Blog do Flavio Gomes
F-1

A TAL DA VOLTA

SÃO PAULO (e estava frio…) – Hoje faz 30 anos “daquela volta”, como me escreveram ontem. Aquela volta foi a primeira do GP da Europa de 1993. Senna passou quatro adversários e venceu a corrida em Donington com uma volta sobre todo mundo, exceto o segundo colocado — Damon Hill. O problema de ter um […]

Hill, Senna e Prost: GP histórico em Donington

SÃO PAULO (e estava frio…) – Hoje faz 30 anos “daquela volta”, como me escreveram ontem. Aquela volta foi a primeira do GP da Europa de 1993. Senna passou quatro adversários e venceu a corrida em Donington com uma volta sobre todo mundo, exceto o segundo colocado — Damon Hill.

O problema de ter um blog há muito tempo é repetir efemérides. Já devo ter escrito sobre essa corrida quando ela fez 15 anos, 20, 25. Agora são 30. Então, já sem mais nada para contar, reproduzo um capítulo inteiro de meu livro “Ímola 1994”. Dedicado justamente a essa prova — aliás, se não tem o livro ainda, compre aqui. Está logo depois da pequena galeria de fotos. Que tem uma minha, batida no dia 8, quinta-feira, num frio desgraçado.

Como dizia o outro lá, meninos, eu vi.

DONINGTON, 1993

          Depois de assistir impotente à conquista de Nigel Mansell em 1992, Ayrton Senna colocou uma ideia fixa na cabeça: correr na Williams. Ele já tinha detectado, em 1991, que a equipe de Grove seria dominante nos anos seguintes, por uma combinação de fatores: a potência do motor Renault, o refinamento aerodinâmico dos carros projetados por Adrian Newey, o salto tecnológico com aperfeiçoamento de sistemas de câmbio automático, controle de tração e, principalmente, suspensão ativa, e a decadência prevista para a McLaren com o fim da parceria com a Honda.

          Newey era o nome mais festejado das pranchetas na Fórmula 1. Engenheiro aeronáutico, tinha passado pela equipe Fittipaldi e pela Indy antes de começar a ganhar a fama de gênio na March, fazendo carros, lá pelo final dos anos 80 e início dos 90, que em pistas lisas, de asfalto regular e sem ondulações, se comportavam divinamente. Sua atenção aos detalhes aerodinâmicos era obsessiva. Quando foi para a Williams, encontrou o cenário ideal para fazer suas invenções funcionarem. A suspensão ativa que “lia” as irregularidades da pista e mantinha o carro a uma altura constante do solo mesmo em freadas e retomadas de aceleração era um sonho para quem concebia uma máquina que seria imbatível se pudesse andar o tempo todo o mais próximo possível das condições ideais, as mesmas encontradas num túnel de vento. Newey acabaria assinando os projetos dos carros campeões mundiais de construtores de 1992, 1993, 1994, 1996, 1997 (todos da Williams), 1998 (McLaren), 2010, 2011, 2012 e 2013 (Red Bull). Em 1999, um projeto seu também levou o título de pilotos com Mika Hakkinen na McLaren – a Ferrari, naquele ano, ficou com a taça entre as equipes.

          Assim, quando o contrato de Senna com a McLaren acabou, no final de 1992, e Ron Dennis lhe apresentou uma proposta de renovação por dois anos, o brasileiro não quis assinar. Topava por apenas uma temporada, já que a Williams tinha decidido trazer Alain Prost de volta e o francês, por motivos óbvios, não queria nem pensar em dividir os boxes de novo com Ayrton. Mas ele queria estar livre para tentar de novo em 1994. E sabia que a McLaren teria anos difíceis pela frente.

          O impasse chegou a um ponto em que, a dias da abertura do Mundial, em Kyalami, Senna não tinha contrato para correr. E o jeito foi fazer um compromisso válido por apenas uma prova, para que ele pudesse disputar o GP da África do Sul. Dizia-se, na época, que ele ganharia US$ 1 milhão por prova. A etapa seguinte seria no Brasil, e imaginar uma corrida em Interlagos sem Senna era quase uma heresia. E lá foi ele de novo assinar um contratinho que valia apenas para o final de semana de São Paulo.

          O corre-não-corre tinha outras razões. Naquele ano, sem acertar com nenhuma fábrica um contrato de fornecimento de motores, a McLaren foi obrigada a comprar o que havia disponível no mercado. E a escolha acabou recaindo sobre a Ford, que tinha na Benetton sua principal aposta. Sabendo que Dennis não iria ficar muito tempo com seus motores, a montadora americana destinou à McLaren equipamento de uma geração anterior à que entregava à Benetton – que tinha exclusividade para usar os melhores propulsores da marca. O dirigente, então, passou a usar a indefinição sobre o contrato de Senna como instrumento de pressão sobre seu fornecedor. Trocando em miúdos: se vocês não nos derem motores iguais, o cara não corre. E “o cara” não era qualquer um, evidentemente.

          A vitória de Senna em Interlagos colocou ainda mais lenha na fogueira. Ele já tinha sido segundo em Kyalami e somava 16 pontos numa improvável liderança do Mundial diante do favoritíssimo Prost. Schumacher, o principal nome da Benetton, tinha 4. O argumento de Ron Dennis era claro e cristalino: nós entregamos mais resultados que eles, sendo assim não faz sentido receber equipamento pior. Mas a Benetton, chefiada por Flavio Briatore, não abria mão de seus privilégios garantidos por contrato.

          Nesse ambiente repleto de dúvidas, Senna embarcou na tarde de terça-feira, 6 de abril, no voo 244 da British Airways em Cumbica com destino a Londres. “Ninguém está curtindo muito essa situação de se fazer um contrato para cada corrida, mas por enquanto tem sido a medida certa”, declarou no aeroporto. Ele tinha acabado de assinar mais um, para disputar o GP da Europa no velho circuito de Donington Park, na Inglaterra – onde, dez anos antes, testara um carro de Fórmula 1 pela primeira vez.

          Como a pista nunca tinha sido usada para uma corrida da categoria, o regulamento à época previa um treino extra na quinta-feira, antes do início das atividades oficiais de um fim de semana de GP. Donington era um sítio histórico, e cheguei lá um dia antes de Senna, na terça-feira, para preparar um material especial sobre o circuito e sua história. A pista, construída em 1931, fora palco de pelo menos dois duelos épicos pré-Fórmula 1: em 1937 e 1938, no auge da rivalidade entre Mercedes e Auto Union (a antecessora da Audi). As duas vitórias ficaram com os carros de quatro argolas – a primeira com Bernd Rosemeyer e a segunda, com Tazio Nuvolari. No ano seguinte, com o início da Segunda Guerra Mundial, o autódromo foi convertido em depósito para veículos e suprimentos militares e sumiu do cenário automobilístico.

          Um dos espectadores que assistiram às memoráveis provas de 1937 e 1938 foi um garoto chamado Tom Wheatcroft, que se apaixonou pelas corridas e por suas máquinas maravilhosas. Depois da guerra, acabou enriquecendo no ramo de construção civil e começou a colecionar automóveis de competição. Em 1971, por 100 mil libras, comprou o velho circuito, transferiu para lá sua coleção – montando um dos mais belos museus voltados ao automobilismo do mundo – e reformou o autódromo, finalmente reinaugurado para corridas em 1977.

          Fazia um frio glacial naquele começo de abril na região de Midlands, coração da Inglaterra, e a previsão era de chuva para o fim de semana. Novidade nenhuma, em se tratando da ilha de Sua Majestade. Os termômetros marcavam entre 4 e 6°C durante o dia, e com chuva a sensação era que estávamos dentro de um freezer gigante. Saí à caça de algum casaco para aguentar aquela geladeira e comprei uma jaqueta da Williams nas barraquinhas que ficavam no portão do autódromo. Não tirava nem para dormir.

          Eu, Mario Andrada e Silva (já trabalhando para o “Jornal do Brasil”) e Lemyr Martins (“Quatro Rodas”) formamos um trio para dividir despesas naquela semana, como o carro alugado e o combustível, e ficamos numa espelunca medieval em Derby, cidade de 200 mil habitantes próxima a Donington. O primeiro dia de treinos mostrou a superioridade da Williams, com Prost fazendo o melhor tempo com pista seca, 1s3 mais rápido que Senna – num traçado de apenas 4.020 metros de extensão. A chuva era a única esperança do brasileiro de fazer alguma coisa naquela corrida, como já acontecera em Interlagos semanas antes.

          E na sexta-feira a água realmente veio, e Ayrton sorriu feliz. Fechou o dia na frente de Prost, que ficou num “mau-humor feroz”, como escrevi na “Folha”. O francês terminou a primeira sessão classificatória em terceiro, atrás ainda de seu companheiro Damon Hill. Prost odiava pilotar em piso molhado. A previsão para o sábado, porém, indicava a mesma algidez dos dias anteriores, mas sem chuva. E os meteorologistas acertaram. Desta vez, quem sorriu foi Prost: pole-position, com Senna em quarto no grid a 1s649 do rival. O mau-humor feroz se transferiu para o brasileiro. “Se eles largarem na frente, vão embora e vai ser outra corrida. Levando em conta a diferença entre os dois pilotos [Prost e Hill], nem entre eles vai existir uma prova. Vai ser um correndo para ganhar, como sempre, o outro para fazer segundo e o resto da turma lá atrás”, falou. “Se estiver seco, vai ser extremamente difícil terminar entre os três primeiros. Agora, se a chuva pintar por aqui, as coisas complicam mais para os outros.”

          A chuva pintou por ali no domingo, e o que aconteceu é de amplo conhecimento dos amantes das corridas. “Senna dá outro show na chuva”, manchetou o caderno Esporte da “Folha” na segunda-feira, 12 de abril de 1993. “Ayrton Senna soube que ia vencer o GP da Europa quando acordou ontem de manhã e olhou para o céu”, escrevi. “O sol de sábado havia desaparecido. Chovia forte. Era sua única chance de derrotar Alain Prost.” O jornalismo é o rascunho da História – frase repetida algumas vezes neste livro –, mas vale a pena reproduzir o trecho em que descrevo sua primeira volta, considerada por muitos a mais espetacular da Fórmula 1 em todos os tempos: “A 38ª vitória de Senna foi uma aula de estratégia e habilidade. Ele largou em quarto lugar e passou, pela ordem, Michael Schumacher, Karl Wendlinger, Damon Hill e Prost antes de completar a primeira volta. A ultrapassagem sobre Prost, no começo da prova, foi memorável”. Segundo meu texto com o relato da corrida, Senna venceu “depois de fazer quatro trocas de pneus, passar uma vez direto pelos boxes, inscrever nos anais da categoria uma primeira volta espetacular e mudar o roteiro de um campeonato que parecia fácil para o francês da Williams”.

          A tal primeira volta mereceu uma matéria à parte. “Um tiro psicológico. Foi assim que Senna definiu sua primeira volta de ontem. Ele usou a experiência dos tempos de F-Ford e F-3 na Inglaterra para passar os três primeiros colocados logo após a largada. ‘Naquela época eu quebrava os rivais psicologicamente e ia embora. Hoje foi uma repetição disso. Depois de tantos anos me acostumei’.” Deu tempo também de criticar Michael Schumacher, que estava à sua frente no grid. “Eu acho que às vezes ele não raciocina muito bem. Me apertou e cheguei a botar uma roda fora da pista. Dei sorte porque consegui evitar o choque. Mas quem se entortou no final foi ele.” O alemão rodou depois de 22 voltas e abandonou.

          A segunda vitória seguida levou Senna a 26 pontos, abrindo 12 sobre Prost – que terminou em terceiro uma volta atrás do brasileiro, depois de nada menos que sete pit stops. Foi uma corrida absolutamente caótica, com a chuva indo e voltando o tempo todo. Senna foi para os boxes cinco vezes, e numa delas nem trocou os pneus. Quando entrou no pit-lane, percebeu que a McLaren não tinha recebido sua mensagem pelo rádio, viu que os pneus não estavam preparados e não parou. Como não havia limite de velocidade nos boxes na época, passou voando. “O rádio da gente esse ano, é uma pena, não funciona legal. Eu não consigo entender o que eles falam comigo e acho que eles também não. Eu avisei: vou parar, pneu, pneu, pneu, e eles não estavam prontos para a troca. Eu percebi e passei direto. Foi a decisão certa.” O tempo: 1min18s029, média de 185,608 km/h. A melhor da prova.

          A entrevista coletiva com os três primeiros colocados foi das mais divertidas na tenda montada ao lado da pista que funcionou como sala de imprensa em Donington – gelada e úmida. “Prost, escondido sob um enorme boné da Canon, resmungava que seu carro estava com isso, tinha problema daquilo, e assim tentava explicar a derrota. Ayrton olhou para o lado, deu um tapinha nas costas do francês e sugeriu: ‘Por que você não troca comigo, então?’”, relatei. “A sala de imprensa veio abaixo. A humilhação pública contribuiu para aumentar um ódio [entre os dois] que já não é pequeno.” Depois, aos jornalistas brasileiros, seguiu disparando contra o rival. “O Prost sempre tem uma desculpa. Um puta de um carro desses e o cara fica chorando. Pinta o carro dele de vermelho e branco e dá pra mim. Não quero nem trocar de cor, mas troca de carro pra gente conversar. No fim, repetiu o discurso usado em Interlagos, na prova anterior. “São Pedro ajudou, mas foi com a ordem de Deus.”

          Foi nesse dia que, pela primeira – e única – vez, disse a Senna que aquela conversa eivada de tons religiosos andava meio exagerada. Os gravadores já estavam desligados, a entrevista, encerrada, e falei: “Pô, Deus de novo? Cara, você acabou de fazer uma puta corrida, lidera o campeonato, guiou pra cacete e toda hora é Deus?”. Ele deu um sorriso amarelo, repetiu que Deus sempre o ajudava muito nessas condições difíceis e foi embora comemorar a vitória. Ao repórter, que não tinha direito nenhum de se indignar ou questionar a fé do entrevistado, restou suspirar e reproduzir o que havia sido dito.

          O GP da Europa teve outros grandes personagens, na pista e fora dela. Na corrida, Rubens Barrichello fez uma prova monumental, largando em 12º, passando seis na primeira volta, domando seu Jordan com enorme talento na pista molhada e ocupando o segundo lugar entre as voltas 49 e 55. A seis voltas do final, seu carro parou com pane seca. Estava em terceiro. A Jordan ainda não tinha feito um GP inteiro naquele ano, com abandonos em Kyalami e Interlagos, e não sabia direito calcular o consumo de combustível de seu carro. “Sua atuação lembrou a de Ayrton Senna em 84 no GP de Mônaco”, escrevi. “Confesso que lembrei dele durante a corrida. Ave Maria estou andando que nem ele lá, disse para mim”, falou o garoto de 20 anos que fazia sua temporada de estreia na Fórmula 1. “Eu estava me sentindo o máximo. Só pedia a Deus que o câmbio não quebrasse. Pelo menos isso não aconteceu. Estou muito contente. Mas amanhã vou chorar o dia inteiro.”

          Fora da pista, as atenções estiveram todas concentradas na princesa Diana. Pela primeira vez Lady Di foi assistir a um GP ao vivo. A imprensa inglesa, furiosamente fofoqueira, dizia que ela estava tendo um caso com um certo James Gilbey, empresário que, entre outras coisas, era executivo de vendas da Lotus. Ela vestia blazer preto sobre uma camiseta branca, calça fuseau, sapatos marrons “e ainda usando aliança apesar de separada formalmente do príncipe Charles”, reparei. Levou ao autódromo os filhos William e Harry – então com 10 e 8 anos de idade, respectivamente. Passeou pelos boxes, colocou o caçula no cockpit do carro de Damon Hill, caminhou no grid debaixo de chuva e disse que adorou tudo. A única queixa foi de William, que achou os carros barulhentos demais.

          Senna saiu de Donington na noite de domingo com um troféu a mais para sua coleção e seguiu para a Alemanha. Especulava-se que iria se encontrar com dirigentes da Ford na Europa para tentar mais uma vez convencer a montadora americana a fornecer os mesmos motores da Benetton para a McLaren, mas ele desmentiu. Na verdade, passou dois dias reunido com a diretoria da Audi, marca que viria a representar no Brasil ainda naquele ano. Chegou a São Paulo na sexta, 16 de abril, como líder do campeonato e sem contrato para a corrida seguinte, em Ímola.