Blog do Flavio Gomes
Autódromos

SAUDOSA MALOCA (2)

SÃO PAULO (tá ruim, mas tá bom) – Interlagos é um negócio muito sério. Só quem frequenta isso aqui entende. Só quem gosta tanto disso aqui é capaz de perdoar todos seus defeitos e erros. Para gostar de Interlagos, é preciso entender e perdoar. Por isso, entendo que o autódromo tenha sido entregue para a […]

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SÃO PAULO (tá ruim, mas tá bom) – Interlagos é um negócio muito sério. Só quem frequenta isso aqui entende. Só quem gosta tanto disso aqui é capaz de perdoar todos seus defeitos e erros. Para gostar de Interlagos, é preciso entender e perdoar.

Por isso, entendo que o autódromo tenha sido entregue para a corrida-coxinha de 2015 em obras. Sim, em obras. O novo prédio de seis andares, que ainda não sei qual função terá, está semipronto. Uma das paredes externas, voltada para o paddock, ainda está no tijolo. Aquele tijolo cinza, que será pintado de branco um dia. Não tem reboco. Tipo tijolo baiano. Cinza. Uma maloca querida. Inacabada.

Assim como o segundo andar da estrutura nova que recebe os escritórios das equipes, também por terminar. Os escritórios, prontinhos. Cada um com 210 metros quadrados. Dá para cozinhar, colocar mesas e cadeiras bonitas, de design, sabe?, painéis dos patrocinadores, fotos gigantescas, máquinas de café expresso, acabou o aperto. A fachada é toda de vidro. Como vão proteger essa vidraiada toda quando não tiver corrida? Isso aí não sei, tem de ver.

[bannergoogle] A parte de cima, eu dizia, está em obras e não será usada. Como aquele barraco que ganhou um segundo andar, mas a grana foi curta para massear e pintar — eu sei, “massear” não existe, mas diz isso pro cabra que tá levantando as paredes. Tá tudo no tijolo. Cinza de novo. Um dia serão pintados, os tijolos, e vai ficar bonitão. Essa estrutura faz parte da segunda fase da reforma de 144 milhões de dilmas que a Prefeitura está realizando desde abril. Primeira fase, este ano: paddock mais largo (de oito para dez metros), prédio-novo-de-vidro-fumê, escritórios envidraçados para as equipes, a FOM, a FIA e o Bernie. Segunda fase, ano que vem: boxes, hospitality-centers, cobertura do paddock.

“Por que não acabaram?”, me pergunta um querido amigo jornalista, espanhol, ao lado de um colega argentino. Armo-me do discurso mais engajado e verdadeiro possível. Porque isso aqui, amigo espanhol e colega argentino, é a vida real. A vida real não é aquele paddock gigantesco de Xangai com escritórios flutuantes sobre o rio sagrado de Buda. Nem os boxes de Sepang com ar-condicionado. Nem a torre monumental do Bahrein. Nem a iluminação de Cingapura. Vejam o que foi feito da Índia, da Turquia, da Coreia. Que fim levaram aqueles autódromos? Quem vai pagar aquela conta?

Interlagos é um equipamento público e municipal, amigo espanhol, colega argentino e alemão enfadado que está torcendo o nariz para a maloca inacabada em cima dos escritórios envidraçados. A cidade tem prioridades, amigo espanhol, colega argentino, alemão enfadado e francês pentelho que se queixa da distância até a escada que leva à sala de imprensa. As prioridades são escolas, creches, avenidas, ônibus, postos de saúde, hospitais, tudo que um país pobre precisa, e não um autódromo feérico e luxuoso.

Além do mais, amigo espanhol, colega argentino, alemão enfadado, francês pentelho e inglês aborrecido que tropeçou num degrau não sinalizado, isso aqui é uma pista para carros correrem, e não um resort dez estrelas com restaurante do Guia Michelin. Precisa de asfalto, lugar para colocar os carros e fim de papo.

Interlagos está feio, mas continua bonito. A reforma pela metade (embora seja necessário dizer sempre que o que foi prometido para 2015 foi entregue) realmente incomoda, causa má impressão, mas é assim, ponto final, aceitemos, custa uma bala, leva tempo, o Brasil é desse jeito, São Paulo é desse jeito, a vida é desse jeito. Não está sobrando dinheiro aqui, não. Fizeram o que dava para fazer.

Mas é claro que a gente que ama Interlagos queria mais, queria que tudo estivesse pronto para poder usar o autódromo direito no ano que vem, vai ser foda, não vai ter box, a turma vai ter de se abrigar debaixo da laje, é um saco, é precário, é o cu da cobra, mas é assim. Pelo que se gasta por aí, 144 milhões não é uma fortuna, considerando o volume de obras. Para fazer tudo que pedem com dinheiro curto, é preciso ser austero, simplificar as coisas, concluir a maloca de forma modesta e despretensiosa.

O que Interlagos não pode perder é sua alma. A foto que tirei hoje mostra um cenário cinzento e pouco atraente. Feio, mesmo. Amanhã vai estar melhor, cheio de gente colorida no paddock, felizmente se esbarrando como sempre — os escritórios envidraçados são vizinhos de parede uns dos outros, o espaço aumentou, mas nem tanto, as caixas de equipamentos e os pneus vão atrapalhar menos, vai ser legal como sempre foi, essa é a alma de que estou falando.

Ano que vem o feio vai ficar menos feio, as pessoas vão elogiar, o cinza dos tijolos vai virar branco, espero que deem um trato no piso do paddock, está meio esculhambado, dá para melhorar, vamos nos acostumar com esse prédio esquisito de vidro fumê, com os escritórios de vidro e a parte de cima que não sei direito o que será, com a cobertura do paddock e com os boxes mais altos e espaçosos, vai ficar tudo bem.

Não é a primeira vez que Interlagos passa por uma cirurgia. E é só por causa delas que sobrevive. Nosso templo tem 75 anos. Temos de cuidar dele, amá-lo, jamais odiá-lo, jamais maldizê-lo.

Tá ruim, mas tá bom. É nosso, tá pago.

Mais sobre Interlagos: Massa critica “casa que começou e não acabou”, Américo Teixeira Jr. pede que autódromo volte a ser “centro do automobilismo nacional”, equipe do Grande Prêmio analisa o resultado das obras e diz que elas funcionaram, mas causam má impressão.