DEZ ANOS, DOUTOR*
Aí quando eu estava lá embaixo no meio daquele milhão de pessoas pedindo para votar para presidente, o cara sobe lá no palanque, em cima do viaduto, ergue o punho direito, ou o esquerdo, e grita que queria a mesma coisa. Do meu lado, gente de todas as cores e credos ludopédicos erguem seus punhos, também, e aplaudem o cara, que resolveu não jogar na Europa porque queria estar aqui para ver de perto o fim daqueles anos em preto e branco.
Não deu nada certo, não votamos para porra nenhuma, e dias depois, ou semanas, não me peçam para lembrar os quandos e ondes, mas acho que era no Morumbi, e o cara enfia a bica da intermediária, nosso goleiro sem pescoço pula e não pega nada, ele ergue o punho de novo e eu xingo o cara com todas as minhas forças, doutor do caralho, filho da puta, vai tomar no cu.
Antes, Copa do Mundo na Espanha, Brasil versus União Soviética. Estamos lá na zona leste, num puxadinho junto com um monte de gente que eu também não conhecia direito, uma TV com bombril na antena, umas brahmas, gol dele, o empate, se bem me lembro. Abraços e beijos, doutor do caralho, filho da puta, joga demais, vamos, porra.
Depois daquela Copa acho que não torci mais para seleção nenhuma, depois daquela ninguém mais nos representou, talvez em 1986, era um restinho daquela, o cara estava lá de novo, com faixa na cabeça, quatro anos mais velho, mais cabeludo e mais desgostoso, perdeu um pênalti, nem xinguei de doutor do caralho. Já tinha feito muito, tudo bem, entre uma e outra ele tinha ido e voltado da Itália, aí foi jogar no Rio, queria ficar junto do povo, do povo inteiro, jeitão de fim de carreira, mas era médico, ia parar e vestir o jaleco para cuidar do povo, e ele dizia povo com autoridade, sabia bem quem era o povo, e cada um para o seu canto. Eu, que o conhecia da TV, do estádio e do Anhangabaú, para cuidar da minha vidinha besta; ele, para cuidar do povo — no falar, escrever, pensar.
Avança a fita.
Ano passado, um velho e empoeirado e querido pub em Pinheiros, faz frio, as portas já fechadas, o dono não quer nem saber, quem quiser fumar, fume, fumem e bebam antes que o mundo acabe, o amigo tocando violão, a gente ali, tentando entender o que estava acontecendo com nossas vidas, aí ele entra alto, forte, senta, pede um vinho, sorri, canta, sorri, bebe, sorri, fuma, e a gente tira foto com ele, e o mundo é um lugar até aceitável quando a gente vê que tem gente como ele, que jogava bola, que só vencia a timidez diante da multidão falando e tocando de calcanhar, e que sorria, e bebia e fumava.
Sócrates morreu de tanto viver, que é uma boa forma de morrer.
*Este texto foi escrito em 4 de dezembro de 2011
Emocionante, lindo texto!!
Lindo texto, viva o dr. Sócrates, só sei que nada sei, como diria seu homônimo.
E lembrar que já tivemos jogadores de futebol que pensavam, hoje vivemos nessa cultura a ignorância, salvo raras exceções.
Todo respeito a portuguesa, mas vai corinthians…
Esperava ler alguns comentários chamando Sócrates de esquerdista marronzista bebum….
Me surpreendi…
Belíssimo texto
Parabens Flavio pelo maravilhoso texto e pela maravilhosa homenagem ao Doutor
Esse bloco final, do Pub, me lembrou muito o texto do Gay Talese, incumbido de entrevistar Frank Sinatra. Sem conseguir fazê-lo pintou um quadro, fez um filme e fotografou com texto tudo o q um olhar aguçado poderia apreender. Melhor do que seria a entrevista. Talvez.
PQP que texto! Que homenagem! Me deixou emocionado.
Você é f… Flavio Gomes … Que texto … Vai se @#$% …. Obrigado !!!
Flavio pode se incluir na categoria de “jornalista do caralho”…..
Apesar do texto ser de 2011 continua atual.
Belo texto
Que texto maravilhoso, lembro que em um programa, você comentou que gostaria de fazer uma entrevista com Sócrates. Achei bacana naquela ocasião.
Eu era moleque em ’82, tinha só 8 anos… mas curiosamente é daquela copa de 82 que mais me lembro.
Lembro bem que meu pai tinha comprado nossa primeira TV colorida, que não chegou a tempo pra copa. Aí, a gente ia assistir os jogos na casa da dona Delminda, vizinha portuguesa que era nossa vizinha mas era como se fosse da nossa família também.
Nossa, como doeu aquela derrota no Sarriá! E acho que, com a seleção, nunca mais teve nada igual, nem os títulos depois, nenhuma outra derrota, pelo menos, dentro das quatro linhas…
E aquela seleção de ’82 tinha o doutor! Aquele cara cabeludo, barbudo, que jogava o fino tanto na seleção quanto no meu Corinthians e falava um monte de coisa que eu, criança, não entendia muito bem.
Vendo em retrospecto, sei que foi aquele Corinthians e o doutor Sócrates que me fizeram Corinthiano, e aquelas lições, que lá naqueles tempos eu não entendia, me moldaram também… Em casa, todos eram progressistas e a liberdade de escolha era regra: eu, corinthiano; meu pai, palmeirense; minha mãe, são-paulina.
Sempre fico pensando em como o doutor faz falta. Acho que como nunca nenhum outro fez: essa lacuna dentro e fora de campo. O doutor se foi em 2011, meu pai morreu em 2013. Pelo menos, eles não tiveram que assistir o país virar isso aí que virou…
Hoje, tudo aquilo ficou pra trás. A copa de 82, a TV colorida, a democracia Corinthiana, o país são só retratos na parede. Mas como doem!
Viva o doutor Sócrates sempre!
E vou me juntar aqui ao companheiro Marcos pra concordar: jornalista do caralho, vai escrever bem assim na pqp!! ;)
Hasta la victoria, siempre, Flávio!
Tem um filme britânico muito legal, se chama “driblando a guerra” (no original “shooting for Sócrates “), uma bela homenagem ao doutor.
Parabéns pelo texto! ” Sócrates morreu de tanto viver, que é uma boa forma de morrer.” É muito bonito, mas não sei se é para todos.
Foi depois de ler a imundíce despejada em blogs de jornais após a morte do Doutor que resolvi que nunca entraria em nenhuma rede social. O mundo já mostrava que estava cheio de bestas feras.
Hoje tenho um zap zap, devagar quase parando de mensagens e gosto muito de assistir o que seleciono no youtube. Acredito que seja o máximo que suporto.
Estudou com meu Tio Cal em Ribeirão Preto, infelizmente não deu tempo dele me levar para conhecê-lo … texto magistral
Sensacional!
Incrível como tivemos um ser super iluminado como o Dr Sócrates entre nós e o perdemos tão cedo.
Sou flamenguista e curti cada momento de suas obras primas, que só você, um mago das letras, poderia tão bem traduzir.
Os boleiros de hoje em dia… pffff
Vide o “bode” que agora está de saída do Palestra.
Involução seria o nome?
Morreu de tanto viver. O que é uma boa forma de morrer…
Magistral
👏👏👏
Caramba. O mago era foda. Esse texto disse tudo.
Jornalista do caralho….vai escrever bem assim na pqp. Ah!…aquela seleção de 82 matou algo dentro da gente. Todas que vieram depois foram mais do mesmo. Penso naquele doutor, que de princípio nem comemorava seus gols tão tímido era, vendo no que seu país se transformou…salve Sócrates…e salve você por trazer tão boas épocas aos dias de hoje…
Flávio, não sou teu fã atoa. Nem só Sócrates. Viva Sócrates!