Blog do Flavio Gomes
F-1

WILSINHO

SÃO PAULO – Meu Wilsinho guiava um carro vermelho e seu capacete era azul claro com uma faixa amarela no meio. Para tudo há explicações. Dos três irmãos, dois tinham idade suficiente para brincar de autorama. Vieram dois carros. Um era preto com os decalques dourados. Emerson Fittipaldi. Ficou para o irmão mais velho, que […]

SÃO PAULO – Meu Wilsinho guiava um carro vermelho e seu capacete era azul claro com uma faixa amarela no meio. Para tudo há explicações. Dos três irmãos, dois tinham idade suficiente para brincar de autorama. Vieram dois carros. Um era preto com os decalques dourados. Emerson Fittipaldi. Ficou para o irmão mais velho, que quase sempre tem a primazia nessas horas. Se o mais novo resolve questionar alguma coisa, leva um sopapo na orelha e fica quieto. O outro era vermelho, e o pai, para acomodar aquela situação, informou ao mais novo, eu, no caso, que era o carro do Wilsinho. Quem é o Wilsinho? Irmão do Emerson.

Num primeiro momento, a crise previsível foi debelada pela aquiescência do mais novo, eu, no caso. Mas faltavam algumas informações, e uma delas era: quem é o irmão mais velho, o Wilsinho ou o Emerson? A pergunta cabia, numa conjuntura em que quase todas as decisões familiares eram tomadas considerando as benesses concedidas ao primogênito. Quem senta na janela da esquerda da Belina? O mais velho escolhe, se ele quiser, é ele. De quem é o bife mais torrado? Do mais velho, claro. Quem vai no banco da frente no carro quando a mãe não está? Ora, o mais velho. Sendo assim, havia uma chance de eu ficar com o carro preto com decalques dourados, que conhecia das fotos da revista “Manchete”. Era meu preferido, ainda que a prioridade da escolha fosse do mais velho, por óbvio. Alguma astúcia nessas horas pode funcionar. A estratégia foi recorrer à lógica. Usar a arma do mais velho contra ele mesmo.

O Wilsinho é o irmão mais velho, informou o pai.

Bingo. Sendo o carro preto com decalques dourados aquele pertencente ao irmão mais novo, por silogismo no mundo dos autoramas ele deveria ser destinado ao irmão mais novo, eu, no caso.

Fiquei com o vermelho.

Assim, meu Wilsinho passou a ser o piloto do carro vermelho e seu capacete era azul claro com uma faixa amarela no meio. Ganhava uma ou outra corrida na pista cinza que tinha um contador de voltas barulhento e ocupava considerável área da sala, o que não representava maiores problemas dada a escassez de mobília. Com o tempo, passei até a simpatizar com aquele capacete. Mas não tardei a descobrir que o Wilsinho de verdade guiava um carro branco de frente enorme e seu capacete não era azul claro com uma faixa amarela no meio, e sim verde escuro com gotas amarelas no cocuruto. Deu para ver bem em Interlagos, ele estava em primeiro lugar na primeira volta, algo que meu Wilsinho conseguia de vez em quando, até que o carro preto com decalques dourados o alcançasse e passasse, o que aconteceu também em Interlagos, mas para secreto gáudio do mais novo, eu, no caso, quebrou no final e ganhou o outro carro branco de frente enorme, e para mim, ali, naquele dia, não importa o que digam, fez-se a justiça divina.

Vinte anos depois, creio que a conta é exata, e se não for é perto disso, o mais novo, eu, no caso, estava na França cobrindo uma corrida de Fórmula 1 e o filho de Wilsinho fazia seu primeiro ano na categoria. Christian, seu nome, que usava um capacete igual ao do pai, mas com as cores invertidas. Era um menino, 21 anos. Sábado de manhã, treino livre, daqueles que poucos viam, chega a notícia de que bateu forte não sei onde, e descemos para o caminhão da Minardi, sua equipe, e as informações eram desencontradas até que chega Wilsinho chorando.

Chorando pelo filho machucado, quinta vértebra cervical, chorando por, e isso sou eu quem está deduzindo, sem base alguma na realidade, ter sido tão rigoroso com seu menino desde a infância, talvez se sentindo culpado por tê-lo levado até ali, será que aquilo tudo era mesmo necessário? Christian voltou ao autódromo de tarde, depois de passar pelo hospital. Usava um colar imobilizando seu pescoço. Wilsinho olhava e seus olhos se enchiam de lágrimas.

(Naquela tarde entrevistei Ayrton Senna depois da definição do grid, como sempre fazia, e quando perguntei do acidente do Christian ele se espantou: “O que aconteceu? Ninguém me avisou nada!”. Não ficou sabendo. Um piloto se estabacava num treino livre, era levado para o hospital e os outros nem sabiam direito. A Fórmula 1 era muito diferente.)

Christian perdeu três corridas, quando voltou não conseguiu se classificar para duas, os olhos cheios de lágrimas, mas no Japão ele chegou em sexto, fez seu primeiro ponto, os olhos ficaram cheios de lágrimas novamente e no fim deu tudo certo.

Àquela altura, Wilsinho já tinha cumprido seu destino, um destino improvável que ele desafiou diante de todas as improbabilidades do mundo das corridas, depois de construir karts, viajar para a Alemanha para descobrir como fazer um Fórmula Vê — e fazer –, correr pela Willys e pela Dacon, construir um Fusca com dois motores, montar um protótipo com o nome de Fitti-Porsche, disputar a Fórmula 3 Inglesa, a Fórmula 2 Europeia, o Mundial de Fórmula 1 (35 GPs, um quinto em Nürburgring como melhor resultado; em Interlagos, naquele dia em que a justiça divina foi feita, chegou em terceiro mas não valia para o campeonato) e montar uma equipe na avenida Senador Teotônio Vilela número 450, onde hoje, se bem me lembro, porque passo por ali sempre, fica uma loja de autopeças.

Que deveria ter sido transformada num museu para contar a façanha das façanhas, a Copersucar, oficialmente Fittipaldi, mas que já em 1975, depois de um ano de trabalho árduo que beirava a insanidade, nascia com o nome do patrocinador, hoje chamam isso de naming rights, hoje acham que uma equipe se chamar Red Bull, marca de bebida energética, é algo muito moderno, isso porque não sabem que trinta anos antes uma equipe levava o nome de uma cooperativa de produtores de açúcar.

No Brasil.

O Brasil nunca entendeu a Copersucar. Pior que isso, tratou a Copersucar com desdém, jornalistas de futebol deslocados para a cobertura de corridas de automóvel, afinal o Brasil passara a ganhar corridas de automóvel com o irmão do Wilsinho, aludiam à equipe em tom de deboche, cospe-açúcar, não entendiam patavina, jamais compreenderam a dificuldade de escalar aquela montanha, uma equipe de Fórmula 1 montada na avenida Senador Teotônio Vilela número 450, o endereço nem era esse, acho que se chamava Estrada do Rio Bonito, o senador Teotônio Vilela era vivo e não era nome de avenida nenhuma, ninguém sabia como se fazia um carro, muito menos um carro de Fórmula 1, bateu e pegou fogo na primeira corrida, cospe-açúcar, o carro perdia a roda e o piloto corria pela pista para salvar o pneu, tartaruga, cágado, fracasso, fiasco.

A Copersucar viveu de 1975 a 1982, nos últimos anos deixou de cuspir açúcar e o Brasil cuspiu nos Fittipaldi, ainda que três vezes tenha ido ao pódio, ainda que tenha terminado o campeonato de 1978 na frente da Williams, da McLaren e da Renault, ainda que em 1980 tenha terminado o campeonato na frente da Ferrari, sim, da Ferrari, até fechar as portas e levar Wilsinho à falência.

Em 1998, alguém me disse que tinha visto dois carros da Copersucar numa oficina em Interlagos, peguei meu carro e fiquei rodando pelo bairro, perguntando aqui e ali, até encontrar a tal oficina, e olhei lá dentro e era verdade, havia dois carros da Copersucar, um em cima do outro. Era hora do almoço, eu tinha uma máquina fotográfica, entrei e pedi para fotografar, o funcionário disse que eu teria de ser rápido porque se o patrão chegasse me expulsaria dali, acabou a bateria da máquina, saí correndo, encontrei o diabo da pilha para aquela máquina numa loja de fotografia, Fotoptica, Curt, Fujifilm, sei lá, voltei correndo, bati as fotos, saí correndo.

Estavam jogados nos fundos de uma oficina escura e úmida, na carenagem prateada de um deles estava pintado o nome de Ingo Hoffmann, no outro, e aqui talvez eu esteja adaptando minha memória às necessidades do momento, no outro estava o nome do Wilsinho.

Saiu no jornal em que eu trabalhava, fiquei muito orgulhoso. Se me permitem, eis as fotos.

E assim termina minha história com Wilsinho. Depois disso ainda o encontrei aqui e ali, ganhou duas vezes as Mil Milhas, uma delas correndo com o Christian, acho que nunca soube direito quem eu era, o que em nada me incomoda, porque sempre me cumprimentava com cortesia e educação, um sorriso largo e a voz grave e rouca, um sotaque fittipáldico muito característico dos membros dessa família que tanta coisa realizou e ainda realiza, como não?, com seus descendentes que seguem correndo pelo mundo e o chamam de tio Wilsinho.

O que de fato interessa neste relato razoavelmente presunçoso, dada a desimportância de quem o faz, eu, no caso, é que, como vocês, notei que no carro vermelho do meu Wilsinho não se vê mais nenhum sinal do capacete azul claro com uma faixa amarela no meio, o que significa que ele partiu e não sei se o veremos mais.