Blog do Flavio Gomes
Turismo

NOTÍCIAS DO LADO DE CÁ

    BERLIM (que eu gosto) – Eu estava na estradinha para Wolfsburg, acho que a 188, e aí vi do meu lado esquerdo um trailer estacionado, com a frente virada para a estrada, mesmo. Como Gerd anda devagar, dá pra olhar tudo com detalhes. Dentro dele, uma loira linda, as pernas bronzeadas apoiadas no […]

 

 

BERLIM (que eu gosto) – Eu estava na estradinha para Wolfsburg, acho que a 188, e aí vi do meu lado esquerdo um trailer estacionado, com a frente virada para a estrada, mesmo. Como Gerd anda devagar, dá pra olhar tudo com detalhes. Dentro dele, uma loira linda, as pernas bronzeadas apoiadas no painel, lendo alguma coisa. Putz, pensei. Deve ser a filha, e de saco cheio. Pais que adoram acampar, passear de trailer, a menina, coitada, entediada, louca para estar com os amigos. Aí, logo depois, do outro lado, outra. Loira, também. Esses pais, coitadas dessas meninas… Saem para passear no bosque e deixam as garotas sozinhas, doidas para acabar o fim de semana.

E mais adiante, comecei a desconfiar. Primeiro, porque não é fim de semana. Depois, porque este tinha uma luzinha vermelha do lado de fora do trailer. E, no vidro, uma placa escrito “Vivien”. E era uma baita duma mulata de aplique. E fez tchau pra mim e pro Gerd. E não tinha cara de filha entediada de pais chatos que gostam de passear no bosque.

Foi a grande descoberta do dia. E olha que fiquei surpreso de verdade. Provavelmente já rodei mais por estradas alemãs na minha vida do que pelas brasileiras. E nunca tinha percebido as meninas dos trailers. Motéis ambulantes. Rimos bastante, eu e Gerd, até que ele engasgou e tive de parar na grama que serve de acostamento.

É que a gasolina acabou. Trabants avisam assim: engasgam e param. Pronto. Ninguém mandou esquecer de colocar gasolina. Meus cálculos é que estavam errados, na verdade. Gerd não faz 20 km por litro, deve fazer menos. Mas a engenharia alemã-oriental pensou em tudo. Debaixo do painel tem uma torneirinha com três posições. Não sei se dá para ver direito na foto.

(Aliás, a turma reclamou das fotos pequenas. Neste publicador, ou eu coloco todas enormes, ou nessas miniaturas aí do alto, e cada um clica na que quiser para ver melhor. Fica meio feio em termos de design de página, mas é o que sei fazer. Tem 18 fotos de hoje aí. Um exagero. A partir de amanhã, vai ser uma por dia e olhe lá.)

A torneirinha: “A”, “Z” e “R”. “A” deve ser de “aberto”, porque é a posição que Dom Pedro Von Wartburg me mandou deixar. “R” deve ser de “reserva”. “Z” deve ser de “[Deu] zebra”, é quando está fechada. Coloquei em “R”, dei a partida, funcionou, fomos em frente. Mas a reserva é limitada, digamos. Era melhor arranjar gasolina logo. Aí apareceu um posto salvador numa transversal da estradinha e deu tudo certo. O posto era da bandeira “T”. “T” de “tem gasolina”, “tem óleo dois tempos”, “tudo tem jeito”.

Ficar sem gasolina num Trabant só sendo mesmo um obtuso como eu. O carro é econômico de verdade. E te ajuda a economizar. A quarta marcha, por exemplo, tem roda-livre. Para quem não sabe, é o seguinte (DKW também tem, mas nas quatro marchas): você está em quarta, acelerando, o mundo está passando pela janela e nada pode ameaçar a paz na Terra; tira o pé do acelerador, o carro entra em ponto-morto sozinho, para não gastar. Acelera de novo, a marcha engata sozinha. Não adianta, o seu carro não faz isso, e nunca os japoneses conseguiram copiar.

300 ml de óleo para 10 litros de gasolina, é a conta mágica. É mais do que em DKW e menos que no Wartburg. Mas não se preocupem em decorar isso, é coisa que só interessa para mim.

O dia estava melhor hoje. Saiu até sol e deu para ver o céu azul. As músicas que o Blaupunkt estava tocando também eram melhores. Tocou “American Pie” e eu fiquei com os olhos cheios d’água, porque sou bobo. E saí de Hannover sem pegar Autobahn nenhuma, para ver as flores e as meninas dos trailers, que eu não sabia que existiam e me apaixonei por cada uma delas.

Gerd não teve mais nenhum problema depois da quase-pane-seca. Quando saímos do posto “T”, tive a impressão de que as velas encharcaram. Mas motor dois tempos é assim mesmo, depois limpa. Limpou. Téin-téin-téin. Diferente do pó-pó-pó. Coisas do escapamento. Fui para Wolfsburg.

O carro estava meio zoneado. Como tem um baita porta-trecos debaixo do painel, coloco tudo lá. Bem melhor que os Hilux-Merivas-Méganes da vida, com 200 porta-trecos espalhados por todos os cantos. Para que tantos? No fim, você esquece onde colocou as coisas. A engenharia alemã-oriental pensou nisso, também. Coloque tudo no mesmo lugar. O mapa aberto vai no banco do passageiro. GPS é coisa de viado, naturalmente. E não existia quando Gerd saiu da fábrica em Zwickau.

(Estou tomando a segunda cerveja na recepção do hotel, dele falo daqui a pouco, e isso é sinal de que começarei a dizer palavrões.)

Wolfsburg era o destino intermediário, a caminho de Berlim. Queria ir na fábrica da VW. Há uns anos, acho que uns 400, quando estive em Berlim pela última vez, fui de trem. De Paris a Berlim de trem. Muito bom. Demorou pra caralho, mas foi muito bom. E na ida e na volta o trem passou em Wolfsburg, diante da fábrica da VW. Desde então, tinha vontade de conhecer esse negócio. Foi fácil de achar, mais do que a Karmann. A VW é dona de tudo em Wolfsburg: da maior fábrica, dos empregos, do estádio, do time de futebol e do Grafite. Siga as placas para Autostadt e é fácil.

Só que errei o estacionamento. Sou meio disléxico, o Fábio Seixas já dizia isso. Embiquei Gerd na portaria principal da fábrica, por onde só entram os parentes de Ferdinand Porsche. Me enxotaram aos berros. Foi gozado. Achei o estacionamento.

Esse Autostadt é uma espécie de disneilândia (aportuguesei de propósito, é que nem gilete e lambreta) da VW. Para quem gosta de carros, vale. Para quem não gosta, que se foda. Eu gosto, e vou te dizer… Tem sete pavilhões, um para cada marca da VW (Skoda, Audi, Seat, Lamborghini), um museu, um para os VW mesmo e mais o centro de entrega de carros aos compradores sobre o qual (estou escrevendo mui corretamente) falarei depois.

Comi uma pizza no prédio da entrada, enorme (prédio e pizza), cheio de restaurantes, lojas, mostras, cafés. O museu, primeiro à esquerda quando se sai desse prédio da entrada, é o que mais vale a pena. As fotos são quase todas dele. Uma bela passada pela história do automóvel, com coisas como os primeiros protótipos do Fusca, o milionésimo Fusca (meio cafona, com paetês no parachoque, mas é o milionésimo, tá valendo), os Benz de 1800-e-bolinha, a justa homenagem a carros importantes como o Ford T, o Citroën 2 CV, o Trabant (colocaram um cupê esportivo, o P70), o primeiro DKW, fora a gangue VW dos anos 60/70/80. Eu gosto, não tem jeito, fico babando.

Os outros pavilhões são meio assim-assim. Tem um tal de Premium Club (talvez o nome seja outro) ridículo. Um prédio inteiro para mostrar um Bugatti cromado, e de longe. Premium Club realmente não dá. Nem meu cartão de crédito tem nome tão cretino. Entrei duas vezes no prédio porque achei que tinha perdido alguma coisa. Não, era só o Bugatti, mesmo. O pavilhão da Lamborghini estava fechado. O da Seat e o da Audi são como showrooms, nada de muito espetacular.

Mas o tal departamento de entrega de carros…

Acho que todo mundo já ouviu falar. Tem um baita prédio redondo de três andares todo envidraçado para onde Fritz e Gerda se dirigem depois de comprar um VW. O painel eletrônico indica a hora em que seu lindo automóvel vai chegar. E eles ficam lá, ansiosos, esperando. Horas antes, o carro já saiu da linha de montagem por um corredor subterrâneo e foi levado, por um elevador-plataforma, para uma das duas Car Towers, dois prédios cilíndricos também envidraçados (deve dar um trabalho danado limpar esses prédios) que comportam 400 carros em seus 20 andares. Ali eles ficam até o dia em que Fritz e Gerda vão buscá-los. Quando chegam, o elevador-plataforma, controlado por computadores e gnomos, vai catar o carro na vaga tal no andar tal, ele desce, e é levado por outra esteira para o centro de entregas. Nenhum ser humano ou extraterrestre encosta no carro antes de Fritz e Gerda.

Simples, não? Deve ter custado os olhos da cara fazer essas duas torres de vidro e as esteiras subterrâneas, é um exagero da porra, mas eu vi uma garotinha sorrindo feito louca, correndo e pulando em volta de um Golf vermelho no local da entrega, e Fritz e Gerda abraçados olhando aquilo emocionados, então valeu cada euro.

Estava anoitecendo quando peguei Gerd rumo a Berlim, agora de Autobahn, de noite não dá para ver nada, mesmo, e é mais rápido. O sol estava se pondo na minha cara, e tive de usar o para-sol. Parassol. Sei lá como se escreve essa merda agora. Estou na Alemanha, então como na Alemanha: aquelenegócioqueagenteabaixaparaosolnãobaternasuacara. No Trabi, o negócio esbarra no retrovisor quando você abaixa. Fosse uma SUV Hiunday Ultra Plus Mega Super, seria o bastante para o dono escrever para a “Quatro Rodas”, chamar o Procon e chorar no “Fantástico” com a voz distorcida pedindo para não ser identificado.

Na Alemanha Oriental, o cara abaixava, entortava o retrovisor e ele desentortava. O engenheiro que calculou o tamanho do para-sol era, provavelmente, o mesmo que tinha projetado as instalações hidráulicas da fábrica. E daí?É só arrumar o espelho. E tapa o sol do mesmo jeito. O mundo é cheio de frescuras. Num Trabi, não há frescuras.

Na Autobahn, 90 por hora fixos. Os caminhões foram rareando quando escureceu. Eles param em gigantescos estacionamentos e postos de gasolina para dormir. Só os poloneses seguem na estrada. Malditos poloneses. Já tive um entrevero com um ontem, hoje foi um caminhão que me deu farol alto. Polonês viado. Fui ultrapassado por vários caminhões poloneses, alguns letões e outros lituanos. E o vento lateral perturba, num Trabi. Quando os caras (não os caminhões poloneses, os carros alemães) passam por você a 300 por hora, ele balança. Precisa segurar o volante com as duas mãos.

Cheguei a Berlim no meio da noite. Estou num hotel muito doido, todo decorado com móveis da DDR. Só tem WiFi na recepção. O quarto tem papel de parede florido e uma foto de Honecker na parede. A TV deve ser P&B. Meu quarto fica no sexto andar, o último, e não tem elevador. Elevador é para os fracos. Na parede atrás da mocinha linda que fez a ficha, quatro relógios, com as horas de Moscou, Havana, Berlim e Pequim. É o máximo.

Fica no lado oriental, claro. Conheço bem Berlim e embora seja meio escondido, o hotel, achei fácil. Fácil mesmo, sem errar uma rua. Me orgulho dessas coisas. Orgulho solitário. Depois, não podia perguntar o caminho para ninguém. Além de não gostar, como um cara de Trabant pode estar perdido em Berlim? Bem, não me perdi.

Estes textos estão ficando muito grandes. Ninguém vai ler esta merda.

Tchau, passam das duas da manhã.