Blog do Flavio Gomes
Automobilismo internacional

A IMPLOSÃO DO AUTOMOBILISMO

MOGYORÓD (isso é só o fim) – A Porsche acaba de anunciar que no fim do ano deixa o WEC, depois de apenas quatro temporadas completas em sua volta ao Endurance na categoria LMP1. Foram três vitórias seguidas em Le Mans nesse período, em 2015/16/17, com o modelo 919 Hybrid. O anúncio pegou muita gente […]

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MOGYORÓD (isso é só o fim) – A Porsche acaba de anunciar que no fim do ano deixa o WEC, depois de apenas quatro temporadas completas em sua volta ao Endurance na categoria LMP1. Foram três vitórias seguidas em Le Mans nesse período, em 2015/16/17, com o modelo 919 Hybrid. O anúncio pegou muita gente de surpresa, porque a marca alemã estava comprometida com o campeonato até o fim de 2018. Ao mesmo tempo, a Casa de Stuttgart informou que vai migrar para a, adivinha, Fórmula E na temporada 2018/2019. Como a Mercedes. Como a Audi, que já está lá. Como a BMW, que entra na próxima.

Com a saída da Porsche, sobra, na LMP1, a Toyota como única equipe de fábrica do WEC. Mas os japoneses condicionavam sua permanência à participação de algum concorrente do mesmo nível. Sem os rivais alemães, é bem provável que no início da semana que vem a empresa também anuncie sua retirada.

O WEC, pois, acabou. Acabou como o conhecemos. As categorias de protótipos morrerão de inanição. A P1 não se sustenta com times independentes. Sem a P1, a P2 não faz muito sentido. A tendência — e isso escrevi aqui alguns meses atrás, acho mesmo que na época da deserção da Audi, ano passado — é que o Mundial de Endurance vire um campeonato de carros GT. Se sobreviver.

A decisão da Porsche veio à tona poucos dias depois de a Mercedes anunciar que vai deixar o DTM no fim do ano que vem, o que vai, igualmente, implodir o campeonato alemão de Turismo. Está todo mundo correndo para a competição dos elétricos de Alejandro Agag. E é pelos belos olhos do espanhol? Pela maravilha que são suas corridas? Pelo sucesso estrondoso do campeonato que neste fim de semana chega ao final de sua terceira temporada, apenas? Pelos lindos troféus em forma de temaki?

Não. Agag não tem olhos belos, nem todas as corridas são uma maravilha, o sucesso ainda não é estrondoso, os troféus são feios. Mas a Fórmula E, goste-se ou não, é o futuro. Melhor: os carros elétricos são o futuro. Melhor ainda: são o presente.

[bannergoogle]O que determinou essa migração velocíssima e abrupta das quatro gigantes alemãs foi o ritmo acelerado de decisões governamentais anunciadas na Europa sobre o uso de veículos movidos a gasolina, ou diesel. Alemanha, Inglaterra e Noruega são países que já estabeleceram prazos para: 1) encerrar a produção de motores a combustão em seu território; e 2) proibir sua circulação em definitivo. Esses prazos variam, mas, grosso modo, pode-se afirmar, sem medo, que em 2050 não vai ter mais nenhum carro emitindo poluentes no continente. O que Alemanha e Inglaterra decidirem será replicado muito rapidamente em países como Holanda, Bélgica, Suécia, Dinamarca, França, Portugal, Espanha, Finlândia, Islândia, Suíça, Itália, Áustria — até porque muitas dessas nações têm seus mercados automotivos abastecidos basicamente pelos alemães.

2050 está aí. Estamos falando de 33 anos. Mas, antes disso, da troca integral da frota circulante, será preciso que as fábricas se adaptem e acelerem seus projetos de carros elétricos que serão fornecidos para os países vizinhos. Isso implica em mudanças dramáticas de estrutura industrial, procedimentos de produção, construção de máquinas, nascimento de novos fornecedores, extinção de outros, formação de mão de obra, uma verdadeira revolução.

Claro que veículos movidos a derivados de petróleo ainda vão existir por bastante tempo, até porque mercados como o asiático (que inclui Índia e China, por exemplo), o africano e o americano (norte, sul e central) ainda vão demorar um pouco para entrar em definitivo na onda elétrica. Além do mais, caminhões e ônibus continuarão existindo e sua substituição por similares movidos a eletricidade vai levar mais tempo ainda.

Mas é um caminho sem volta. Porque é difícil imaginar um grupo como o Volkswagen, por exemplo, se converter definitivamente em fabricante de veículos elétricos na matriz alemã e seguir produzindo carros a gasolina, álcool e diesel nas suas plantas industriais espalhadas pelo mundo. Por algum tempo essas tecnologias vão conviver, claro, mas gradativamente as atividades das empresas terão de convergir para uma só.

O que estamos assistindo é ao fim de uma era, e ela está acabando muito rapidamente. E arrastando junto o automobilismo de competição da maneira que ele existe hoje. Na mesma semana, notem, “acabaram” o DTM e o WEC. Isso acontece porque as próprias categorias vinham convivendo com uma estabilidade falsa e frágil. Ambas dependiam de apenas três “players” cada — Audi, Porsche e Toyota no WEC, Audi, BMW e Mercedes no DTM. Uma defecção e a implosão seria inevitável. Alguém acredita que a P1 do WEC sobreviverá à saída de Audi e Porsche? E o DTM? Alguém aí acredita que Audi e BMW vão ficar sozinhas?

[bannergoogle]Enquanto isso, a Fórmula E vai juntando todo mundo, pela simples razão de ser  a única categoria existente de carros elétricos. É um laboratório muito útil — e necessário — para montadoras que têm pouco tempo para desenvolver a tecnologia que muito em breve será aplicada integralmente às suas linhas de produção. Basta olhar para quem já chegou (ou anunciou que chegará), em menos de três anos de vida: Renault, Citroën (DS), Jaguar, Audi, Mahindra, BMW, Mercedes, Porsche e as puramente elétricas e/ou start ups como NextEV, Venturi e Faraday Future.

Essa turma está saindo na frente. A indústria americana ainda não se mexeu (GM, Ford, Fiat/Chrysler), e também estão em silêncio a coreana e a japonesa. Mas é questão de pouco tempo para isso acontecer. Junte-se à perspectiva de um futuro totalmente elétrico a previsão igualmente segura de que em questão de poucas décadas os automóveis serão autônomos e de uso compartilhado, para entender por que o automobilismo, inclusive a Fórmula E, está com os dias contados.

Não estamos falando de ficção científica, e sim de algo que já está em desenvolvimento e em testes sob o comando de corporações gigantescas como Google, Facebook, Airbus, Tesla, Waze, Uber e o escambau de Madureira se fundindo, interagindo, trabalhando de forma conjunta para chegar a um modelo de mobilidade urbana que será totalmente diferente daquilo que conhecemos hoje. Carro não será mais carro, será “plataforma”, “aplicativo”, “ferramenta”, “gadget”.

Para tentar uma comparação: procurem lembrar como uma pessoa de 30 anos olhava para um computador em 1970 e como uma pessoa de 30 anos olhava para um computador em 2000. Em 1970, computador era uma máquina indecifrável que ocupava um andar inteiro de um prédio e precisava de um exército de especialistas para programá-lo, abastecê-lo com dados e deles extrair informações úteis. Ninguém jamais imaginaria ter um troço daqueles em casa.

Três décadas depois, o sujeito entrava no Mappin e saía da loja com um laptop debaixo do braço capaz de realizar zilhões de operações a mais que o monstrengo de 1970. Avancem um pouco a fita e o celular que seu filho usa hoje faz tudo isso e muito mais.

Com automóvel, será igual. Algo que a geração dos meus avós achava inacessível, meus pais já viam como bem de consumo possível. E eu ganhei um. Carro nunca foi, portanto, um bem inacessível para a minha geração. Ou seus pais te davam, ou você conseguia comprar com poucos meses de salário. Hoje, o jovem não enxerga o carro como bem de consumo nem fácil, nem difícil. Apenas o vê como um objeto necessário para ir de um ponto para o outro, e que só tem sua existência “validada” porque pode ser obtido a qualquer hora e em qualquer lugar por um aplicativo de celular. Se algo não pode se materializar através da tela do iPhone, é como se não existisse na vida real das gerações atuais.

Por isso, não há nenhum interesse muito especial por automóveis entre os mais jovens. Eles dão ao carro a mesma importância que atribuem ao Tinder, ao Instagram, ao Spotify. É apenas mais uma coisa que dá para “acessar” ou obter pelo celular — como um namorado, uma foto e uma música. Nesse cenário, achar que as próximas gerações terão algum interesse por corridas entre essas coisas quase inanimadas que conseguem chamar pelo celular é ser um pouco otimista demais com o futuro do automobilismo.

A Fórmula E entrará nesse balaio, mais cedo ou mais tarde. Ela não está atraindo todo mundo, como disse lá em cima, porque é demais, espetacular, sensacional, empolgante, emocionante, inesquecível. Está atraindo todo mundo porque a indústria automobilística vai precisar dela em curto e médio prazo para desenvolver produtos e serviços que, daqui a alguns poucos anos, serão utilizados por gerações de seres humanos muito pouco interessados em saber qual desses produtos corre mais.

Desde que possam arranjar um deles por um aplicativo, realmente tanto faz.