Blog do Flavio Gomes
F-1

DESEMBUCHA, MEU FILHO

SÃO PAULO (mas…) – Barrichello deu entrevista à “Playboy”. Claro que falou sobre a corrida da Áustria de 2002, a mais célebre presepada da história da F-1. Que completa dez anos agora, sábado, dia 12. Este post será longo, preparem-se. Porque tenho na parede do meu escritório, casualmente, uma página do “Diário do Povo” de […]

SÃO PAULO (mas…) – Barrichello deu entrevista à “Playboy”. Claro que falou sobre a corrida da Áustria de 2002, a mais célebre presepada da história da F-1. Que completa dez anos agora, sábado, dia 12. Este post será longo, preparem-se. Porque tenho na parede do meu escritório, casualmente, uma página do “Diário do Povo” de Campinas, um dos jornais para os quais escrevia na época, com a cobertura da prova. Vou reproduzir trechos do que escrevi e, principalmente, do que Rubens e Schumacher disseram imediatamente após a prova. No caso do brasileiro, declarações que nem sempre combinam com o que ele passou a falar depois sempre que chamado a comentar o episódio. Schumacher também odiou tudo aquilo. Tanto que colocou Rubens no degrau mais alto do pódio e fez com que o troféu do vencedor fosse entregue a ele.

Comecemos com trechos da entrevista à “Playboy”, grifos meus.

Foram oito voltas de guerra. É muito raro eu perder a calma, mas, naquele rádio, saiu gritaria. Fui até o final, até a última curva, falando que não ia deixar ele passarAté que eles falaram algo relacionado a alguma coisa mais ampla. Não era contrato. Era uma situação que deixou no ar. Eu não posso contar o que eles falaram, mas foi uma forma de ameaça que me fez refletir se eu teria de repensar a minha vida, porque o grande barato para mim era guiar.”

Bem, eu estava em Zelweg naquele fim de semana. Não vou dizer que “lembro com detalhes, como se fosse hoje, o olhar perdido de Rubens no horizonte”. Não lembro de porra nenhuma. De Zeltweg, eu lembro mesmo é de tomar leite na máquina de Frisch-Milch da fazendinha onde a gente alugava quartos.

Mas nada como ler o que foi escrito no frescor dos acontecimentos. A saber, da minha lavra:

Enquanto o título mundial de pilotos não estiver matematicamente definido em favor de Michael Schumacher, Rubens Barrichello está proibido de ganhar corridas na Fórmula 1 se o alemão estiver na pista. “Acho que é isso mesmo”, disse o brasileiro ontem em Zeltweg, depois da maior demonstração de subserviência de um piloto, e de soberba de uma equipe, da história da categoria.

Este trecho é parte do “lead”, o primeiro parágrafo do texto enviado aos meus jornais, que em seguida descrevia factualmente o que aconteceu: Barrichello foi melhor o fim de semana todo, liderou de ponta a ponta e a poucos metros da linha de chegada tirou o pé para o alemão vencer. Foi a quinta vitória de Schumacher em seis corridas naquele ano. O título era a maior barbada da história.

Depois, coloquei algumas aspas dos dois pilotos, mencionei as vaias do público e segui com algumas frases de personagens no paddock.

A ordem do time, indefensável do ponto de vista moral, foi condenada por todos que se dispuseram a falar sobre o assunto no paddock de Zeltweg após a corrida, exceção feita a um ou outro integrante da Ferrari. “Vergonhosa”, disse Flavio Briatore, diretor da Renault. “Ninguém deveria se surpreender, é assim que a Ferrari trabalha”, falou Ron Dennis, da McLaren. “A FIA, que organiza isso aqui, deveria fazer alguma coisa”, acrescentou Gerhard Berger, da BMW. “Se fosse meu marido, jamais deixaria passar”, comentou Connie, a namorada de Montoya. “Ainda bem que não corro na Ferrari”, completou o colombiano.

A seguir, descrevo o ambiente na sala de imprensa, com Barrichello posicionado entre os outros dois pilotos que foram ao pódio, Montoya e Schumacher, no lugar normalmente destinado ao vencedor. Uma papagaiada que ele não deveria aceitar, claro, mas naquela hora é compreensível que não tivesse muita cabeça para pensar nisso. Conto que Jean Todt fez questão de acompanhar a coletiva pessoalmente, algo inédito. E relato que foram todos vaiados pelos jornalistas quando chegaram à sala, até que a entrevista fosse bruscamente interrompida depois que um sueco (provavelmente meu amigo Fredrik Petersens) perguntou por que, afinal, existia um campeonato de pilotos, se todos eles justificavam as ordens de box com o argumento de que o Mundial é disputado por equipes. Como ninguém soube responder, se levantaram e foram embora. E termino assim:

O domingo da vergonha em Zeltweg ficará marcado como a maior presepada da história da F-1. Como o dia em que um atleta abdicou da vitória em nome de cláusulas contratuais e achou tudo normal. Como o dia em que outro atleta aceitou ganhar sem merecer. Como o dia em que uma corrida de F-1 não teve vencedores.

Esses trechos são legais para se entender como a decisão da Ferrari foi execrada por todos, e como os pilotos tentaram, apesar de suas caras de tacho, passar uma certa sensação de normalidade. Tentativa evidente nas declarações literais de ambos, a parte mais importante do catatau a que estou submetendo meus pobres blogueiros.

Primeiro, o “ping-pong” com Barrichello. Editado, mas não muito. Em negrito, as perguntas. Em vermelho, frases que julgo importantes para que sejam comparadas ao que Rubens passou a declarar em todas as entrevistas posteriores para falar sobre Áustria/2002.

O contrato vale esse preço?
Eu tenho duas opções: ter um carro que não me dá condições nunca, ou um carro que me dá condições de vencer. (…) Hoje lutei com todas as minhas forças para ganhar a corrida. No final eles me pediram para deixar passar. Eu tentei conversar, dizendo que seria um gesto que causaria muita polêmica. E eles falaram que era uma decisão do time e ponto final. Nem discuti mais. Eu me sinto acima disso tudo. Saio daqui como vencedor.

Você passaria, no lugar de Michael?
É difícil. No passado, tive situações assim em outras equipes, como a Stewart. Eu classifiquei atrás do Magnussen e o Jackie Stewart ofereceu o motor melhor para mim na corrida mesmo assim. Não aceitei, porque não era o combinado. Mas não estou revoltado. (…) Acho que vou ganhar uma hora ou outra, ponto final.

Por que não desobedeceu?
Eu acho que ia fazer mais mal do que bem. Acabei de assinar um contrato. O ambiente ia ficar muito pesado. Entre eu e Michael, não. Mas na equipe, sim. (…) Hoje eu larguei para vencer sem nunca pensar que na última volta eles iriam me pedir o que pediram.

Está proibido de vencer, até se definir o título?
É o que parece, com certeza. (…) Mas já aconteceu, não vou ficar chorando as pitangas agora. (…) Estou contente com o que aconteceu? Não, eu queria ter ganhado esta prova. (…) Mas foi uma decisão da equipe, ponto.

O que significou Michael tê-lo chamado para o degrau mais alto do pódio?
Eu me dou muito bem com ele. É um superpiloto, tenho muito orgulho de ser companheiro dele, é um cara acima da média. Se eu ganho uma corrida em cima dele, é porque estou indo muito bem, obrigado.

Quando veio a ordem?
Veio a três voltas do final. E veio tarde, né? Eu pensava, “não está vindo nada, vindo nada”, aí veio. No ano passado foi diferente, a gente passou muito tempo falando pelo rádio. Desta vez eles disseram que era para fazer, eu fiz e acabou.

A entrevista de Schumacher também é interessantíssima. Depois comentamos tudo. Alguns trechos:

A primeira vitória na Áustria, dá para comemorar?
É óbvio que não (…). No ano passado eu até me envolvi naquela situação, porque o campeonato estava mais apertado. Hoje, antes da corrida, me perguntaram se algo parecido iria acontecer e eu disse que nem estávamos pensando em estratégia. Aí eles me avisaram para passar e eu não fiquei satisfeito, como Rubens. Mas temos de olhar para as ambições e objetivos do time, que são os títulos.

Qual o papel de Rubens?
(…) Seu gesto mostra como trabalhamos juntos, a confiança que temos um no outro. (…) O que ele fez por mim não é normal. Eu gostaria de não ter recebido a ordem pelo rádio. Para mim, seria melhor terminar do jeito que estava.

Há justificativa para a ordem?
Não sei quem deu a ordem, provavelmente Montezemolo, passando por Todt, e por aí vai. É preciso entender que a Ferrari investe muito dinheiro para ser campeã. Imagine se a gente perde o campeonato por causa desses pontos (…). Não sou totalmente a favor disso, mas ninguém sabe o que vai acontecer no futuro. (…) Disse a ele no pódio que espero que este campeonato se defina logo para que a gente possa disputar corridas de verdade.

A credibilidade da F-1 está afetada?
(…) Esse tipo de coisa aconteceu muitas vezes antes. Se fosse na última corrida do ano, ninguém iria estar discutindo. Que diferença faz acontecer agora ou no fim? (…) Infelizmente para ele a situação nos pontos é favorável a mim. Não fosse isso, acho que não pediriam para ele me deixar passar.

Por que não desobedeceu?
Eu pensei muito sobre essa possibilidade, e por isso estava torcendo muito para que não me dessem ordem nenhuma. Se você olhar a telemetria, vai ver que na reta Rubens tirou o pé, e eu tirei também para não passar. Mas aí ele quase parou o carro. Lá dentro, não dá tempo para pensar muito nessas horas. Eles me avisaram nos últimos metros que Rubens iria me deixar passar. Na hora eu achei que era a decisão errada. Se tivesse a chance de voltar atrás, não passaria. Mas agora não posso fazer mais nada.

Legal. O que depreendo disso tudo é que ou o tempo afetou a memória de Rubens, ou ele mentiu depois da corrida. Por suas declarações, não houve muito papo. Pediram, aceitou, tchau. No ano anterior, falou-se mais. Foi a prova em que ele entregou o segundo lugar a Schumacher, também na Áustria. Será que confundiu as duas?

Dez anos depois, à “Playboy”, ele fala em “ameaças”, situações que não tinham a ver com contrato, “alguma coisa mais ampla” que ele não pode contar.

É inevitável lembrarmos da história maluca publicada em 2008 num livro do jornalista Lemyr Martins, que reproduziu um e-mail apócrifo que muita gente recebeu, ainda em 2002. O texto falava em sequestro da mãe e até no cachorrinho da família latindo no rádio. Daquelas piadinhas de internet, como a venda da Copa de 1998 pelo Brasil à França, ou a ONG bancada pelo governo brasileiro para defender que Plutão fosse reconhecido novamente como planeta.

O problema todo é que Rubens não fala. Joga as coisas no ar e não conta a verdade. Se é que há alguma verdade além daquilo que ele e Schumacher falaram logo depois da corrida. Há contradições entre o que foi dito no dia 12 de maio de 2002 e o que ele diz agora à revista. Teriam sido oito voltas de discussão ou três? Houve mesmo uma discussão, ou “eles disseram para fazer, eu fiz e acabou”? E como é que depois disso tudo ele ainda ficou mais três anos numa equipe que o ameaçava pelo rádio? Que espécie de relação patrão-empregado é essa, e como aceitá-la tanto tempo calado? Em nome do quê?

Desconfio que, nestes dez anos, o tempo embaçou a memória de Barrichello, as lembranças foram-se tornando cada vez mais turvas e confusas e ele não lembra mesmo de porra nenhuma.

Eu, pelo menos, lembro do leite fresco.