Blog do Flavio Gomes
F-1

RUBINHO, 15

SÃO PAULO (das maiores) – Espero que Barrichello tenha se lembrado do dia. Certamente lembrou. Até eu, ano passado, lembrei — por que o Gabriel Araújo descolou a gravação das últimas voltas daquela corrida pela Jovem Pan, o azar do Vander, a volta do Nilson (está tudo aqui neste post). Hoje é tipo aniversário quase redondo, […]

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SÃO PAULO (das maiores) – Espero que Barrichello tenha se lembrado do dia. Certamente lembrou. Até eu, ano passado, lembrei — por que o Gabriel Araújo descolou a gravação das últimas voltas daquela corrida pela Jovem Pan, o azar do Vander, a volta do Nilson (está tudo aqui neste post).

Hoje é tipo aniversário quase redondo, 15 anos, motivo de sobra para comemorar e relembrar, portanto.

30 de julho de 2000, Hockenheim. Rubinho ganha pela primeira vez na F-1, já na metade de sua oitava temporada na categoria.

Demorou, mas veio com estilo. Considero essa corrida uma das grandes da história e uma das vitórias mais emocionantes de todos os tempos — não pelo choro no pódio ou coisas, assim, mas pela forma como aconteceu (se não lembra, o resumo da corrida está aqui).

[bannergoogle] Como no ano passado contei tudo que rolou naquele dia, especialmente na rádio, fui buscar o que escrevi na época. E graças à Gisèle de Oliveira, conhecida internamente como “È” por conta deste estranho acento que leva em seu nome, hoje minhas colunas desde 1995 estão todas num blog, neste endereço aqui. E fica fácil de encontrar tudo. É um arquivo com quase tudo que escrevi para jornais e sites até 2013, sem muita firula — um dia ainda vou colocar fotos e coisas assim. A Gabriel Araújo’s Adult Entertainment também ajudou a compilar e editar os textos.

Em 2000 eu escrevia duas colunas por semana. Uma para o “Lance!”, exclusiva, e outra para os demais jornais para quem cobria F-1. Assim, foram dois textos sobre o assunto. O primeiro, publicado no dia 2 de agosto. O segundo, dois dias depois.

Divirtam-se com as minhas memórias de 15 anos atrás. E falem, claro, da vitória de Barrichello. Foi a maior de todos os tempos, para vocês? Lembro que ele largou em 18º, superou (na verdade, foi ajudado por…) a invasão da pista por um maluco, apostou nos pneus para pista seca na chuva, domou o carro nas últimas voltas no molhado, foi realmente o fodão do Bairro Peixoto naquele domingo. Por essas e outras, quando me perguntam qual a maior vitória que vi na F-1 costumo citar esta. Mas é claro que nem todos concordam.

AS LÁGRIMAS DO BRASIL – 02/08/2000
O país chorou com Barrichello domingo. É o que pude constatar ao voltar para o Brasil. Pouca gente falando da corrida em si, mas muito mais de suas próprias reações às imagens que chegavam pela TV: Barrichello chorando no carro e no pódio, enxugando as lágrimas na bandeira, e a maioria chorando junto, especialmente por causa do Tema da Vitória. A musiquinha.

Pessoalmente, não tenho nada contra o choro. Verto minhas lágrimas de vez em quando, em filmes e derrotas da Portuguesa. Mas me espantou a indignação de nossa gente amiga ao fato de eu não ter chorado diante de quadro tão idílico de exaltação nacional. Como, não chorou? Que espécie de batráquio é você?

Chorar por e com Barrichello, parece, virou obrigação nacional. A música, a lembrança de Senna, a sensação de que vencemos, contra tudo e contra todos, tudo isso só pode levar ao choro. Temos de chorar. É nossa contribuição, nossa maneira de ganhar junto, de dividir uma vitória que gostaríamos que fosse nossa.

Há uma certa hipocrisia nisso. O choro de Barrichello, este é perfeitamente compreensível. O menino é emotivo e seu desabafo foi bonito, tocante até. Não, não nego os componentes emocionais de uma vitória como a de domingo. Mas foi apenas corrida de carros. Uma competição, não uma odisséia.

É que o brasileiro, em geral, se apropria das vitórias de seus compatriotas, esquecendo-se de que, na maioria das vezes, elas não têm patavina a ver com o país, entendendo-se país como algo coletivo. No caso de Barrichello, foi um triunfo pessoal, individual e intransferível. Resultado de seu esforço, de sua determinação e coragem para fazer o que fez na pista. Quando muito, um resultado cujos méritos podem ser estendidos aos integrantes da Ferrari. Que são italianos, franceses, ingleses e alemães, também.

Pensando sob esta ótica, pode vir à tona a pergunta: e por que não houve esse chororô todo quando, por exemplo, Guga ganhou em Roland Garros? Ou nos Jogos Pan-Americanos, com tantos brasileiros no pódio celebrando suas medalhas? Talvez porque Guga tenha erguido seus troféus sorrindo, e não chorando. Mesmo tendo de enfrentar tantas dificuldades na carreira quanto Barrichello, mas longe dos olhares chorosos do público, desse torcedor que aprendeu a ver cada vitória, na era Senna, como uma espécie de saga, de epopéia terceiro-mundista rumo ao olimpo que o destino nos negou.

Minha tese, no entanto, é outra. O Brasil não digeriu, e talvez nunca consiga digerir, a morte de Senna. Ela foi dolorosa demais, fazendo da F-1 algo maldito. Triste. A F-1, para o Brasil, é um negócio triste, que para sempre vai lembrar a morte trágica de um cara que era considerado herói. É a musiquinha, o hino, a bandeira, o ronco dos motores, tudo. Tudo, sempre, vai lembrar Senna. Que, vitorioso, deixou a vida como um mártir. E os mártires, sabe-se, carregam consigo, para a eternidade, uma tristeza quase insuportável.

O ABRAÇO – 04/08/2000
Minutos depois de ser acertado por Fisichella na largada do GP da Alemanha, Michael Schumacher, a ponto de esmurrar o primeiro que lhe perguntasse sobre qualquer coisa que remotamente lembrasse corridas de automóvel, mandou uma de suas assessoras arranjar um jeito para que ele pudesse ir embora rapidamente de Hockenheim.

Podia ser um carro, uma bicicleta, um patinete, um helicóptero, um submarino. O alemão queria sair dali, amargar a fossa sozinho. Se desse, voar para a Suíça, onde vive, para ver os filhos. Um sorriso de criança acaba com qualquer mau humor, crianças não entendem nada de largadas, mudanças de trajetória, tomadas de curva e tangentes. Sorte delas.

A menina saiu atrás do transporte num piscar de olhos, e pouco mais de meia hora depois voltou ao caminhão da Ferrari para chamar Schumacher. A carruagem, ou skate, ou asa-delta, não se sabe ao certo, estava pronta. Quando entrou e avisou o chefe, não mereceu nem um olhar.

Vibrando como um garoto, o queixo colado na televisão, Schumacher gritou: Espera, espera aí que não vou mais embora não! Olha aí, o Rubens vai ganhar, o Rubens vai ganhar! E assim ficou, até o fim da corrida, admirando a pilotagem de seu companheiro de equipe, o melhor e mais rápido que já teve desde Piquet – embora Nelson, à época, final de 91, já estivesse se aposentando.

Rubens ganhou. E Schumacher, sorriso aberto, foi o primeiro a cumprimentá-lo no Parque Fechado de Hockenheim. Arrancou os tubos de hidratação e o cabo do rádio do capacete do parceiro, olhou dentro da viseira, viu lágrimas e o abraçou. Foi um abraço carinhoso, que vale mais do que tudo neste mundo, diria Barrichello algumas horas depois.

Mais do que seu choro, do que a bandeira do Brasil, do que o Tema da Vitória, do que a avalanche de elogios, talvez seja esse abraço que Barrichello deva guardar de Hockenheim para se lembrar no futuro. Foi o reconhecimento de um talento muitas vezes colocado em dúvida, até por ele mesmo, vindo de um sujeito que não tem muito mais a provar na profissão que escolheu.

Schumacher ficou até o fim do GP da Alemanha para ver de perto uma exibição de gala, como muitas que ele mesmo já protagozinou em quase uma década de F-1.

Não é todo mundo que merece uma audiência tão seleta. Rubens mereceu, domingo passado. Tirou um peso das costas, perdeu a virgindade, mudou de turma. Sem exagero, lembrou Senna. Não, Rubens não é um Senna. Mas o foi, em Hockenheim.