Blog do Flavio Gomes
F-1

S DA SALVELINA (6)

SÃO PAULO (assim morre) – Pra começo de conversa, é o seguinte: o som dos motores da F-1 é inadmissível. Oh, e você percebeu isso só agora, na 17ª etapa do campeonato? Sim. Certas coisas a gente só percebe ao vivo, e já tem alguns anos que o único GP que vejo ao vivo é […]

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O pit-lane de Interlagos vazio: F-1 está perdendo sua alma.

SÃO PAULO (assim morre) – Pra começo de conversa, é o seguinte: o som dos motores da F-1 é inadmissível.

Oh, e você percebeu isso só agora, na 17ª etapa do campeonato?

Sim. Certas coisas a gente só percebe ao vivo, e já tem alguns anos que o único GP que vejo ao vivo é o daqui, porque a paciência para ir a lugares como Bahrein, Abu Dhabi, Xangai, Sepang e Cingapura inexiste. Índia e Coreia, então… No, thanks. Assim, o contato tátil, auditivo, olfativo e visual se dá aqui, em Interlagos.

Na TV não é a mesma coisa, como não era a mesma coisa ouvir o ronco de um V10 ou um V8 aspirado na telinha e, depois, ao vivo para estourar deliciosamente os tímpanos.

Isso que ouvi hoje é inaceitável. E não consigo compreender como, desde o início do ano, as pessoas envolvidas não se rebelaram contra essa bosta.

F-1 é uma experiência única (pareço comercial de cartão de crédito), e quem já teve a chance de estar num autódromo num GP sabe disso. Hoje eu chegava ao circuito pela manhã e exatamente às 10h01 estava na avenida Interlagos ao lado dos portões do Setor A, a reta dos boxes. Nessa hora os carros saem do pit-lane para as primeiras voltas. Até o ano passado, era um momento mágico. Do lado de fora se escutava o ruído assombroso, que fazia tremer tudo. Da casa do meu pai, a alguns bons quilômetros de distância, dava para ouvir aquele rugido épico ao longe.

Aquilo era essencial para a F-1. O carro, na pista, berrando como se fosse um monstro de vida própria, fazia arrepiar até os… bom, vou me comportar… Aquele som arrepiava os pelinhos do braço (melhor assim), deixava qualquer um hipnotizado, o estrondo dos motores era o que mais aguçava os sentidos, mais até do que o visual dos carros, a sensação de velocidade. Não, nada disso. O contato direto do corpo humano com um carro de F-1 se dava através do som que fazia os ouvidos doerem e permanecia ecoando por dias a fio, aquele zumbido gostoso que parecia não passar nunca.

Não sair surdo de um autódromo em dia de F-1, em resumo, é uma aberração.

Aí que passo na avenida Interlagos e escuto vindo lá de dentro um som de aspirador de pó abafado e metálico, um negócio horrível, motor batendo válvula, pior que qualquer carro que participa do nosso campeonato de velharias, e percebo que aquilo é a nova F-1. Uma merda completa.

Quando estacionei meu carro, fiquei ali no Sol vendo os caras passarem. Quem terá sido a anta que criou esse regulamento? Será que alguém realmente acha que a F-1 tem de dar exemplo de sustentabilidade, de reaproveitamento de energia, de economia de gasolina? Gente do céu, a população mundial hoje é suficientemente esclarecida para compreender que um carro barulhento que bebe gasolina loucamente não tem de servir de exemplo para ninguém, todos entendem que um carro de corrida é apenas um equipamento utilizado numa competição concebida para entreter as pessoas. A F-1 não tem de dar exemplo de nada a ninguém, é pretensão demais achar que está influenciando gerações a pensarem de modo mais sustentável só porque seus carros recuperam a energia das frenagens e do acionamento do turbo. As pessoas estão cagando um monte para isso. Não existe uma única alma no planeta que ligue a TV para ver uma corrida de F-1 imbuído do espírito de ser convencido do que quer que seja. O cara quer torcer para algum piloto e ver um bom espetáculo. E não existe uma única alma no planeta que, depois de ver uma corrida de F-1, desligou a TV convicto de que no dia seguinte teria de procurar algum carro com motor elétrico para ajudar a salvar a Terra.

Isso aí que vi hoje, desculpem, não é F-1. Não faz barulho. Não estoura os tímpanos. Dá para conversar na arquibancada. Não se pode conversar numa arquibancada de um autódromo. Entenderam?

E começo a achar que o baixo astral geral da categoria passa por isso, por sua descaracterização total. E isso se vê no rosto de cada um com quem cruzo aqui. Não há felicidade no ar. Os colegas jornalistas estão cansados. Tem corrida demais, e elas são distantes e em lugares sem graça e sem alma.

Uma passada pelo grid, e temos, na Red Bull, um Vettel emburrado e encostado, de mal com as pessoas com quem sempre conviveu desde molequinho, porque resolveu sair da equipe. O clima é ruim, fim de feira total, não vai ter nem bolo de despedida. Na Mercedes, Hamilton e Robserg, amigos de infância, não se falam mais. Qualquer que seja o resultado, vão sobrar ressentimentos por uma temporada duríssima e competitiva além da conta entre os dois.

Na Ferrari, o desânimo se nota até na menina que serve o café. Alonso está de saída, frustrado com o que não conseguiu em cinco anos. O time, por sua vez, se vê órfão do velho Luca di Montezemolo, estranha os métodos e o jeito de falar da turma que chegou para comandar a nau, e também está meio ressabiado com o espanhol — poxa, Schumacher teve uma paciência de Jó, e quando a coisa virou, foi o que todos sabemos; por que é que Alonso não faz o mesmo?

Na McLaren, Button se sente desprestigiado e desrespeitado por Ron Dennis, e seus sorrisos deixaram de ser sinceros para exalar ironia a cada declaração. Na Force India, imaginem o humor de Pérez hoje. Não vai poder treinar porque o novato Juncadella arrebentou seu carro no primeiro treino livre. Hülkenberg vive de bico porque achava que a esta altura da carreira estaria numa Mercedes ou McLaren da vida, mas tudo que conseguiu foi chegar na Force India e de lá não sai mais.

A Sauber tem dois pilotos putos da vida, porque sabem que serão demitidos no ano que vem. Na Toro Rosso, Vergne não engole a escolha de Kvyat para suceder Vettel na matriz, e se pudesse enterraria a cabeça num buraco. Na Williams, Massa é comparado a Bottas o tempo todo e os números acabam com seu espírito esportivo — o finlandês tem 155 pontos e cinco pódios no ano, e está em quarto no Mundial; Felipe tem um pódio, 83 pontos, e é o nono, apenas. A Lotus, tão bem no ano passado, ficou sem grana e prestígio e tem apenas dez pontos no campeonato. Sem dinheiro, não sabe como vai disputar o Mundial do ano que vem.

E das nanicas nem falo, porque não estão em Interlagos. A Marussia, inclusive, de acordo com as informações que chegam da Inglaterra, está fechando as portas depois de cinco anos de vida — contando os dois primeiros como Virgin. Já era. O que é o de menos, diga-se. Pior, bem pior, é a situação de Bianchi, internado no Japão sem perspectiva nenhuma de voltar. Isso para não falar da tragédia de María de Villota. A equipe se vai, enfim, sem deixar boas lembranças. A Caterham, idem. Alguém realmente acredita que o time conseguirá sobreviver? Quem comprou devolveu, e quem vendeu não quer aceitar de volta. Agora os administradores estão recorrendo a vaquinha na internet para levantar 9,6 milhões de dilmas para correr em Abu Dhabi. Pedem a ajuda dos fãs. Fãs? Alguém realmente acha que existem fãs da Caterham?

É o que eu disse no vídeo. A F-1 precisa recomeçar. Há várias saídas, mas é preciso desprendimento para olhar para o passado e tentar recuperar o que se perdeu.

Podem começar com o ronco dos motores.