Blog do Flavio Gomes
F-1

S DA SALVELINA (1)

SÃO PAULO (27 com este) – Quinta-feira, antigamente, era dia da entrevista coletiva da Marlboro no Transamérica. Na prática, abria extra-oficialmente os trabalhos para o GP do Brasil, em Interlagos. Claro que a gente, no jornal, começava a cobertura assim que o primeiro piloto desembarcasse em Guarulhos. O grande barato era colocar repórteres de plantão […]

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No rosto dos mecânicos da Red Bull, sinais de cansaço de uma temporada desgastante e decepcionante.

SÃO PAULO (27 com este) – Quinta-feira, antigamente, era dia da entrevista coletiva da Marlboro no Transamérica. Na prática, abria extra-oficialmente os trabalhos para o GP do Brasil, em Interlagos. Claro que a gente, no jornal, começava a cobertura assim que o primeiro piloto desembarcasse em Guarulhos. O grande barato era colocar repórteres de plantão nos principais puteiros da cidade para ver quem andava se divertindo no Café Photo ou no Bahamas. Ou em outros que não lembro o nome.

Essas pautas nunca renderam muito, porque já nos anos 90 o grau de profissionalismo dos pilotos não permitia grandes saltos. No máximo, a gente flagrava alguns mecânicos se divertindo, enchendo a cara e pegando umas minas no Love Story. Eram tempos de dólar muito forte, e São Paulo meio que parava para a F-1 porque era garantia de dinheiro vivo circulando com desenvoltura em bares, churrascarias, hotéis, casas de massagem, tudo. Em 1990, por exemplo, quando a F-1 voltou à cidade, foi bem na época do Plano Collor. Simplesmente não havia dinheiro na praça, porque o governo confiscou tudo. O dólar, naquela semana, virou praticamente a moeda oficial da metrópole.

Hoje São Paulo não para mais para seu GP. Não há sinais da corrida nas ruas, entre outras coisas porque os outdoors estão proibidos. Mas isso, óbvio, não é o único motivo. A F-1 foi perdendo o interesse ao longo dos anos, na mesma proporção em que os pilotos brasileiros deixaram de ser protagonistas. Depois da morte de Senna houve, é verdade, alguns momentos de maior empolgação. Barrichello com a Jordan em 1996, segundo no grid, por exemplo. Acabou rodando. Em 1999, terceiro na largada com a Stewart. Mas quebrou.

Depois, todos os GPs com Rubens na Ferrari foram cercados de expectativa de vitória, mas na maioria das vezes ele decepcionou. Era pane seca, problema hidráulico, rodada, batida, até fazer a pole e conseguir o primeiro pódio em 2004. Não ganhou, mas foi melhor que nada. Seus anos de Honda foram um desastre, e em 2009, renascido, teve a chance de vencer ao largar na pole com a Brawn — mas a aposta numa condição climática maluca não vingou e ele ficou bem longe do pódio. Em 2010 e 2011, na Williams, Barrichello já era mero coadjuvante.

Na verdade, quem passou a frequentar o coração do brasileiro foi Massa a partir de 2006, com uma vitória espetacular em Interlagos largando na pole. Foi o primeiro do grid de novo em 2007 e terminou em segundo. Em 2008, terceira pole seguida e nova vitória, na mais dramática decisão de um título em todos os tempos — a favor de Hamilton, na última curva da última volta.

Em 2009, recuperando-se do acidente da Hungria, Felipe não correu. Foi mal em 2010 e 2011, ficou em terceiro em 2012 e voltou a andar mal no ano passado. A euforia que chegou ao auge em 2008 arrefeceu. Hoje, Massa é querido pelo público, mas está longe de ser alguém capaz de arrastar multidões.

Voltemos às quintas-feiras da Marlboro. Senna arrastava multidões, todo mundo sabe, e naqueles tempos a tal da coletiva no Transamérica era disputadíssima. Além da imprensa do mundo todo (porque a turma da Marlboro tinha pilotos muito bons, como Prost, Berger, Alesi e muitos outros, além de brasileiros), apareciam também alguns malucos que, sabe-se lá como, conseguiam credenciais para o evento. Em geral, fãs de Ayrton, que ficavam histéricos quando o brasileiro aparecia no palco. Um deles continuou frequentando o hotel por anos a fio mesmo depois da morte de Senna, para perguntar a Schumacher, em todas elas, se ele não achava que o governo brasileiro tinha de erguer um monumento ao piloto, um templo, sei lá. Bem doido, o cara, que vivia carregando uma pasta com recortes de jornais, fotos de Senna, revistas antigas, cadernos amarrotados. Eu tinha um pouco de medo dele, achava que um dia iria entrar naquele auditório com um fuzil e matar todo mundo.

Era um inferno, conviver com esses birutas. O saguão do hotel ficava repleto de torcedores portando bonés, bandeiras, pôsteres, calcinhas, cuecas, jaquetas, tudo que se pode imaginar, atrás de um autógrafo. Se não desse de Senna, e nunca dava, neguinho pegava qualquer um que estivesse com uniforme de equipe. Quase todos os times se hospedavam no Transamérica, um verdadeiro QG da corrida. O que não faltava era gente circulando pelo saguão.

Um inferno, mas divertido. Hoje, quando fui retirar minha credencial, senti a melancolia no ar. Não há mais fãs. Não há mais a entrevista da quinta-feira da Marlboro — que foi sucedida pela da Shell quando a propaganda de cigarro foi proibida de vez. Dessa fase Shell cheguei a participar de algumas como condutor da bagunça, até a épica de 2006, então despedida de Schumacher, no dia em que o pessoal do “Pânico” deu a ele uma tartaruga de plástico batizada de “Barrichello”. Michael riu, colocou um boné no brinquedo e adivinhem qual a foto que estampou todos os sites dali a dez minutos e todos os jornais no dia seguinte?

Rubens nunca mais falou comigo depois desse episódio, porque acha que fui eu que armei a história. Bem, não fui. Tentei até o fim segurar os caras do “Pânico” para que eles não estragassem a coletiva, e deixei a pergunta deles por último. A tartaruga foi entregue quando a entrevista terminou. OK, fui o portador do pequeno animal, porque o cara queria subir no palco e eu não deixei. Peguei o diabo do bicho e dei a Schumacher, que estava achando tudo aquilo muito engraçado. Fiquei com a fama, pelo menos para Barrichello, de ter arquitetado aquele plano mirabolante para humilhá-lo. Azar.

Bem, contei tudo isso para dizer que a quinta-feira nesta F-1 de hoje não tem mais o mesmo impacto que tinha nos tempos da coletiva da Marlboro, e por isso tenho aproveitado o dia, nos últimos anos, para dar uma olhada nos carros, reencontrar amigos e tirar umas fotos, porque essa vida de rede social assim o exige. Os amigos são cada vez menos numerosos. Stefano Zaino, do “la Repubblica”, um dos velhos colegas de tantas jornadas, me contou agora há pouco que apenas quatro jornalistas da mídia impressa italiana diária estão aqui: ele, dois da “Gazzetta” e um do “Corriere”. É uma tragédia. O contingente da Bota nos GPs, no auge da era Schumacher, ultrapassava a casa dos 20 repórteres fácil, fácil. Isso sem contar a turma de TV e rádio. Praticamente todos os jornais relevantes da Itália mandavam seus correspondentes para todas as corridas. Afinal, a Ferrari é uma instituição nacional.

Esse clima melancólico atinge muitos repórteres de várias nacionalidades. É senso comum que “já não é mais a mesma coisa”. Verdade. Principalmente porque as corridas começaram a ser realizadas em glebas mui distantes, e cada viagem dessa custa uma fortuna, além de desgastar demais todo mundo, fisicamente. É um massacre. E, sendo bem objetivo, jornais e revistas atualmente não faturam o suficiente para ser dar o luxo de mandar repórteres para todos os cantos do mundo. Além disso, a cobertura na internet matou a imprensa escrita.

Enfim, esse é o clima. Baixo astral entre os que trabalham na imprensa, e cansaço entre os que estão lá embaixo, nos boxes. Há apenas nove times em Interlagos, o que faz do pit-lane uma área tristonha e vazia, em certa medida. A F-1 está em crise, e não é só financeira. Ela precisa recuperar sua vida, a alegria e o entusiasmo que desapareceram.