Blog do Flavio Gomes
F-1

O MUNDO É TEU, SEBASTIÃO

SÃO PAULO (fará falta) – Não há um sorriso sequer nos quatro minutos e dois segundos que Sebastian Vettel usou para informar que vai parar de correr. Mas sobram belas palavras. Talvez as mais belas que um piloto de Fórmula 1 já tenha dito sem apelar para fórmulas fáceis. As mais sinceras, serenas, genuínas, verdadeiras, […]

SÃO PAULO (fará falta) – Não há um sorriso sequer nos quatro minutos e dois segundos que Sebastian Vettel usou para informar que vai parar de correr. Mas sobram belas palavras. Talvez as mais belas que um piloto de Fórmula 1 já tenha dito sem apelar para fórmulas fáceis. As mais sinceras, serenas, genuínas, verdadeiras, maduras. Pensadas.

Vettel não saiu falando dele, propriamente, deixou de lado a tentação que todos nós teríamos de exaltar nossos feitos, evocar nossas próprias façanhas. E olha que ele teria muito para dizer. Em vez disso, nos convidou a refletir sobre o futuro, as crianças, o mundo, a vida. “As marcas que deixei na pista vão ficar até que o tempo e a chuva as levem embora.”

Dá para ser mais profundo que isso?

Faltou o sorriso, mas ele talvez fosse tristemente falso nessa hora. Ou falsamente triste. Porque Sebastian não está exatamente… feliz. Aliás, quem consegue ser realmente feliz nestes tempos tão sombrios?

É só um piloto que vai parar de correr, dirá alguém — nos dias de hoje, tanta gente. Puta frescura. Mimimi. Deixa de viadagem. Já ganhou bastante dinheiro. Que importância tem isso? Piloto decadente. Virou um lacrador.

(Lacrador. Certas palavras têm sido acompanhadas de tanto ódio que doem-me os dedos ao batucá-las no teclado. Lacrador.)

Vettel se preocupa com o meio ambiente. Afronta governos — sim, afronta governos como fez na Arábia Saudita e no Catar ao pintar o arco-íris no capacete, na camiseta, no tênis, nas palavras. Fala de amor, amor livre. Fala sobre inclusão, diversidade. Luta contra o racismo. Se irrita com as injustiças. Defende aquilo em que acredita. Questiona até a existência da F-1 como algo relevante. Fala de coisas que pilotos não falam, do alto de uma carreira não menos que espetacular — a saber, se me permitem um manancial de números que soarão aborrecidos num momento tão especial: 289 GPs (vai parar faltando unzinho para os 300 redondos), 53 vitórias (o terceiro maior da história), 57 poles (o quarto), 122 pódios (o terceiro), 3.499 voltas na liderança (o terceiro), 106 GPs liderados (o terceiro), 15 poles numa temporada (o primeiro), 13 vitórias num ano (o primeiro) e nove seguidas (o primeiro), campeão aos 23 anos, quatro meses e 11 dias (o mais jovem), quatro títulos (só três conseguiram mais).

Nascido na pequena cidade alemã de Heppenheim, 25 mil almas, em 3 de julho de 1987, Sebastian apareceu num fim de semana de GP pela primeira vez em 25 de agosto em 2006. Há uma doce coincidência na data: exatos 15 anos depois da estreia de outro alemão na F-1, um tal de Michael Schumacher — que largou para sua primeira corrida em 25 de agosto de 1991, na Bélgica.

Vestia um macacão branco meio folgado com a hélice azul e branca da BMW no peito. Naquela temporada, as equipes puderam usar um terceiro carro nos treinos livres da sexta-feira. Aos 19 anos recém-completados, foi escalado pela Sauber para andar no circuito de Istambul, que recebia a categoria pela segunda vez. No primeiro treino, ficou em oitavo. Depois da segunda sessão, recolheu suas coisas nos boxes levando na mochila uma folha de papel dobrada. Nela, seu nome aparecia na primeira colocação ao lado de um tempo de volta: 1min28s071.

“Estamos diante de um novo fenômeno?”, perguntou incrédulo este blogueiro numa remota postagem com o resumo do dia na Turquia. Ele mesmo, o blogueiro, tratou de responder com toda a cautela possível: “Pode ser”.

Vettel era um desses jovenzinhos promissores que nas categorias de base faziam chover. No seu caso, duas temporadas de F-BMW com 23 vitórias, 19 poles e 32 pódios em 39 corridas disputadas. Depois ainda passou pela F-3 Europeia, conquistando um vice-campeonato em 2006 — perdeu o título, vejam só, para Paul di Resta. Desde os 13 anos, por indicação de um certo Gerhard Noak, acelerava por aí com um bordado da Red Bull no uniforme e a marca do energético no capacete. Noak é uma dessas figuras anônimas a quem o automobilismo tanto deve e nunca pagou a conta. Diretor do clube de kart de Kerpen, anos antes vira em Schumacher alguém diferente. Deu o empurrão que ele precisava para, um dia, se tornar sete vezes campeão mundial de F-1. Com Vettel foi igual. No garimpo diário na pista onde nascera Schumi, descobriu diamante parecido.

No GP do Canadá de 2007, Robert Kubica se arrebentou com a Sauber BMW e, por precaução, não pôde disputar a corrida seguinte, em Indianápolis. Com o mesmo macacão folgado e um sorriso tímido no rosto de moleque, Vettel foi escalado pelo time para disputar sua primeira prova. Largou em sétimo. Terminou em oitavo e marcou seu primeiro ponto na categoria.

Vettel em Indianápolis: ponto marcado na primeira corrida

Foi o bastante para a Red Bull requisitá-lo junto à Sauber, porque não andava muito satisfeita com um de seus pilotos na Toro Rosso, o norte-americano Scott Speed. Titular desde 2006, o cara não conseguia marcar um ponto sequer. A paciência do time terminou depois da décima etapa de 2007, em Nürburgring. Passe no Departamento Pessoal, disseram a Speed. Na Hungria, o carro #19 passaria a ser pilotado pelo garoto alemão.

A aposta se pagou rapidamente. Na China, Vettel terminou a prova num fenomenal quarto lugar, melhor posição da história da equipe até então. E no ano seguinte, a glória maior: vitória em Monza a partir da pole-position, de ponta a ponta. Na chuva. Com 21 anos, dois meses e 11 dias de vida, tornava-se o mais jovem vencedor de todos os tempos na F-1.

Foi no dia 14 de setembro de 2008. Recorramos, novamente, à incrível memória dos computadores. E à improvável longevidade deste blog mambembe.

Monza, 2008: vitória no templo italiano de “Minardi”

O que Vettel fez hoje é mais, por exemplo, do que Senna fez na Toleman em 1984 — aquele segundo lugar de Mônaco colocado como uma das maiores façanhas de todos os tempos. É mais do que Alonso fez na Hungria em 2003, quando ganhou sua primeira corrida. É mais do que fez Schumacher ao vencer seu primeiro GP em Spa, em 1992. É mais do que fez Fisichella em Interlagos com a Jordan em 2003, uma vitória confusa e igualmente inesperada.

Gomes, Flavio

O trecho acima, publicado aqui depois da vitória de Vettel no GP da Itália, talvez tenha sido o primeiro capítulo do embate que travo até hoje com a Santa Igreja da Sexta Marcha. Ainda não tínhamos redes sociais, mas a manifestação do amigo internauta nas caixas de comentários dos blogs era igualmente histérica e barulhenta. Tanto que dois dias depois fui obrigado a escrever um texto sobre a reação dos fãs de Senna à — como ousa? — comparação que fiz entre ele e Sebastian. Está aqui, caso alguém tenha curiosidade: 583 comentários. Num único post. Uau.

Mas não nos desviemos do assunto, o tema aqui é outro, Sebastian Vettel. Não o blog, muito menos eu.

Em 2009, Vettel foi puxado para a Red Bull, venceu quatro GPs, foi vice-campeão. Schumacher, que havia parado em 2006, encontrara um digno sucessor. A Alemanha não tinha de que se queixar. Veio 2010 e o primeiro título, incrível, na última corrida, à qual quatro pilotos chegaram com chances de levar a taça: Alonso, 246 pontos; Webber, 238; Vettel, 231; Hamilton, 222. Sem ter liderado o campeonato por um dia sequer, Sebastian fez a pole em Abu Dhabi, venceu de ponta a ponta e contou com as más apresentações de Alonso, sétimo, e Webber, oitavo, que ficaram empacados atrás de Kubica e Petrov, da Renault, a corrida toda. Com 256 pontos, terminou o Mundial quatro à frente do espanhol, então na Ferrari.

Na Red Bull: tetracampeonato e nome na história

Em 2011 foi fácil, em 2012, difícil, em 2013, tranquilo. Dou o salto no tempo sem entrar em detalhes do tetracampeonato porque nos interessa mais, agora, tentar identificar o momento em que Vettel começou a, digamos, desgostar da F-1. Ou, pelo menos, passou a se perguntar até onde iria aquela jornada cujos primeiros passos já se mostravam algo distantes, deixados para trás numa infância alegre e divertida, vivida de pista em pista acelerando karts, sem medo de ser feliz.

Em 2014, o regulamento da categoria mudou drasticamente e entraram em cena os motores híbridos alimentados parcialmente por componentes concebidos para armazenar energia em baterias e despejá-la em forma de potência nas rodas traseiras. Foi necessária uma mudança radical no estilo de pilotagem que os novos carros exigiam, especialmente no lidar com os freios “eletrônicos”, já que o calor gerado nas frenagens era a principal fonte de um dos motores elétricos acoplados ao V6 de combustão normal.

Alguns pilotos se adaptaram rapidamente. Outros, não. Entre esses, Vettel. “Ele nunca se acostumou”, disse recentemente o chefe da Red Bull, Christian Horner. “O estilo de pilotagem desses carros não é o dele. Seb sempre gostou da traseira colada no chão, de muito ‘downforce’, de sentir o carro no eixo traseiro. E de repente os carros perderam pressão aerodinâmica atrás, a traseira ficou leve, nervosa. Na verdade, ele nunca gostou das regras novas e desses motores.”

Depois de cinco anos como titular da Red Bull, um vice e quatro títulos, pela primeira vez Vettel terminou um campeonato atrás de seu companheiro de equipe. Fechou o ano em quinto, sem vitórias. Daniel Ricciardo, recém promovido ao time de cima, vindo da mesma Toro Rosso, tendo percorrido o mesmo caminho que o alemão, foi o terceiro e venceu três GPs. Era a hora de picar a mula. Ou o touro, se vale a piada sem graça.

De vermelho, em Maranello: seis temporadas, nenhum título

Sem conseguir um campeonato depois de cinco anos na Ferrari, Fernando Alonso juntou suas tralhas em voltou à McLaren em 2015, deixando o cockpit do time italiano vago. Vettel era a escolha óbvia. A equipe de Maranello via nele um sucessor de Schumacher, capaz de recolocar o cavalinho rampante de pé.

Não se pode dizer que sua passagem pela Ferrari tenha sido um fracasso total. Seria um exagero, uma injustiça e um equívoco, sobretudo. Se é verdade que Vettel nunca chegou a brigar pelo título de verdade — a hegemonia da Mercedes na era híbrida acabou se impondo de maneira categórica até ser interrompida neste ano, 2022 –, pelo menos flertou com ele em duas oportunidades. Foi vice-campeão em 2017 e 2018, lutando bravamente contra uma equipe quase imbatível. Nos seis anos vestindo vermelho, Sebastian ganhou 14 corridas, tornando-se o terceiro maior vencedor da história ferrarista — atrás apenas de Schumacher, com 72, e Niki Lauda, com 15. Aqui, um lembrete: ele ainda é o mais bem sucedido piloto da história da Red Bull com 38 vitórias, mesmo tendo deixado a equipe há oito anos.

Dizem que Vettel entrou em parafuso em 2018, ao bater sozinho no GP da Alemanha, que liderava, quando ponteava também o campeonato. Ali Hamilton virou o jogo e ninguém mais conseguiu pará-lo. A chegada de Leclerc em 2019 também teria colocado uma pulga dentro de seu capacete — o monegasco terminou o ano à sua frente e repetiu o resultado em 2020. Alguma coisa estava acontecendo, mas era difícil determinar o quê.

A transferência para a Aston Martin em 2021 seria o sinal de que o tempo de Vettel na F-1 estava terminando. Com um carro pouco competitivo, não fez muito em termos de resultados — um pódio no Azerbaijão foi o derradeiro momento de glória, descontando-se o segundo lugar anulado na Hungria, por um erro da equipe no controle de combustível. Neste ano, ficou fora das duas primeiras etapas por ter contraído Covid. Um sexto lugar em Baku foi o máximo que conseguiu até agora.

Ao lado do pupilo Mick Schumacher: “Vai deixar um vazio”

Curiosamente, apesar do visível divórcio da condição de protagonista na pista, nunca se viu um Vettel tão sorridente e afável nos últimos tempos como neste ano. A exceção talvez seja o semblante algo melancólico no vídeo da aposentadoria gravado em preto e branco e colocado no ar hoje de manhã, depois de abrir uma conta verificada no Instagram ontem à noite — evento que causou verdadeiro frisson na internet, ele que nunca teve presença alguma em redes sociais.

Sebastian assumiu de vez um papel de voz ativa em favor de causas inatacáveis, como a igualdade de gênero, a crise climática, o antirracismo, e passou a usar a F-1 como megafone para falar alto a quem quiser ouvi-lo. Disse hoje em Budapeste que a decisão de parar não foi fácil, mas vinha sendo amadurecida havia algum tempo. Contou que apenas ontem, quarta-feira, comunicou à Aston Martin que iria pendurar o capacete. A equipe queria que ficasse. Ele mesmo cogitou continuar. Mas descobriu que ultimamente não tinha mais prazer em guiar um carro de corrida “só para fazer parte”. A dedicação até podia ser a mesma. A motivação, não.

No paddock, todo mundo, sem exceção, fez questão de falar sobre Vettel hoje. Logo depois do anúncio, começaram as especulações sobre seu substituto, uma lista grande que teve citados nomes como os de Nico Hülkenberg, Nyck de Vries, Fernando Alonso, Oscar Piastri, Alexander Albon, Daniel Ricciardo e Mick Schumacher. Se dependesse dele, Vettel, Mick seria o escolhido. Ele o tem como filho. “Vai deixar um vazio enorme aqui”, disse o jovem Schumacher hoje.

Mas ainda é cedo para esmiuçar o assunto. Tudo que for dito nas próximas horas não passa de ilação. OK, se querem meu palpite, acho que será De Vries, mas é um mero palpite. Deixemos para quando passar a comoção, expressa na reação de seus amigos, chefes e ex-chefes, companheiros e ex-companheiros, novos e velhos adversários. A mais sensível, talvez, vinda de Hamilton. “Ele foi um dos poucos que fizeram minha vida aqui ser menos solitária”, falou o inglês. Antes, havia escrito: “Te amo, cara”.

A mensagem de Hamilton: “Te amo”

No vídeo do Instagram e nas entrevistas que já deu às vésperas da abertura dos treinos na Hungria, Vettel citou a família — a mulher Hanna, duas meninas e um menino –, o tempo que quer dedicar a ela, a necessidade de ser um bom pai e de aprender com as crianças, contou como é cada vez mais duro sair de casa para correr, falou sobre a urgência de se fazer alguma coisa para salvar o planeta, mencionou a exigência física e mental de um trabalho que ainda ama, mas que já não lhe traz mais a satisfação de antes. Disse também ter consciência de que sua voz “perderá peso” fora da F-1, mas que neste momento só consegue compreender que “a mensagem é mais importante que o palco”.

Falou que gosta de chocolate, do cheiro de pão fresco e da cor azul.

Vettel, o menino que batizava seus carros com nomes de mulher, que trouxe à F-1 um amor juvenil pelas corridas que parecia perdido em algum lugar, cresceu rápido, virou gente grande e resolveu encarar o mundo.

Que vá na fé. Porque o mundo é teu, Sebastião.