Blog do Flavio Gomes
F-1

SANTO, SANTO, SANTO

RIO (sei lá) – Reproduzo abaixo press-release do meu amigo Rodrigo França, competentíssimo jornalista cuja empresa de assessoria de imprensa tem entre seus clientes o Instituto Ayrton Senna. Volto na sequência. O papa Francisco recebeu nesta quarta-feira, no Vaticano, uma escultura em bronze de Ayrton Senna, confeccionada pela artista plástica Paula Senna Lalli, sobrinha do […]

RIO (sei lá) – Reproduzo abaixo press-release do meu amigo Rodrigo França, competentíssimo jornalista cuja empresa de assessoria de imprensa tem entre seus clientes o Instituto Ayrton Senna. Volto na sequência.

O papa Francisco recebeu nesta quarta-feira, no Vaticano, uma escultura em bronze de Ayrton Senna, confeccionada pela artista plástica Paula Senna Lalli, sobrinha do piloto. Além da obra “Meu Ayrton”, Bianca Senna, irmã de Paula e diretora do Instituto Ayrton Senna, também presenteou o papa com um capacete de seu tio.
“Foi um dia muito emocionante. É uma honra poder vir ao Vaticano e encontrar com o papa na semana da Páscoa para entregar uma obra tão especial da minha irmã Paula. Ele agradeceu e elogiou o busto. O sermão de hoje foi sobre pedir a Deus nas dificuldades e isso me lembrou muito o Ayrton, porque ele fazia sempre isso”, disse Bianca.
“Nosso muito obrigado também ao Claudio Giovanonni, conhecedor da fé do meu tio como parte fundamental de seus valores e que nos ajudou a viver este momento único”, completou Bianca.
A ação faz parte de mais uma homenagem a Senna em 2019, ano marcado pelos 25 anos de legado do tricampeão mundial de F-1. “Meu Ayrton” é uma escultura cujo processo de criação e execução teve início em 2016, quando a mãe do piloto, Neyde Senna, fez a encomenda pessoal à neta, a artista plástica e compositora Paula Senna Lalli.
A obra foi exibida ao público hoje pela primeira vez durante o encontro de Bianca Senna com o papa e agora pertence ao acervo do Vaticano. “Fiquei muito honrada em ter minha obra sendo entregue ao papa Francisco”, diz Paula, que acaba de ganhar seu segundo filho, e por isso foi representada por Bianca.
A artista confeccionou a escultura durante a primeira gravidez, usando fotos e memórias como referência. Paula também contou com a ajuda de familiares, que posaram para ajudar a dar vida a aspectos da anatomia de Ayrton que as imagens não captavam.
“Recebi com muito orgulho a missão dada pela minha avó, que quis retratar de forma carinhosa a maneira como ele era lembrado pela família. Aceitei o desafio, mesmo reconhecendo a dificuldade da tarefa: pouquíssimas obras deste tipo eram aprovadas por nossos familiares, em especial por minha avó (dona Neyde), conhecida pelo alto padrão de exigência”, comentou Paula.

Muito bem. O Vaticano tem um conjunto de museus chamado genericamente de “Musei Vaticani” que conta com 26 coleções, áreas de exposição externas e internas, capelas, salas, galerias, corredores e museus propriamente ditos no coração de Roma, onde fica a cidade-estado. Em todos eles, até onde se sabe, a temática é religiosa — obviamente católica –, mas há espaços reservados também a obras e objetos ditos profanos, mas de inegável valor arqueológico.

Não sei bem onde um busto de Ayrton Senna se encaixaria nesse acervo. É importante notar que num primeiro informe à imprensa, dizia-se que a obra da sobrinha do piloto passaria a fazer “parte do acervo do Museu do Vaticano”. No texto acima, é mencionado o “acervo do Vaticano”, sem menção a nenhum museu específico, o que me parece mais plausível. O papa, como chefe de estado, deve receber centenas de presentes de outros países, autoridades, artistas, religiosos e atletas, inclusive. Em 2013, por exemplo, ganhou uma camisa do San Lorenzo, seu time do coração, no dia em que rezou sua primeira missa de Páscoa como líder da igreja católica. No ano seguinte, campeão da Libertadores, o clube levou a taça para o sumo pontífice, que não escondeu sua alegria — formado nos subúrbios pobres de Buenos Aires, Francisco sempre fez questão de destacar a importância do futebol na formação de sua personalidade. Acredito que o busto de Senna deve se juntar à camisa do San Lorenzo e a outras lembranças de diversas naturezas que o papa já ganhou durante seu pontificado.

Em tese, não há nada de errado em oferecer presentes a quem quer que seja. Chegar ao papa não é fácil, e a família Senna conseguiu entregar o busto e uma réplica do capacete a ele, pelo que compreendi, graças à intermediação de um empresário italiano com quem mantém relações. Me lembrou a piadinha de quando o papa chegou a São Paulo, entrou no papamóvel e pediu ao motorista: “Meu filho, deixa eu dirigir um pouquinho? Não aguento mais ficar acenando para as pessoas!”. O chofer não teve como dizer não, foi para a parte de trás do veículo e o papa assumiu o volante. Pegou a 23 de maio e sentou o pé. Uma viatura policial estranhou a velocidade excessiva do automóvel e o mandou parar. O soldado chegou do lado do carro e, quando reconheceu quem estava dirigindo, mandou um rádio para seu superior: “Coronel, acabei de parar um carro aqui na 23 a 150 por hora, o que eu faço?”, consultou. E o comandante: “Multe o cara, ora bolas! Quem é o dono do carro?”.  E o soldado: “Olha, o dono não sei, mas deve ser muito importante porque o motorista dele é o papa!”.

(Adoro essa piada.)

O empresário Claudio Giovannone (a grafia correta é essa, com “e” no final, não “i”) se autointitula “padrinho para a Europa do Instituto Ayrton Senna” em sua conta no Instagram. Ele tem forte atuação no futsal na Itália e possui uma grande coleção de carros de F-1 — alguns usados por Senna em seus dez anos na categoria. É amigo da família, mas não consegui rastrear as origens dessa amizade. Também não há nada de errado nisso. Como muitos, Giovannone é fã do piloto e deve ter-se aproximado do clã Senna por conta da idolatria ao tricampeão mundial. Aparentemente, como aquele cara da piada cujo motorista era o papa, deve ser importante e influente na Itália, a ponto de conseguir organizar a entrega dos presentes a Francisco. Que não se deu numa audiência privada ou algo do gênero, mas sim na praça de São Pedro em cerimônia pública.

Eu também gostaria de, sei lá, entregar um Mug ao papa — foi o que me ocorreu agora, quando tentei imaginar que presente daria a Francisco; talvez uma camisa da Lusa junto, a Cruz de Avis do nosso escudo poderia suscitar alguma proximidade com sua posição eclesiástica, era capaz de rolar. Não sou católico, não tenho religião nenhuma, mas admiro a figura humana do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio. Daria, sim, um presente a ele e ficaria satisfeito com isso. Mas não sei se ofereceria o busto de um parente morto, por mais que o admirasse e respeitasse, com o intuito de vê-lo ladeado por efígies de santos, anjos, arcanjos, querubins, apóstolos e virgens marias. A família Senna tem especial cuidado com a imagem de Ayrton e não se importa em estimular essa ideia de um quase-santo personificado, um mártir de causas nobres, o beato da filantropia, o cidadão de bem de passado indiscutível e imaculado.

Ele é visto assim, inclusive, por boa parte de seus devotos brasileiros. Ajuda na composição dessa reputação a autoproclamada missão do instituto que leva seu nome — uma atuação difusa assim descrita em seu site oficial: “Desde sua fundação, o Instituto Ayrton Senna vem produzindo conhecimentos e experiências inovadoras capazes de inspirar práticas eficientes, formar educadores e aplicar soluções educacionais para promover uma educação integral que prepara o aluno para viver no século 21. Essas inovações são levadas para as escolas em parceria com as redes públicas de ensino, a fim de fortalecer o protagonismo dos educadores e dos alunos que estão entre o ensino fundamental e médio, preparando-os para os desafios do mundo contemporâneo”.

Eu, sinceramente, não sei direito o que faz o Instituto Ayrton Senna — criado em novembro de 1994, seis meses depois da morte do piloto, portanto. Sei o que não faz, e é importante deixar isso claro para que não se confundam suas atividades ligadas à educação com assistência financeira e material a crianças carentes — como muita gente imagina. O IAS não mantém creches, não reforma escolas, não constrói abrigos, não tira meninos e meninas das ruas e das favelas para dar a eles de comer, vestir e viver, não paga salários a professores da rede pública, não fornece merenda, não conserta carteiras, não distribui lápis, giz ou cadernos. Basta procurar na aba “como atuamos” de seu site para entender menos ainda seu modus operandi. O que significa “(…) Conduzimos ações de engajamento para a mobilização de diversos setores da sociedade interessados na causa da educação”, por exemplo?

Não tenho a menor ideia. O IAS não faz caridade, em resumo. Mas não se importa que as pessoas pensem que é isso, divulgando números quase sempre impressionantes como “1,5 milhão de alunos beneficiados” ou “mais de 660 municípios atendidos” por ano. Seus resultados financeiros não são muito animadores. Encontrei no site alguns relatórios que indicam prejuízos seguidos de 2015 a 2017 (o último disponível), pela ordem, de R$ 9,3 milhões, R$ 6,2 milhões e R$ 11,2 milhões — quase R$ 27 milhões de déficit em três anos.

Em 2017, o IAS arrecadou R$ 39,4 milhões, sendo R$ 21,1 milhões em royalties de licenciamento dos direitos relativos ao uso da imagem de Ayrton Senna e da marca Senninha, valores que de acordo com o instituto são 100% aplicados na entidade. No relatório de despesas, R$ 22,3 milhões foram gastos numa rubrica descrita como “soluções educacionais”, o que parece ser o “core business” do instituto. A rubrica “inovação”, sem maiores detalhes, foi responsável por gastos de R$ 8,8 milhões e os “negócios” (que incluem eventos, marketing e comunicação institucional) consumiram R$ 12,8 milhões da receita do instituto.

Desconheço em profundidade o regime tributário de organizações como o IAS mas, grosso modo, entidades sem fins lucrativos — como ONGs, associações de classe, instituições religiosas, entidades que promovem assistência social, cultura, saúde, educação, preservação e conservação do meio ambiente, promoção dos direitos humanos etc. — são isentas de pagamentos de impostos.

Empresas privadas que fazem doações a essas entidades também recebem benefícios fiscais. Em 2012, por exemplo, a Boeing “uniu-se à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e ao Instituto Ayrton Senna para potencializar um trabalho focado nos jovens do Estado. Desde então, os recursos da empresa, destinados a essa parceria, estão viabilizando educação de qualidade a milhares de alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e estudantes do ensino médio de escolas públicas de tempo parcial e integral. O objetivo é desenvolver competências cognitivas e socioemocionais, como colaboração, curiosidade, criatividade e persistência. Os estudantes passam a adotar uma atitude proativa diante da vida“.

Os grifos são meus. Quem conseguir compreender exatamente o que significam essas ações, se puder, me explique. Quem quiser crer que tais ações, de fato, “beneficiam” alunos espalhados pelo país, que levar estudantes a “adotar uma atitude proativa diante da vida” é algo que pode mudar o destino de alguém, que durma em paz ao saber que alguém se preocupa em “desenvolver competências cognitivas e socioemocionais” de alunos que, via de regra, por este Brasil afora, convivem com a penúria da educação que não mudou muito de 1994 para cá — as escolas públicas seguem caindo aos pedaços, a estrutura é precária, os professores ganham mal e, agora, como se não bastasse, terão de conviver com a patrulha de malucos medievais como o antigo e o atual ministro da Educação ou aquela deputada estadual de Santa Catarina que sugere que aulas sejam gravadas pelos alunos com celulares para denunciar a “doutrinação marxista” às autoridades.

Entregar ao papa o busto de Senna para que se junte às esculturas sacras que adornam o Vaticano me pareceu mais um ato deliberado no permanente esforço da família do piloto para polir uma estampa que tende à santificação e bendição informais, esforço este alimentado à exaustão por seus adoradores fanáticos.

O lugar mais apropriado para exibir um busto de Ayrton Senna, na minha visão, é um autódromo, quiçá um museu dedicado ao automobilismo de competição, não um templo religioso. E o IAS é apenas uma entidade voltada à educação com objetivos bastante genéricos (e resultados duvidosos), e não uma igreja devotada a amparar os desvalidos cuja doutrina se espelha nos valores que seu líder propagou pilotando carros de corrida.

É o que eu penso.

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Sobre a atuação do IAS, recomendo fortemente a dissertação de mestrado de Fernando Xavier Silva apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2016, orientada pela professora Márcia Aparecida Jacomini com o título F1r06lWFhFFXLYXvNIuBS7VI0N3DH6HVDs" target="_blank" rel="noopener noreferrer">PRODUÇÃO ACADÊMICA NO BRASIL SOBRE O INSTITUTO AYRTON SENNA (2002-2015): CARACTERÍSTICAS E CONTRIBUIÇÕES. O estudo analisa 64 produções acadêmicas (teses, dissertações e artigos) publicadas no período de 2002 a 2015 que analisaram o trabalho do IAS em todo o país. A imensa maioria aponta problemas sérios na metodologia aplicada pelo instituto às escolas da rede pública onde atua ou atuou (o número de cidades atendidas caiu nos últimos anos de 1.300 para menos de 700), seu caráter centralizador, imposição de estratégias baseadas em conceitos do mercado para formação e avaliação de profissionais de ensino, estímulo à competição desenfreada, alienação e desmotivação de educadores, tentativas de influenciar na legislação e nas políticas públicas de educação a partir de códigos “importados” da iniciativa privada e prejuízo ao caráter democrático e coletivo de corpos docentes e diretivos das escolas. As conclusões contidas a partir das páginas 48, 57 e 68 são particularmente esclarecedoras — e preocupantes.