Blog do Flavio Gomes
F-1

SURPRESA FOI TER VOLTADO

RIO (fornalha) – Confesso que fui pego de surpresa pela notícia de que a Honda deixará a F-1 no fim do ano que vem. Eu e muita gente — não todos, porque é óbvio que o pessoal da FIA, da Red Bull, da AlphaTauri e das outras equipes já devia estar sabendo com alguma antecedência; […]

RIO (fornalha) – Confesso que fui pego de surpresa pela notícia de que a Honda deixará a F-1 no fim do ano que vem. Eu e muita gente — não todos, porque é óbvio que o pessoal da FIA, da Red Bull, da AlphaTauri e das outras equipes já devia estar sabendo com alguma antecedência; decisões assim não são tomadas do dia para a noite.

Mas lembrou o que aconteceu no fim de 2008, quando a mesma Honda decidiu encerrar de repente sua terceira fase na categoria — as duas primeiras foram de 1964 a 1968, como equipe oficial, e de 1983 a 2005, como fornecedora de motores. Naquela altura, os japoneses tinham equipe própria, mas a crise econômica global levou a montadora a suspender seus planos na categoria. O time foi comprado por Ross Brawn, que arrumou uns motores Mercedes, ganhou o Mundial de 2009, vendeu tudo para a mesma Mercedes e o resto vocês sabem. É essa equipe aí que desde 2014 ganha tudo. Sim, a Mercedes é a Honda de 2008.

Gravei um longo vídeo para o “GP às 10” que vai ao ar segunda-feira falando sobre o assunto e não pretendo repetir tudo aqui. Resumidamente, digo que a decisão surpreendeu porque foi repentina, mas que não foi exatamente chocante, diante da realidade atual da indústria automobilística. Aliás, acho que a qualquer momento outras fábricas de automóveis envolvidas com corridas farão o mesmo sem aviso prévio. A gente já viu o que aconteceu no DTM e no WEC, por exemplo. E, mesmo na F-1, as deserções recentes são razoavelmente numerosas e pesadas — estou falando de Toyota, BMW e da própria Honda há alguns anos.

O que parece esquisito é que a Honda voltou outro dia, em 2015. E já está de saída. OK, caiu do cavalo com os fracassos na McLaren, mas começou a se recuperar lindamente com AlphaTauri e Red Bull, conseguindo pódios e vitórias. Vocês se deram conta de que é o único motor, na era híbrida, a ganhar corridas em duas equipes diferentes?

Eu achava, então, que o projeto era de longo prazo. E era, na verdade. Uma empresa como a Honda não investe o que investiu na F-1 para ficar lá por apenas sete temporadas — contando 2021. O que ocorre é que as coisas têm mudado no mundo muito rapidamente. A lógica de 2015 não pode mais ser aplicada em 2020 — em nenhuma área da economia, do comportamento, de nada. Somos capazes de dizer que este planeta é muito parecido com o que era em 2015? Não, claro que não. Ascensão do fascismo internacional (Hungria, Brasil, Turquia, Hungria…), crises de refugiados, guerra na Síria, a maior potência mundial presidida por um maluco, explosão de crimes ambientais estimulados por um governo insano que afetam todo o planeta, a pandemia, o milhão de mortos por Covid-19, tudo isso aconteceu nos últimos cinco anos. E mudou a cara deste planetinha azul tão bonitinho.

Como, então, fazer planos de longo prazo em 2020? Como sustentar planos escritos cinco anos atrás diante de uma realidade completamente diferente em tudo?

A indústria automobilística precisa, de qualquer forma, pensar nas próximas duas ou três décadas, porque o que ela produz está deixando de interessar às pessoas. As novas gerações não vão comprar carros, vão comprar celulares através dos quais possam chamar carros, e isso já está acontecendo aos olhos de todos tem algum tempo. Assim, as montadoras terão de redirecionar seus investimentos, escolher bem onde gastar, porque além de fabricarem coisas que ninguém mais vai comprar no volume de antes, essas coisas terão de ser radicalmente diferentes das que são produzidas hoje. Terão de ser elétricas.

Por isso, deveria ter surpreendido mais o anúncio da volta da Honda, em 2015, do que de sua saída, em 2020. Que diabos esses caras querem com a F-1?, deveríamos ter-nos perguntado há cinco anos. Ali os sinais já eram claros de que o futuro do automóvel estava em outro campo — embora fosse difícil prever os cataclismos políticos e sanitários que adviriam depois para abalar as estruturas de todas as áreas conhecidas disso que chamamos de economia, ou mercado. Não foi um fator único que levou a Honda a fazer o que fez. Mas o primordial, que faz parte de seu core-business, estava na cara de todo mundo. Fazer motor para carro de corrida? Num momento em que o mercado pede desenvolvimento de baterias e motorzinhos elétricos que possam ser carregados em casa? Ou veículos autônomos? Sério que a essa altura alguém ainda estava pensando em corrida de automóvel?

Foi um erro estratégico da Honda, pois, voltar. Não sei o que eles imaginavam com a decisão, mas está na cara que foi um equívoco e que agora estão tentando corrigir o rumo. Bota o prejuízo na conta e vamos em frente.

E a F-1 (agora nas mãos de americanos, outra novidade pós-2015) precisa atentar para isso também. Em algum momento, as montadoras que restam vão picar a mula para cuidar de seu futuro — e o futuro não passa, lamento dizer, por pistas de corrida. E se ela quer continuar existindo, ainda que para um nicho — grande e lucrativo, sem dúvida–, precisa se preparar para isso.

No mais, na configuração de três fornecedores para 2022 — se Ferrari, Mercedes e Renault continuarem –, Red Bull e AlphaTauri terão de se sentar à mesa com os franceses de novo. Porque, teoricamente, a Mercedes terá quatro times (ela própria mais Williams, McLaren e Aston Martin), a Ferrari segue com três (ela própria mais Haas e Alfa Romeo) e a Renault terá apenas uma (ela própria). Não vai ter jeito. Ou, então, comprar os direitos sobre os motores Honda, rebatizá-los e tocar a vida.

Mas alguém é capaz de cravar alguma previsão para 2022? Para amanhã já está difícil…

De qualquer forma, espero que a Honda se despeça com dignidade. Tem mais uma temporada pela frente, afinal. E um nome a zelar, ainda que ninguém mais pareça ligar para isso.