Blog do Flavio Gomes
F-1

AS REGRAS

SÃO PAULO (vai longe) – Sabe o que achei mais interessante nesse caminhão de comentários de todo mundo aqui, e na TV, e no rádio, e nos jornais? O quanto as pessoas acham que conhecem o regulamento da F-1. Sem lê-lo. Deixei para hoje para destrinchar a letra fria das regras. Primeiro: não há nada […]

SÃO PAULO (vai longe) – Sabe o que achei mais interessante nesse caminhão de comentários de todo mundo aqui, e na TV, e no rádio, e nos jornais? O quanto as pessoas acham que conhecem o regulamento da F-1. Sem lê-lo. Deixei para hoje para destrinchar a letra fria das regras.

Primeiro: não há nada no regulamento sobre “devolver posição”. É praxe, apenas. O que está motivando toda essa discussão sobre a justiça (ou injustiça) da punição a Hamilton é algo que não consta de regra alguma: o asfaltamento das áreas de escape nas pistas que recebem a F-1.

Vamos aos fatos. O documento que descreve a punição, aliás, usa esse termo: fatos. No caso, no original em inglês: “Facts: cut the chicane and gained advantage”. A sentença é uma conclusão dos três comissários esportivos do GP da Bélgica. Eles partem desse princípio: cortou a chicane e ganhou vantagem.

OK. Segundo: vamos às regras. O documento informa no item “offence” que Hamilton desrespeitou o artigo 30.3 (a) do Regulamento Esportivo da F-1 e o Apêndice L, capítulo 4, artigo 2 (g) do Código Esportivo Internacional. O primeiro é específico para a F-1. O segundo dá normas gerais para tudo que é corrida reconhecida pela FIA.

O artigo 30 do Regulamento Esportivo da F-1 versa sobre “General safety”, segurança em geral. O item 30.3, que Hamilton desrespeitou, diz: a) durante treinos e corrida, os competidores devem usar apenas a pista e observar, durante todo o tempo, os preceitos do Código (Esportivo Internacional) relativos ao comportamento de pilotagem nos circuitos (a tradução é livre e ruim; no original, “during practice and the race, drivers may use only the track and must at all times observe the provisions of the Code relating to driving behaviours on circuits”).

O Apêndice L, capítulo 4, artigo 2 (g) do Código Esportivo Internacional, que Hamilton também desrespeitou segundo os comissários, diz: “The race track alone shall be used by the drivers during the race”. Ou: “A pista, e só ela, deve ser usada pelos pilotos durante a corrida”.

Parece de uma obviedade estarrecedora, e é. Só que não funciona mais nas pistas da F-1. Pelo simples fato de que asfaltaram as áreas de escape. E elas, que têm como função primordial parar os carros que escapam do “leito carroçável”, viraram parte da pista. Quando as asfaltaram, não foi para perdoar erros, mas sim por motivo de segurança. A brita pode até frear carros desgarrados, mas pode capotá-los, também. No asfalto, o piloto soca o pé no freio e o carro pára. Freio é o que de mais eficiente um carro de F-1 tem.

Mas pilotos são espertos, e nos últimos anos passaram a adotar as áreas de escape como extensão da pista. Ficou mais fácil buscar os limites, porque um erro é perdoado pelas enormes áreas asfaltadas. Vai lá fora e volta. Pronto. Ninguém fala nada, mesmo, vamos embora. Repare na foto à esquerda. Tem um carro passando ali onde minha seta tosca aponta. É área de escape. Agora olhe os outros que estão na pista, como estava fácil a vida deles. Se deu bem o cabra lá de fora? Sim. Foi punido? Não.

Em tese, qualquer passagem por uma área de escape, que não é pista, traz vantagem a quem a utiliza. Pode-se categorizá-las: vantagem porque errou o traçado e conseguiu voltar; vantagem porque freou tarde e não bateu em nada; vantagem porque tentou uma ultrapassagem difícil, não deu certo, e pôde evitar o choque com outro carro. E por aí vai. Usar a área de escape sempre trará uma vantagem. É uma verdade absoluta, indiscutível, indivisível.

(Aqui, acrescento, tardiamente, algo que um blogueiro já comentou: pelas regras, a disputa entre Massa e Kubica no Japão no ano passado deveria resultar em banimento dos dois de todas as corridas para todo o sempre. Foi um dos momentos mais belos da F-1 não dos últimos, mas de todos os tempos. E eles só não usaram as arquibancadas porque tinha grade e muro para impedir.)

Em outras palavras: pela letra fria da regra, qualquer passagem por uma área de escape deveria ser punida com drive-through. No caso da corrida de ontem, a primeira curva deveria resultar, pelo critério usado para punir Hamilton, em punições a cinco ou seis pilotos (Raikkonen inclusive) — todos que esparramaram na La Source, foram lá fora da pista e voltaram. Esses não tiveram vantagem nenhuma? Ora, se houvesse um muro, teriam batido; se houvesse brita, teriam atolado. Veja na foto ao lado: quem se saiu melhor? O coitado que ficou na pista, cheio de carros à frente, tendo de dosar o pé direito para não encher a bunda de alguém, ou os espertinhos que foram para a área de escape, enorme e generosa (derrubaram muita árvore para fazer isso aí), podendo acelerar à vontade para despencar em aceleração plena rumo à Eau Rouge? Onde você preferiria estar nessa hora? No leito da pista ou “cortando a chicane”, para usar termo em voga?

Os pilotos que espalharam na La Source na largada tiveram vantagens, sim. E nada aconteceu com eles.

Agora tentem relembrar as corridas recentes. Quantas vezes vimos pilotos atravessarem curvas para passear no asfalto que não é pista? E voltaram na boa. Não passaram ninguém? Pode ser. Mas obtiveram a inestimável vantagem de continuar na corrida. Como estabelecer a hierarquia das “vantagens” e a partir delas determinar o tamanho das punições? Vantagenzinha não dá em nada; vantagenzona dá em drive-through. Sorry, para mim vantagem é vantagem.

O grande problema é julgar situações semelhantes com critérios diferentes. Área de escape não é pista, e todo e qualquer piloto que utiliza essas muletas asfálticas está levando alguma vantagem e desrespeitando os mesmíssimos artigos, capítulos e itens dos regulamentos e códigos que Hamilton, de acordo com os comissários, desrespeitou.

E ninguém nunca foi punido por isso.

Quanto à história de devolver a posição, continua valendo o que eu disse ontem. É aquela regra não-escrita, que todos respeitam porque é como uma admissão de culpa — “olha, gente, caguei, errei o ponto, passei o cara, mas estou devolvendo a posição, por favor não me enforquem em praça pública”. E vem funcionando, os comissários compreendem que houve boa-vontade, e esquecem a única regra que trata do assunto, que é a história de não usar a pista (regra que, insisto, é totalmente boba considerando o tanto de áreas de escape asfaltadas das pistas atuais).

Portanto, macacada, revejam seus conceitos. Regra deve ser respeitada, sim, mas deve valer para todo mundo. E essa aí, de “usar apenas a pista”, só valeu para Hamilton.