Blog do Flavio Gomes
Gira mondo

GIRA MONDO, GIRA

SÃO PAULO (e virou mesmo) – Eu suspendi a seção “Gira mondo, gira” deste blog na madrugada de 1º de setembro de 2016. Horas antes, o mandato de Dilma Rousseff fora cassado por um bando de filhos da puta que sabotaram seu governo e resolveram guinar o país para a direita e atirá-lo no esgoto. […]

SÃO PAULO (e virou mesmo) – Eu suspendi a seção “Gira mondo, gira” deste blog na madrugada de 1º de setembro de 2016. Horas antes, o mandato de Dilma Rousseff fora cassado por um bando de filhos da puta que sabotaram seu governo e resolveram guinar o país para a direita e atirá-lo no esgoto. Entre eles um cafajeste que, ao arrotar seu voto, evocou o nome de um carniceiro que se excitava ao enfiar ratos vivos na vagina das mulheres que torturava. Dilma foi uma de suas vítimas.

A figura em questão, que levou uma cusparada do então deputado Jean Wyllys — e foi pouco, muito pouco; até hoje é inacreditável que essa pessoa não tenha sido processada imediatamente, presa, atirada de volta ao poço de merda de onde saiu –, tornou-se presidente do país. O texto que suspendeu o “Gira mondo” é ruim. Cheio de clichês e termos batidos. Parece profético, mas é apenas óbvio. Um trecho, porém, talvez mereça ser lido de novo:

Dias horríveis vêm pela frente. Os últimos dois anos serviram para revelar personalidades, trouxeram à tona uma clara divisão de pensamentos e visões de mundo. Me decepcionei amargamente com amigos, colegas e parentes. E com centenas, milhares de desconhecidos. Saber, com nitidez, que pertencemos a lados tão distintos é algo doloroso. Não me refiro, aqui, a ideologias ou preferências partidárias. Seria reducionista pensar desse jeito. Trata-se, sim, de escolher com quem ficar. Com quem alimenta o ódio de classe, exerce o preconceito e a misoginia, perpetra o desprezo, perpetua a ignorância, pratica o obscurantismo? Jamais. Jamais.

Desde então, parei com os textos de viés político aqui para não me aborrecer. Eram muitos comentários agressivos e carregados de raiva, um trabalhão danado para apagar e bloquear gente, as coisas já estavam ruins o bastante para alimentar mais um dissabor em tempos tão infelizes. E “Gira mondo”, que nasceu para ser uma espécie de míni jornal diário, com meia-dúzia de assuntos e alguns links para tentar organizar (pretensioso, isso) a avalanche de informações que recebemos todos os dias, foi jogado dentro de uma gaveta.

De 2016 para cá as coisas só pioraram, inclusive no que diz respeito à avalanche de informações. Novas mídias, plataformas, canais, aplicativos, ferramentas e toda sorte de tranqueiras digitais começaram a surgir do nada, e às redes sociais de então se juntaram streamers, influencers, tiktokers, instagramers, podcasters e outras asneiras do gênero.

Ah, mas os jovens se comunicam assim, é preciso se adaptar, crie uma conta no Tik Tok, crie um podcast, poste mais stories, grave vídeos curtos, faça mais lives!

Ah, fodam-se os jovens. Não sou obrigado a me adaptar a nada, se os jovens de hoje só se comunicam fazendo dancinhas no Tik Tok, ou escutando um tonto com nome de bicicleta que fala merda duas horas por semana, ou outro que transmite ao vivo a importante atividade de escovar os dentes para divertir seus seguidores com sua forma peculiar de fazer gargarejo, fodam-se os jovens, e os velhos que fazem o mesmo, e as crianças, e os de meia idade. Fodam-se todos, em resumo. Se tem quem ache legal assistir a alguém vendo um jogo e fazendo comentários desprovidos de qualquer sentido o tempo todo, se muitos perdem horas de seu dia acompanhando desconhecidos jogando videogame, fodam-se também. Não posso fazer nada por eles. Sejam jovens, velhos, crianças ou de meia idade. E se tem gente enriquecendo com isso, sorte de quem consegue. Mas me incluam fora dessa, como se falava outrora.

Não se trata de negar a modernidade. Não é porque essas coisas são novas, recentes mesmo em qualquer recorte temporal que se faça, que podem ser definidas como modernas. A família criminosa do 01, 02, 03, 04 e seu pai genocida é usuária em tempo integral de todas essas ferramentas fresquinhas saídas dos melhores cérebros do Vale do Silício. E pode-se chamar essa quadrilha de moderna? São pessoas modernas só porque usam equipamentos, linguagem, memes, expressões e trejeitos de última geração?

São, sim, pessoas medievais de pensamento tosco e obtuso, antiquadas, reacionárias, conservadores, ignorantes, incultas, vulgares, grosseiras, e ainda assim têm uma legião de seguidores igualmente ligada nos mesmos aplicativos, nas mesmas plataformas, na mesma “modernidade”, agora entre aspas, na puta que pariu que cabe na palma de suas mão horrendas sujas de sangue e fedendo a patifaria.

Vivemos tempos de enorme confusão em que qualquer um que grava um vídeo, ou faz um podcast, ou uma live, ou um story ao vivo, acha que está fazendo jornalismo, quando na verdade está apenas gravando ou transmitindo imagens e vozes sem nenhum compromisso com a verdade, sem métodos de apuração, sem nenhuma responsabilidade com a informação, sem nenhuma preocupação com as consequências do que é jogado na rede. Tem gente que celebra este momento afirmando que a internet democratizou a informação, deu voz a quem nunca teve, livrou o mundo da ditadura dos veículos de comunicação comandados pelos poderosos e opressores.

Em muitos casos, isso é verdade. Grupos de comunicação pertencem aos poderosos, embora muitos deles sejam conduzidos no dia a dia por profissionais conscientes de seu papel num processo histórico civilizatório. Mas não se pode negar que muita coisa que seria fácil de esconder no passado, ou que simplesmente era invisível, só veio à tona graças àqueles que antigamente as emissoras de TV chamavam de “cinegrafista amador” — todos munidos de um celular, hoje, o são. Comunidades, minorias, tribos indígenas, ambientalistas, ONGs, artistas de rua, cozinheiros, artesãos, atletas, milhares de setores da sociedade, graças à tecnologia, passaram a ter acesso a ferramentas que permitem mostrar sua realidade a quem conseguirem alcançar com seus pequenos aparelhos conectados na rede. E desse caldeirão infinito do que se chama de produção de conteúdo emergiram, sim, grandes talentos, denúncias importantes, imagens chocantes, fotos históricas, textos maravilhosos, poetas, cantores, cantoras, artistas de todos os tipos, canais de vídeo relevantes, cientistas puderam elevar o tom diante da iniquidade oficial num cenário de morte e devastação, como não enxergar a importância disso tudo?

Não nego, claro. Mas não consigo deixar de pensar no que veio junto. Talvez seja desnecessário listar. Dê uma olhada ao redor. Observe as pessoas, digamos, numa praça de alimentação de um shopping center. Ou mesmo numa mesa pequena de um restaurante qualquer. Num ônibus, ou vagão de metrô. Em sua casa, em cada quarto. O que tanto olham, assistem, escutam? Quem está bombardeando suas mentes? Com o quê?

Um dia alguém tentou argumentar a favor desse novo Homo sapiens, que não desgruda mais os olhos de pequenas telas, contrapondo os hábitos contemporâneos a outros do passado. A leitura de livros, revistas ou jornais, por exemplo. No Japão, me disse o interlocutor, você entrava num trem há 30 anos e estava todo mundo lendo alguma coisa. Refleti por alguns segundos sobre o assunto, não mais que alguns segundos. Porque não é preciso muito tempo de reflexão para concluir que colocar lado a lado um bom livro, ou um bom jornal, e um vídeo de uma menina derrubando um forninho — que quando termina é seguido, sem pausa, por outro com alguém fazendo uma coreografia infantil, que por sua vez está colado nas imagens de um motoqueiro tomando um tombo, que vem acompanhado de outro de um influencer mostrando seu carro novo, e a sequência é contínua e perpétua — é o que se chama de falsa equivalência, comparar o incomparável.

A humanidade está claramente emburrecendo, se infantilizando, se idiotizando. Não fosse isso, o pacote de estrume que faz lives às quintas-feiras, passeia de moto e jet ski, espalha perdigotos infectados num cercadinho e come pão com leite condensado jamais chegaria onde chegou. Mas tem muita gente como ele. E uma geração inteira vindo atrás que se informa e se entretém pelos mesmos meios que levaram essa figura abjeta aonde está. Ele e seu séquito que representa o que há de mais repugnante no lumpesinato da república: o cara da boiada, a louca da goiabeira, o vendedor de travesseiros, o negro racista, o nazista da cultura, o genro do dono da TV, o médico antivacina, o general de logística que confunde Acre com Amapá… O rastro de destruição está por todos os lados. O Brasil, como projeto de nação, acabou e terá de ser refundado.

Escrevo este texto em meio a várias interrupções, e acho que ele vai sair truncado e pouco conclusivo. Bem, vou terminar. “Gira mondo” vai voltar. Tentarei me disciplinar para publicá-lo todas as sextas, com um resumo dos fatos que considerar mais interessantes da semana.

Hoje, por exemplo, iria abrir o texto falando da morte do fundador do Bob’s. Talvez ainda escreva sobre isso, um pouco mais tarde. Não tem nenhuma importância, né? Mas para mim tem. E como acho que o escritor, cada vez mais, escreve para si mesmo, não vejo mal nenhum em falar da morte do fundador do Bob’s.