TAM 402

SÃO PAULO (31 de outubro de 1996) – Essas imagens sempre me vêm à cabeça. Cheguei com a moto rompendo barreiras de policiais e de funcionários da CET que tentavam feito baratas tontas controlar alguma coisa, apenas brandindo meu crachá da Jovem Pan. Que não tinha nada escrito, exceto o nome do prédio onde fica a Jovem Pan até hoje, Edifício Sir Winston Churchill. Mas eu era da Jovem Pan, não mentia.

Ainda não eram 9 da manhã. Às 8h26 o vôo 402 da TAM tinha terminado, 24 segundos depois de decolar de Congonhas.

Às 8h30, o repórter de trânsito da Pan noticiou do helicóptero a queda de alguma coisa na cabeceira do aeroporto. Em meia hora, minha moto preta me levou à rua Luis Orsini de Castro. Estacionei na esquina. Dei dois passos e vi pela sarjeta água avermelhada, bombeiros, destroços, fumaça, fogo e alguns sacos plásticos pretos enfileirados ao longo do meio-fio. Um cheiro ruim desgraçado, agridoce, coisa queimada, era cheiro de gente queimada.

Meia hora, só, e corpos já estavam sendo resgatados. Um bombeiro, no meio da rua, tinha uma prancheta nas mãos. Quando seus colegas passavam carregando um corpo, diziam apenas: homem; ou mulher. E o bombeiro anotava. Mais um homem, mais uma mulher.

No total, foram 99. Homens e mulheres.

Eu tinha um celular e liguei para a rádio. A mocinha que atendeu na central, educadamente, me disse: Flavio, não dá para entrar com Fórmula 1 agora porque aconteceu um acidente. Eu, surpreendentemente calmo, disse que sabia, e que estava lá, no acidente.

Aos poucos foram chegando os outros colegas, da Pan, de outras rádios, dos jornais, das TVs. O cenário era rocambolesco: um céu azul de doer, sol forte, a cauda do avião num quintal, uma turbina em outro, os únicos sinais visíveis de que aquela destruição fora causada por uma aeronave, e não por um terremoto, uma explosão do gasoduto de Alexandria, uma bomba atômica.

Não ouvi gritos de horror e ninguém falava muita coisa. No lado da calçada menos atingido, na casa vizinha a um bar, uma mulher esfregava vigorosamente sua calçada com uma vassoura de piaçava enquanto a alguns metros dela bombeiros contavam corpos e removiam escombros. Nunca esqueci daquela mulher limpando a calçada, como deve fazer todos os dias, à mesma hora, caia ali um avião ou o Sputnik, desde que não seja sobre sua cabeça e sua calçada.

Subi e desci aquela rua muitas vezes, me escondi numa casa, agachado no quintal, celular em punho e microfone com rádio HT no bolso da jaqueta, que tinha Tintin e Milu nas costas, quando polícia e bombeiros evacuaram a maior parte da rua para poder trabalhar direito. Falei o dia todo, descrevendo o que via.

Na travessa que levava à rua de cima, rabecões, médicos e enfermeiros. Não saberei precisar a hora, mas depois de um tempo havia um profundo silêncio na rua Luis Orsini de Castro (engenheiro, 1889-1971), só o ronronar de escavadeiras e os bombeiros dizendo homem ou mulher. E muita gente olhando aquilo tudo sem entender nada direito.

Foram 99, como disse, três em terra, na verdade dois, porque um caiu do telhado, 96 no avião. Passam algumas coisas bobas pela sua cabeça quando você vê que está vivo no meio dos mortos. Naquela montoeira de tijolos, vidros e ferros, achei intacto um cartão plastificado com as instruções de segurança do Fokker-100 e pensei que as pessoas deviam ser de papel e plastificadas para sobreviver a acidentes de avião. Peguei o cartão, pensei em guardar, e joguei fora.

Pensamento bobo, sem dúvida.

Aí chega um delegado, acho que era Romeu Tuma, o filho, a imprensa corre, deixa os corpos de lado, ele carrega um pacote de plástico meio molhado, com um negócio amarelado dentro, acharam cocaína no avião, vamos abrir um inquérito, ele dizia. Depois sumiu.

Mais algumas horas, e a contagem dos mortos era já uma apuração, havia ansiedade para terminar aquele dia logo. Já se sabia que no avião eram 96, os moradores deram falta de três, 96 mais três igual a 99, mas a bendita contagem não chegava aos 99, e num determinado momento cada corpo achado era quase comemorado como um gol. Nunca entendi direito, também, essa ânsia por encontrar corpos, mesmo não sendo mais um corpo o que resta de um acidente aéreo. São coisas feias, eu só conseguia entender que era gente porque às vezes aparecia um pedaço de osso.

Lá pelas tantas a contagem do bombeiro homem-mulher chegou aos 99, fim de papo, guarda a prancheta, vamos todos para casa. A luz já foi religada, os telefones estão funcionando, vamos limpar esta merda toda e vamos embora, há outros aviões para cair, incêndios para apagar, corpos para enterrar, calçadas para varrer.

Fim de noite, a rádio encerrando seus trabalhos, hora de voltar, fui buscar a moto, que estava no mesmo lugar, ali ficou sem nada ver, testemunha férrea de uma tragédia, passei pela casinha com um quarto na frente, parede destruída, o berço intacto de onde tiraram um bebê, ele hoje tem 11 anos, aquele berço e aquele bebê imaginário não foram uma alucinação, peguei a moto, coloquei o celular já sem bateria no bolso da jaqueta do Tintin, voltei para casa, esquentei o jantar, era tarde, minha mulher estava dormindo, levantava muito cedo, jantei, deitei e, cansado, dormi.

Meses (ou seriam anos?) depois voltei à rua Luis Orsini de Castro, sozinho, numa noite qualquer, bem tarde, naquela hora em que aviões não voam mais, e por isso a rua Luis Orsini de Castro estava ainda mais silenciosa, meio escura, deserta. De um lado, o bar e a casa da mulher que limpava a calçada, do outro tapumes, atrás dos tapumes terrenos.

Planejei voltar à rua Luis Orsini de Castro hoje, dez anos depois, mas não fui, e acho que não irei. É uma rua como qualquer outra, pelo que me consta não há nenhum memorial, nenhuma placa, nenhuma lembrança.

Talvez passe por lá um dia desses, e de dia, para ver se a mulher continua a limpar sua calçada, é preciso manter as calçadas limpas.

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William
William
7 anos atrás

Até hoje não sai da minha memória essa tragédia, até porque nesse exato dia havia uma pequena excursão programada para o aeroporto de congonhas com crianças de 7 a 10 anos assim como eu que teriam a oportunidade de conhecer um avião de perto e entrar dentro dele. Quando todos já estavam prontos na fila para entrar no ônibus a coordenadora reuniu a todos e disse que esse excursão seria cancelada. Toda vez que vou para o metrô Jabaquara eu passo pela rua Jurupari e fico olhando aquele prédio da esquina, aquele colégio, e do lado oposto o mercadinho e aquela rua e imaginando como deve ter sido horrível aquele dia 31.10.1996; Muito triste!

João Caldeira
João Caldeira
12 anos atrás

Fantástico. Lendo agora me toquei de que muito provavelmente ouvi a sua transmissão ao vivo, estava indo com meu pai pro salão do automóvel e a gente ouvia a Jovem Pan direto. Será que ainda existe o áudio guardado em algum lugar por aí? Eu lembro de que a rádio falava pro pessoal levar gatorade pros bombeiros, tava um baita calor….

Gomes
Gomes
17 anos atrás

Jorge, devorei seu site, ótimos textos, relatos impressionantes. Enfim, estávamos no mesmo lugar, dez anos atrás. E só nos conhecemos dez anos depois.
Nos vemos por aí. Provavelmente no Canindé…

Jorge Tadeu da Silva
Jorge Tadeu da Silva
17 anos atrás

FG. O avião caiu sobre a minha casa. Pro meu azar a cocaína ficou na frente dela e ainda fui questionado sobre isso. A do meu pai (vizinha) é aquela que o trem de pouso caiu dentro do quarto. Lendo seu texto voltei a sentir aquele cheiro que ficava uma semana impregnado no nariz. O site que acompanha este comentário criei como forma de registrar o que ocorreu naquele dia e nestes dez anos.
Até hoje não fui indenizado, é mole?
Grande abraço do colega também torcedor da Lusa
Jorge Tadeu
Jornalista

Romeu
Romeu
17 anos atrás

Flavio, brilhante texto. Já falaram tudo.
Ainda bem que você nos dá essa oportunidade de ler coisas desse quilate e com isso nos faça esquecer do Favio da politica…

Leo
Leo
17 anos atrás

Li em algum jornal o depoimento de um tecnico da aeronautica afirmando que os pilotos ignoraram o alerta emitido pela aeronave antes da decolagem. E que a manobra de desligamento poderia ter sido realizada, pelo menos o suficiente para que o avião retornasse ao aeroporto.

O que ocorreu , segundo ele, foi que o comandante ao perceber o problema acelerou o motor que estava com o reverso aberto, ao inves de desliga-lo. Ou seja, o avião perdeu ainda mais velocidade.
Quem ouvir a gravação da caixa preta do avião, pode notar algumas dessas peculiaridades…

Gorduroso
Gorduroso
17 anos atrás

Nunca tinha chorado na vida…porr.a

Rogério Tranjan
Rogério Tranjan
17 anos atrás

FG,
obrigado por mais essa. Li todos os posts e todos os elogios para o escriba já foram feitos. Como é bom saber que ainda tem gente que trata a nossa língua com tanto esmero. Coisa rara hoje em dia ….
Abraços, RT

Tohmé
Tohmé
17 anos atrás

Quando o cara tá inspirado…….escreve muuuito bem.
Texto pra guardar e ler de vez em quando. Dá uma injeção de vida na gente.

Rodrigo Herrero
Rodrigo Herrero
17 anos atrás

Emocionante, Flavio. Aliás, seus relatos são smepre ótimos, descreve bem o que acontece, mas não fica só naquela coisa seca, traz sentimentos, sensações, simplicidade (como a coisa boba do cartão plastificado ou a impressionante senhora que varre a calçada). Você humaniza o relato, isso é pouco comum no péssimo jornalismo de hoje. Parabéns, você é um bom cronista! Abraço!

MSS
MSS
17 anos atrás

maravilha de texto …

Marcelo Jardim
Marcelo Jardim
17 anos atrás

Melhor definição foi dada pelo Reginaldo: Flávio é um “tremendo escritor do cotidiano”.
Genial e belíssimo texto. Parabéns Flávio !!!

Acarloz
Acarloz
17 anos atrás

Flávio, parabéns pelo texto.

Tambem passei pelo local e não esqueço as imagens que ví, mesmo a uma certa distãncia.

Petrus, da forma como aconteceu, considerando-se a altura do avião e os procedimentos de decolagem, nenhuma manobra salvaria aquelas pessoas.

Um abraço,

Pedro Paiva
Pedro Paiva
17 anos atrás

Na época eu trabalhava na TransBrasil, em Congonhas, em um hangar de manutenção. Um dos hábitos do pessoal era tomar um café vendo os aviões na pista, em uma área em frente ao hangar. No dia eu não estava, mas um dos mecânicos estava por ali e viu o avião correr a pista com o reverso aberto, sem poder fazer muita coisa. Ele disse que torceu para o avião freiar e parar, mas quando viu que decolou sabia que ia dar problema. Imagina isso? O cara viu tudo… Até entrevistaram ele na época. Ele demorou uns dois meses pra conseguir voltar a trabalhar.

vitão
vitão
17 anos atrás

Fg, tu não é jornalista, tu é médium.

lucpeq
lucpeq
17 anos atrás

A minha casa fica a dois minutos (a pé) de onde caiu o avião. Parabéns pelo texto, só quem viveu pode dizer como foi estranho. Vou repara se a mulher continua a varrer a calçada e te falo no sábado.

Fernando Carmona Sim
Fernando Carmona Sim
17 anos atrás

Flavio
Por isso eu sou seu fã! Você é muito mais que um reporter de F1, é um cara que sabe passar muito bem o que sente aos leitores. Não é a primeira vez que consigo imaginar o lugar que você descreve com perfeição. A primeira vez foi com um texto que foi o título do seu livro, seu livro!
Beijos e continue assim, o cara!

Henri Toivonen
Henri Toivonen
17 anos atrás

Texto excelente. Quase me imaginei lá no meio da tragédia.

reginaldo
reginaldo
17 anos atrás

Vc não é jornalista. Vc é um tremendo escritor do cotidiano. Põe em palavras, uma emoção sutil, colorida, recheada de visões. Mesmo quando é um assunto dolorido, é uma delicia (amarga) de se ler. Fique por aí meu caro comunista. É a sua praia. Não se meta com politica; aí, vc perde o prumo. Abraço cordial

Petrus Portilho
Petrus Portilho
17 anos atrás

Flavio, um dos melhores textos que você já escreveu por aqui,olha, estava lendo outro dia que o se o piloto tivesse desligado o motor que estava com problemas e desse potencia maxima no outro o avião não teria caido, coisa simples não é? Tem coisas que só Deus sabe o porque.Parabens pelo texto!

Douglas
Douglas
17 anos atrás

%!$&# Flávio!
Como você é bom quando não escreve sobre política… Parabéns, cara, de verdade.

Ana Flávia
Ana Flávia
17 anos atrás

Parafraseando uma amiga: “escreve tão bem que dá abuso”.
Como você consegue organizar as palavras de um jeito tão bonito?
Digo de novo: gosto muito dos seus textos.

Roberto Bascchera
Roberto Bascchera
17 anos atrás

Flávio,

O 31 de outubro de 1996 é mesmo um daqueles dias inesquecíveis, como o 1.o de maio de 1994 e o 11 de setembro de 2001 – para dar os dois mais extremos exemplos. Trabalhava na sucursal de SP do Jornal do Brasil. Estava, àquela hora (9 e pouco da manhã, acho), indo da Paulista para uma entrevista com o Dinei, então jogador do Corinthians. Ele fazia um tratamento antidrogas numa clínica em Indianópolis, aquela do Coronel Ferrarini. Dinei fora pego no exame antidoping e estava na pior. No meio do caminho, pelo rádio do Gol cinza da reportagem, eu, fotógrafo e o motorista Ferreirinha ouvimos que um avião de grande porte caíra em perto de Congonhas. Mudamos de rota, marquei para outra data a entrevista com o Dinei e corremos para o local da tragédia. Escrevo tudo isso para contar que, de fato, estava lá o Flávio Gomes, falando ao vivo para a Jovem Pan. Fui testemunha e ouvinte, ao mesmo tempo, porque o rádio de pilha não saía da minha pasta (acho que era vício dos tempos da reportagem esportiva…). Quando cheguei, os bombeiros ainda apagavam o fogo em uma das turbinas do Number One, o nome que o avião da TAM, pintado de azul, ganhara. O cheiro de querosene de aviação, misturado ao de outros materiais queimados, era muito forte. Corpos carbonizados e mutilados passavam à nossa frente, em macas dos bombeiros. Depois, eram enfileirados na calçada, em sacos pretos. Triste. Em meio a tanta tragédia, um quase milagre: \\”apenas\\” (com enormes aspas) três pessoas morreram em terra. Pelo local e nas circunstâncias em que o avião caiu, foi milagre mesmo.

Abraços

Regis Oliveira
Regis Oliveira
17 anos atrás

Concordo com o Rodrigo, isso nao se esquece. Eu trabalhava proximo ao local, e como era office boy na epoca, peguei o serviço de rua e fui ver. Antes nao tivesse ido

Gomes
Gomes
17 anos atrás

Muito obrigado, JR, é difícil ainda encontrar quem se lembre de quando eu trabalhava na Folha. É bom saber que deixei algum rastro, afinal…

JR
JR
17 anos atrás

Flavio.
Eh isso ai, parabens pelo texto, melhor nem mesmo o Tintim faria. Excelente o Blog, sou frequendador assiduo, alias aprecio seus textos desde o tempo de Folha, pre Imola 94.
Deste a volta por cima, largaste na pole com o Grande Premio, fizestes a volta mais rápida com o blog, e por fim veio a vitoria, atraves da interação total com seus leitores/blogueiros. Um autentico forum de bebates, midia moderna e atual, indipensável para quem gosta de automóveis/automobilismo.
Um grande abraço.
JR

Rodrigo Ruiz
Rodrigo Ruiz
17 anos atrás

Belíssimo texto.
Não sei se você tem todas essas lembranças na memóra ou em um papel, mas imagino que uma tragédia dessas não dê pra esquecer, muito menos as imagens que você deve ter visto.

Minha mãe tinha uma prima que morava nessa rua, mas por sorte a casa dela não foi atingida…

Leo
Leo
17 anos atrás

Esse sim é um belo texto. Parabens Flavio

Aliandro Miranda
Aliandro Miranda
17 anos atrás

Que texto é esse!

Parabéns, Flavio. Um dos melhores seus que já li.

Descrever tragédias não deve ser fácil.