporte é uma delas. Tive experiências ruins em Budapeste, anos atrás, com policiais. Eles viviam extorquindo todo mundo no fim de semana de GP. Pediam o passaporte, falavam um monte de coisa em húngaro, você ficava olhando para a cara do sujeito e quando ele terminava, dizia “hã?”, e aí eles avisavam, em inglês, que o passaporte ficaria retido até segunda ou terça-feira, e aí batia o desespero, a gente voltava na segunda, não podia perder o avião, então rolava uma negociação escusa e saía uma pilha de forints para os filhos da puta. Ainda bem que forint nunca valeu muita coisa.

Depois da primeira, nunca mais saí com passaporte em Budapeste. Na rua, era um apátrida. “Passaporte?”, pedia o policial (todo ano tinha extorsão; o capitalismo adora uma extorsão). E eu dizia que não tinha. Ai desarmava o cara. Ele ia me tomar o quê? O carro? Pode levar, é alugado. Me prender, não ia. Encrenca, enchição (ou “encheção”? Acho que nenhuma das duas existe) de saco. Mandava ir embora, xingando em húngaro, a língua do capeta.

Bem, o policial que me mandou parar era um gordinho com cara de simpático, Gerd é simpático, embora ele nem tenha olhado para o carro, só se preocupou com o fato de eu estar nos trilhos do bonde, pegou o passaporte, a carteira de motorista e me mandou estacionar ali do lado. Estávamos atrás de uma igreja, o cara não iria ser filho da puta atrás da igreja. Em Budapeste, os policiais levavam a gente para os fundos do Parlamento para tomar a grana. Atrás do Parlamento faz sentido ser filho da puta.

O guarda gordinho me disse meio indignado que eu não poderia andar em rua exclusiva para bonde. Foi o que entendi de seu discurso em checo. Mil coroas, determinou, em inglês. One thousand koronas. Isso eu entendi. Tinha acabado de chegar, não havia trocado dinheiro. Maquininha de cartão de crédito ele não tinha. Euros? Aliás, o euro é um negócio interessante. Moeda única de vários países, mas em nenhum se fala euro do mesmo jeito. Na Alemanha, é “óirro”, na França, “orrô”, na Inglaterra (acho que por isso eles continuam com as libras), “íuros”, na Itália, “êeuro”.

Não, ele não aceitava euros, e além do mais não sabia o câmbio. Porra, mil coroas? Quanto é isso? O gordinho não sabia. O diálogo era amistoso. Ele não queria me foder. Falei que estava perdido e mostrei o endereço do hotel. Mas essa era uma segunda etapa. Primeiro, eu precisava pagar a multa. Cash machine, ele teve a ideia. Aprovei. Onde tem? Ali, na frente da igreja. OK, eu disse. Espera aí, não vai embora. Eu estava espantado com o fato de o gordinho querer apenas receber a multa. Não perguntou nada do Trabi, não achou esquisito um cidadão brasileiro com um Trabant emplacado na Alemanha rodando na rua dos bondes em Praga. Fosse eu o policial, já teria me algemado.

Fui buscar a grana. Mas liguei para o hotel e perguntei para o cara que atendeu quanto dava mil coroas. Uns 40 euros, ele disse. OK, não é nenhum absurdo. Saquei duas mil coroas, voltei, entreguei o dinheiro, assinei a multa e ele me deu o recibo. Dois recibos. Acho que foram duas multas. “Blok na pokutu”, estava escrito nos dois canhotos. Devo ter feito algo grave. Blokei na pokutu.

Estava encerrada a primeira parte. E agora?, perguntei. Como vou para o hotel sem passar pelas ruas exclusivas de bondes, ou de charretes, ou de bicicletas. Um mapa!, o gordinho exclamou, e pegou dentro do furgão um desses para turistas. Rabiscou aqui, ali, indicou com a mão, e eu fiz “hã?”.

Era um caso perdido. O gordinho sabia que se eu saísse sozinho dali, blokearia várias vezes na pokutu, e estaria fodido. Vem atrás de mim, falou. E foi assim que Gerd teve sua primeira experiência no estrangeiro, foi escoltado pela polícia checa até um ponto em que já dava para seguir o mapa, e o gordinho se despediu com simpatia e alguma pena do brasileiro no Trabant.

Estive em Praga no ano passado por alguns dias e conheço o que tem para conhecer na cidade, então hoje era só uma escala rápida, mesmo, porque amanhã vou para Brastislava, na Eslováquia. Passei o dia em Dresden, meio trabalhando, meio na folga. Acordei bem cedo para ver a porcaria da corrida de Suzuka, escrevi o que tinha de escrever para os jornais e me mandei para o centro velho da cidade, que só tinha visto de passagem, à noite.

Fazia frio, chovia e parava, às vezes saía o sol, guardei Gerd num estacionamento subterrâneo e saí para passear pelos calçadões. Dresden tem mais de 800 anos e um monte de histórias, mas são as mais recentes que me importam, e por isso é impressionante olhar para a cidade sabendo que ela foi completamente destruída na Segunda Guerra. Depois de 13 de fevereiro de 1945 (falei disso ontem), a capital da Saxônia foi transformada num monte de entulho com milhares de cadáveres por baixo. Entrei num museusinho bacana, o Verkehrs Museum, que conta a história do transporte na região. Tem vários carros, bondes, trens, aviões, bicicletas, motos, maquetes, miniaturas, máquinas, equipamentos, tudo muito bem montado, merece a visita. No terceiro andar, um cineminha mostrava a história da cidade num filmete de uma hora. Entrei para ver. As imagens da reconstrução são inacreditáveis. Logo depois dos bombardeios, milhares de pessoas passavam os dias nas ruas, removendo escombros em mutirões, homens, mulheres, velhos e velhas, sem tempo para chorar os mortos.

A igreja mais importante da cidade acabou de ser reconstruída há poucos anos. Foi o símbolo do renascimento de Dresden. As poucas pedras originais foram catalogadas uma a uma e usadas na nova. São as mais escuras numa dessas fotos aí. Aliás, tudo que é escuro é o que restou dos bombardeios. As partes claras foram refeitas a partir dos projetos originais. Durante os anos de DDR, as marcas da Segunda Guerra ainda eram muito visíveis. Não havia dinheiro para fazer tudo de novo. Com a reunificação, muita grana foi investida para revitalizar Dresden, que tem no turismo uma importante fonte de renda. E não é para menos, porque a cidade é maravilhosa.

Antes de ir ao museu e de ver o filme (e de chorar com o filme; eu sempre choro nesses filmes de museu, e como estou sozinho e escondido num canto, ninguém percebe), desisti de enfrentar o frio com o que trouxe do Brasil e fui comprar um casaco pesado. Tinha um shopping bonito e animado ali por perto, entrei em duas ou três lojas, e não sabia direito o que comprar. Até que uma vendedora tiazona me deu um, mandou eu colocar e disse que tinha ficado “chic”. Chic é foda. Minhas dúvidas acabaram na hora.

Tirei umas fotos aqui e ali, uma perua Wartburg, um bloco de apartamentos da era Honecker, e saí de Dresden no fim da tarde com Gerd precisando de gasolina. Não entrei em estrada alguma antes de encontrar um posto. Sei como são essas coisas. Não vale a tensão. Achei um Aral perto da universidade e aproveitei para comprar um litro extra de óleo dois tempos, e a menina do caixa fez questão de me avisar que era para motocicleta ou cortador de grama, e eu disse que tudo bem. Comprei também um pacote de biscoitos de chocolate porque a ex-dona do Trabi era fã da marca e tem até um adesivo pequenininho no vidro traseiro que nunca vou tirar de lá. Meio desligado, talvez cansado, mesmo, peguei a 13 para o lado errado e ainda bem que percebi a tempo. Já estava voltando para Berlim. Perdi uns 10 km nisso e, depois de achar um retorno, proa para o o sul, República Checa aí vamos nós.

Choveu forte na Autobahn, mas parou quando entramos em território checo, sem que nem um postinho de fronteira marcasse o momento histórico da primeira saída de Gerd da Alemanha. A Checoslováquia era o destino mais popular dos alemães-orientais, que passavam férias e feriados no vizinho ideológico com viagens organizadas pelo governo da DDR. Em 1988, foram 651.630 excursões para o país, quase três vezes mais que as viagens para a URSS e seis vezes mais que para a Hungria, que andava saidinha demais da conta.

Andamos um bom trecho, uns 50 km, numa estrada escura e soturna, entre o rio e a linha de trem, sem nenhuma placa que indicasse que estávamos no caminho certo. Mas eu sabia que estava, sei me orientar pela lua, e ela tinha aparecido entre as nuvens. É verdade isso, que sei me orientar pela lua e pelo sol. Pelas estrelas, depende. A direção era correta, tranquilizei Gerd, que me pareceu nervoso. E quando apareceu “Praha”, não fiquei nem surpreso, nem aliviado.

O tempo passou rápido, porque consegui sintonizar sem querer no Blaupunkt o serviço mundial da BBC em FM e estavam transmitindo Chelsea e Liverpool, e o narrador falava o tempo todo “Maxerano”, e eu fiquei o tempo todo xingando o cretino do narrador. Quando o jogo acabou, a rádio saiu do ar. Desliguei e fiquei escutando o motorzinho do Trabi.

Os últimos 40 km foram percorridos por uma autoestrada checa muito boa, até a chegada a Praga e o já relatado encontro com o guarda gordinho. No caminho, achei que tinha perdido o celular. Não encontrava de jeito nenhum e não queria parar o carro para vasculhar o interior. Aí, engenhoso, fiquei tirando fotos com o flash para ver se encontrava. Batia e olhava a foto, sem perder a concentração na estrada. Numa dessas, coloquei o braço por trás do banco do passageiro e mirei para o assoalho. O celular apareceu no visor da máquina e fiquei mais calmo.

Agora está tudo bem. No fim, sempre fica tudo bem. Acho. Só estou com fome.