Blog do Flavio Gomes
Diários de viagem

DIÁRIOS, CHINA

SÃO PAULO (só a Iros salva) – Não sei se o pessoal terá algum interesse, mas vá lá… O blogueiro Rodrigo Aquino sugeriu que nos finais de semana de corrida eu republicasse aqui no blog os meus antigos textos dos “Diários de Viagem”, que escrevia anos atrás e acabaram dando origem ao livro “O Boto […]

SÃO PAULO (só a Iros salva) – Não sei se o pessoal terá algum interesse, mas vá lá… O blogueiro Rodrigo Aquino sugeriu que nos finais de semana de corrida eu republicasse aqui no blog os meus antigos textos dos “Diários de Viagem”, que escrevia anos atrás e acabaram dando origem ao livro “O Boto do Reno”.

Esta é a semana do GP da China, pois que seja. Abaixo, o texto que deve ser de 2004, já nem lembro mais.

Se vocês gostarem, semana que vem coloco no ar os “Diários” do Bahrein, Austrália e Malásia. Se não gostarem, esquece.

NA CHINA NÃO TEM PISCINA

Na China não tem piscina. Foi a primeira e paupérrima impressão que tive do maior país do mundo, do avião. Como é que alguém pode pensar em piscina quando chega na China? Bem, depois de 24 horas voando, pode. Pode, sim. Pode-se pensar em qualquer coisa, o importante é chegar. Do alto, não vi nenhuma piscina. Lá dentro, no avião, já tinha visto o que era possível. A lista de filmes disponíveis tinha dois Almodóvar e um americano estúpido de um casal que compra um apartamento e tem uma velha doida como vizinha. E um documentário sobre pássaros.

Detive-me neste, depois de ver os Almodóvar e o americano estúpido. Muito bem feito, mostra movimentos migratórios. Gansos selvagens, patos, andorinhas, falcões, pombos, cisnes, araras, papagaios, urubus, ao que parece todos migram, o tempo todo. Voar deve ser bom. Tem um livro aí, consta até que faz algum sucesso, o título diz alguma coisa sobre o que podemos aprender com os gansos. Exceto voar, não creio que possa aprender muito com os gansos. E isso eles não podem me ensinar. Também não acho que tenha muito a ensinar aos gansos. Estamos quites, nós os mamíferos bípedes e eles, os gansos. Uma vez um ganso me atacou num restaurante em Caxambu. Dei-lhe um bico no peito. Estava com meus filhos, que ficaram aterrorizados com aquela gritaria. Transformei-me num herói por tê-los salvado do ganso. Mas não disse a eles que fiquei apavorado, também. Não tenho nada a aprender com gansos, se vierem me ensinar algo, dou-lhes um bico no meio da cara.

Alguém há de me perguntar: e aí, como é a China? Longe pra caralho e não tem piscina, seria minha primeira reação se alguém me perguntasse dez minutos depois do desembarque. Só tem Santana na rua, seria a resposta meia hora depois. Dirigem feito malucos, uma hora mais. E não sei mais o quê.

Cidades grandes impressionam, prédios enormes, espelhados e bem iluminados à noite também, bons restaurantes e um autódromo gigantesco, idem. Mas essas coisas não me pegam mais. Legal, bonito, mas quando é que eu volto? Eu queria ver uma outra China, a China do “Loto Azul” do Tintin. Essa não está em Xangai. Xangai é que nem Hong Kong, tem um quê de Tóquio, algo de Chicago, sei lá, é o Ocidente cheio de chineses, não tem, quase não tem, seria mais justo dizer, aqueles chinesinhos que andam em motonetas muito pequenas e estragadas, com as pernas dobradas, os joelhos voltados para fora, como se fossem losangos. Vi um ou outro, mas Xangai não é a China do Tintin.

É, sim, um monstrengo de concreto e de gente buzinando. E como buzinam. Arranque a buzina do Santana de um chinês e ele não consegue sair de casa. Por que tantos Santanas?, me pergunto. Achei que eram todos feitos no Brasil, aquele modelo novo eu imaginava que só era feito aqui, mas alguém me disse que tem uma fábrica da Volkswagen na China, também, e não consegui descobrir se tem mesmo. Em todo caso, cada vez que eu entrava num Santana me dava vontade de cantarolar “isso aqui ô-ô, é um pouquinho de Brasil iá-iá”, cá estou num veículo made in São Bernardo do Campo.

E guiam mal. No sábado à noite, o motorista da van se perdeu quando saiu do autódromo. Não é permitido a estrangeiros dirigir na China, e por isso estávamos todos à mercê das vans e dos taxistas. O cara se perdeu, não achava Xangai. Porra, Xangai é grande pra caralho, como o cara não achava Xangai? Não achava, conseguimos dizer a ele para voltar ao autódromo, que é tão opulento quanto a Muralha da China, dá para ver da Lua, e o desgraçado não achava o autódromo.

No domingo de manhã, deu-me claustrofobia. Numa van igual, indo para o autódromo, fiquei com medo de o cara se perder também e irmos parar no Vietnã. Tinha um monte de inglês no carro. Todos hospedados no mesmo hotel, o mais barato que nos arrumaram. Escancarei a janela e meti a cara para fora. Reclamaram do vento, mas eu gosto de vento na cara, eles que se fodam. A cara é minha, vocês que se fodam. Sou muito invocado. Os ingleses me xingaram e ficou por isso mesmo, são meus amigos, afinal, que se fodam.

Fui para a China via Amsterdam. O aeroporto se chama Schiphol. Gosto de nomes de aeroportos, e me refiro a eles pelo nome, não pela cidade, é uma forma de arrotar intimidade com essa coisa de viajar muito, fazendo tipo, oh, para mim é tão comum que às vezes nem me dou conta e digo Schiphol em vez de Amsterdam. Digo também La Guardia, Zaventem, O’Hare, Jêi-Éf-Quêi, Charles de Gaulle, Linate, Orly, Heathrow, Malpensa, Mirabel, Gatwick, Barajas, Ezeiza, Dorval, Tegel e Fiumicino. As pessoas não sabem do que se trata e você então, under request, diz a cidade e todos o admiram.

Em Schiphol, a caminho do portão de embarque para mais muitas horas até Xangai, parei para tomar um café e fumar um cigarro. É um aeroporto civilizado, tem lojas boas, museu, banheiras de hidromassagem e lugar para fumar. Ao lado de um café, ótima combinação, serei preso por fazer apologia ao fumo e à cafeína, bem, se for me levem cigarros na prisão, e enquanto tomava o café de dois euros, li na parede uma longa inscrição.

Sou retardado, anotei no meu bloquinho. “Há dois momentos nas viagens em que me sinto totalmente livre. O primeiro é o instante em que o avião mergulha silenciosamente no céu e me vejo no meio daquele azul ou do manto macio das nuvens.” Que merda, manto macio das nuvens. Em frente, falta ainda um momento nessa cantilena. “O outro é antes de embarcar, quando me sento para tomar um café, um hábito que desenvolvi, de solitária alegria, que serve para me lembrar que a melhor parte de uma viagem, a mais saborosa, é quando eu simplesmente paro e olho em volta.” Porra, precisa de tudo isso para me convencer a tomar um café? OK, tomei o café. Quem será que escreveu tamanha merda na parede? Precisa de assinatura. Se tivesse, Ernest Hemingway ou Marco Polo, por exemplo, eu não teria achado uma merda e saborearia meu café empertigado, convencido de que a melhor coisa de uma viagem é olhar em volta tomando café, mesmo pagando dois euros, mas como não tinha assinatura nenhuma, achei mesmo uma merda. Poderiam ter inventado um nome qualquer para meu café ficar mais saboroso. Falta credibilidade a textos apócrifos pintados em paredes.

Gosto também de banheiros de aeroportos. Sempre há algum isolado, em alas que parecem nunca ser usadas, escondidos, amplos e limpos. Quando faço escalas longas, circulo atrás de banheiros isolados. Quero incluí-los no livro de espionagem que nunca escreverei. “Procure por um envelope pardo no forro do teto sobre o terceiro mictório da esquerda para a direita”, dirá o contato alemão oriental por telefone ao espião inglês em Tegel, e as inacreditáveis plantas de um laboratório onde está sendo feita uma bomba capaz de implodir Londres cairão finalmente nas mãos do MI5, o serviço secreto de Sua Majestade. Há uma versão com rolo de microfilme, também, fotos incríveis de um caça que voa a trezentos mil quilômetros por hora capaz de ir de Moscou a Nova York em meio segundo. Seria um grande livro, o meu.

Voltemos à China. Houve um jantar histórico, entrará para meus casos clássicos, será contado cada vez de um jeito diferente, um dia ainda direi que comi cobras e escorpiões, foi na noite em que o cara se perdeu e nós perdemos a hora de achar qualquer restaurante aberto, encontramos um com o cardápio em chinês, e todas as chinesinhas fizeram enorme esforço para explicar o que tinha para comer, e como não entendemos nada, trouxeram o que tinha, enfiaram uma panela enorme sobre um fogareiro encaixado sob a mesa, começaram a jogar uma porção de coisas esquisitas dentro, e ficamos comendo e aprendendo a escrever em chinês em guardanapos.

Vi também na TV o comercial de um impressionante aparelho que se coloca na orelha na hora de dormir e, embora sem entender chinês, foi possível compreender que ele deixa quem o usa de modo apropriado mais inteligente e sem espinhas. Poderia tê-lo descoberto antes, agora não tenho mais espinhas, e quanto a ficar mais inteligente, bem, o cara que me vendeu um relógio na entrada do autódromo deve agradecer aos céus eu nunca ter usado o aparelho na orelha, porque se tivesse não compraria nunca aquela droga que parou de funcionar no dia seguinte. Chinês safado.