Blog do Flavio Gomes
Comes & bebes

BYE, BOB

SÃO PAULO (com muito molho, muito mesmo!) – Olha que perfeição!, admirava-se meu pai, e eu, um menino de 7 ou 8 anos, não compreendia bem tamanho espanto. Eram uns painéis fotográficos com fotos de sanduíches e copos de milk shake iluminados por trás com lâmpadas fluorescentes que conferiam, isso devo admitir, um brilho especial […]

Robert Falkenburg, criador do Bob’s

SÃO PAULO (com muito molho, muito mesmo!) – Olha que perfeição!, admirava-se meu pai, e eu, um menino de 7 ou 8 anos, não compreendia bem tamanho espanto. Eram uns painéis fotográficos com fotos de sanduíches e copos de milk shake iluminados por trás com lâmpadas fluorescentes que conferiam, isso devo admitir, um brilho especial àquelas imagens, diria até que dava vontade de comer aquilo, e tomar aquele troço, mais ainda.

Tínhamos nos mudado para o Rio e entre as novidades com que me deparei — calor, praia, futebol de botão, coleção de maços de cigarro estrangeiros, peneira no Flamengo, rapto do Carlinhos, motoristas de ônibus malucos, o chiado no falar, o erre riscado — estava aquela lanchonete com as fotos iluminadas perto de casa, em Copacabana. Que perfeição!, repetia meu pai, que poucos anos antes fizera sua primeira viagem internacional pela firma tendo passado algumas semanas nos Estados Unidos, onde deve ter visto lanchonetes parecidas com fotografias de sanduíches semelhantes. Atribuo seu fascínio pelas peças a essa passagem pela América do Norte, mas nunca nos aprofundamos no tema.

Esgotados os elogios aos painéis iluminados, meu pai pedia uns cachorros-quentes e uns milk shakes, e se é verdade que me recordo com nitidez daqueles surtos de arrebatamento por causa das fotos, seria desonesto afirmar aqui que os sabores a elas relacionados tenham se fixado na minha memória de alguma maneira particular — hot dog bom era Geneal, que a gente comia nos carrinhos no calçadão da avenida Atlântica ou no Maracanã.

Loja numa esquina da Zona Sul: a cara do Rio

De qualquer forma, as lojas do Bob’s, que nem eram tantas assim, se incorporaram à nova e solar paisagem com a qual deveria me habituar naqueles primeiros anos da década de 70, de uma cidade onde tudo parecia acontecer primeiro, tudo era grandioso e festivo, luminoso e extravagante. No caso gastronômico em questão, refiro-me àquilo que se convencionou chamar de fast-food.

Avança a fita e já em São Paulo, jovenzinho com carro novo na mão e talão de cheques do Bamerindus na carteira, tínhamos o Jack in the Box, que sempre julguei ser uma cadeia de lanchonetes brasileira até ver o logotipo de soslaio numa cena qualquer de um filme americano no cinema, e é claro que não tenho ideia de qual filme era. Frequentava uma loja na avenida Sumaré, que a gente podia entrar com o carro e fazer o pedido sem sair dele, só abrindo a janela, para estacionar nas imediações e se lambuzar de ketchup, mostarda, maionese e gordura nos dedos de batata frita.

O Bob’s nunca se criou por aqui como no Rio, e sempre vinculei sua existência às cores e cheiros de Ipanema e do Leblon, no máximo a uma loja no alto da Serra das Araras na Dutra, que na minha cabeça marcava a divisa entre um estado e outro. Do Bob’s pra cá, Rio. Do Bob’s pra lá, São Paulo.

O criador do Bob’s morreu no último dia 6 em Santa Ynez, na Califórnia. Robert Falkenburg, o Bob do Bob’s, tinha 95 anos e já não vivia no Brasil desde o comecinho dos anos 70. Tem uma história ímpar. Nascido em Nova York, foi um dos maiores tenistas dos EUA da primeira metade do século passado. Seu maior feito foi a conquista do torneio de simples de Wimbledon em 1948, numa final épica contra o australiano John Bromwich. Salvou três match points e levantou a taça. Um ano antes, tinha se casado com a socialite brasileira Lourdes Mayrink Veiga Machado, a quem conhecera em 1946 quando veio disputar um campeonato aqui. O Brasil não lhe era estranho. Bob tinha morado algum tempo em São Paulo, ainda criança, porque seu pai, Eugene, era engenheiro da Westinghouse e vivia rodando o mundo para montar hidrelétricas.

Bob em Wimbledon: campeão de 1948

Em 1950, o casal se estabeleceu de vez no Rio e Bob montou uma sorveteria com maquinário importado de seu país que fez relativo sucesso. Dois anos depois, segundo a lenda irritado porque não encontrava um lugar na cidade para tomar um bom milk shake, fundou o Bob’s. E não largou o tênis. Chegou a defender a equipe brasileira nas Copas Davis de 1954 e 1955.

Raquetes e milk shakes, João Gilberto, Tom Jobim, Pelé, Garrincha, Getúlio, Juscelino, Tupi, rock’n’roll, Bossa Nova, Maracanã, Sputnik, Elvis, Che, Perón… Anos dourados, esses 50. E não é nenhum despropósito associar as lanchonetes Bob’s a eles. Por que não? Gosto de reverenciar certas coisas. Além do mais, os sabores que não registrei aos 7 ou 8 anos vim a catalogar na memória tempos depois, quando passei a frequentar uma loja na rua Haddock Lobo, aos pés do Colégio São Luís. Ficava aberta até tarde e não raro, depois da faculdade, pegava carona com alguém até a Paulista para devorar com sofreguidão um Bob’s Burger fartamente carregado com molho verde de ervas, que sempre preferi ao Big Bob, acompanhado do clássico milk shake de Ovomaltine. Que merece um parágrafo só para ele.

Foi em 1959 que o Bob’s inventou o milk shake de Ovomaltine, achocolatado maltado e crocante criado na Suíça em 1904. Mas só em 2005 a rede licenciou a marca com exclusividade para sua sobremesa celestial — que sempre tomei enquanto comia o sanduba, misturando salgado e doce sem nenhum escrúpulo. E acabou perdendo o direito de usar o nome em 2015 para o McDonald’s. Um horror, isso. Encerrado o parágrafo, não sem antes assinalar que jamais, em tempo algum, pedirei Ovomaltine no McDonald’s, em desagravo silencioso pela traição dos helvéticos.

Gostava também do magistral queban, singelo e por isso mesmo espetacular sanduíche de queijo com banana — sacros ingredientes prensados entre duas fatias de pão de forma tostadas com maestria e precisão. Iguaria que inexplicavelmente deixou o cardápio em algum momento dos últimos 30 anos, o que muito me contrariou quando notei sua ausência. E não posso deixar de evocar reminiscências que remontam a 1985, primeira edição do Rock in Rio, em que o Bob’s foi nomeado fornecedor oficial de sandubas do evento e serviu toneladas de hambúrgueres que chegavam à Cidade do Rock frios e amarrotados, porque eram preparados sabe-se lá onde, mas eram deliciosos e saciavam a fome de uma multidão de jovens que estavam ali nada mais nada menos do que descobrindo o mundo.

Morreu o fundador do Bob’s. Bob Falkenburg já não tinha nenhuma relação com sua criação desde 1974, quando vendeu a operação, então com meras 13 lojas, à Libby, uma empresa suíça de comida enlatada que pertencia à Nestlé. Depois, em 1987, a rede foi repassada a um grupo holandês, um certo Vendex, e desde 1996 está nas mãos da Brazil Fast Food Corporation, que também é dona das operações de Pizza Hut e KFC no país. Hoje o Bob’s tem 1.050 lanchonetes e quiosques entre lojas próprias e franqueadas, 14 mil funcionários, vende três milhões de Big Bobs e 1,2 milhão de litros de milk shake por mês.

Mas não tem mais queban, nem sanduíche de salada de ovo, ou de galinha, ou de atum, ou de presunto, vaca preta também não há — Coca-Cola com sorvete de creme, crianças –, ice cream soda, tampouco. Essas coisas sobreviveram apenas em antigos retratos, mais antigos que os painéis que causavam tanto espanto em meu pai, como esse aí embaixo. E na nossa memória afetiva, ao menos na memória de quem ainda tem algum afeto.

O cardápio no início: até vaca preta tinha…

Não devemos nos lamentar o tempo inteiro, porém. Não chore porque acabou, sorria porque aconteceu. A frase é de um popular escritor e cartunista americano, Theodor Seuss Geisel (1904-1991), o Dr. Seuss. Se Bob não tivesse vindo ao Brasil jogar tênis, não teria conhecido Lourdes, e não teria se casado com ela, e não teria se mudado para o Rio, e não teria ficado irritado quando saiu para procurar um milk shake, e não teria criado o Bob’s.

E eu nunca teria comido um sanduíche de queijo com banana, nem um hambúrguer besuntado com maionese verde, nem conhecido o milk shake de Ovomaltine.

E a vida teria sido diferente, menos gostosa, creio.