Ecos de mim mesmo

SÃO PAULO (quem fomos?) – Meu primeiro emprego de verdade foi na SBPC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Eu tinha 20 anos quando um professor de rádio, Gregório Bacic, disse que um amigo, João Bosco Jardim de Almeida, estava voltando de Londres depois de uma temporada na BBC para montar um projeto de divulgação científica.

Não disse isso na faculdade. Chamou-me para uma reunião, a primeira da minha vida, num prédio na Paulista. Me senti muito importante.

(O mundo gira, mas fica sempre no mesmo lugar. O prédio é em frente do edifício onde, hoje, tenho meu escritório.)

A proposta era horrível. Estágio para ganhar uma merreca, trabalhar no prédio da antiga reitoria da USP na Cidade Universitária, na casa do chapéu, e fazer reportagens para um programa da secreta rádio Cultura AM chamado “Encontro com a Ciência”.

E eu queria trabalhar na “Placar” e escrever sobre futebol.

“Topo”, respondi, no prédio da Paulista. E saí empregado para ganhar uma merreca e trabalhar longe.

Era novembro de 1984. Eu estudava à noite e meu patrimônio resumia-se a um Gol que ganhei de meu pai quando entrei na faculdade. O salário não dava para a gasolina. Mas era um começo. No dia combinado, apareci na USP para saber o que tinha de fazer. Fui recebido pelo Chico Cocca, que comandava o departamento técnico de rádio na ECA.

Conheci o João e os repórteres do time: Nivaldo Freixeda e Anita Natividade. Jornalistas formados, politizados, antenados, tudo que eu não era. Depois se juntaram a nós Glória e Fábio Malavoglia. Equipe boa. Nunca entendi como fui aceito para a vaga. Menos ainda o aumento, dois meses depois, tão grande que passei a pagar a faculdade, a gasolina e o provolone à milanesa dali em diante.

Minha primeira pauta: entrevistar o geneticista Roque Monteleone Neto sobre os 100 anos do pai da genética, Gregor Mendel.

Quem?

Eu não sabia picas de nada. Não havia internet, Google, essas coisas. E lá fui. Era perto de casa, na Escola Paulista de Medicina, na Vila Clementino. E vamos eu e o Chico, com seu Nagra de rolo e o maço de Hollywood, e lembro até hoje da primeira, e elaboradíssima, pergunta que fiz na vida a um entrevistado de verdade: “Professor Roque, Mendel se orgulharia da genética que se faz hoje, cem anos depois de sua morte?”.

Uau.

Não era uma pergunta genial, mas funcionou. Não lembro bem da resposta, mas toquei o barco com Mendel e suas ervilhas, e voltei com a matéria, perguntando a cada cinco minutos ao Chico, no carro: “Ficou bom? Vai dar pra usar?”. E o Chico, paciente, entre um Hollywood e outro, me garantia que tinha ficado ótima.

E assim me tornei jornalista científico, seja lá o que for isso.


Gregório Bacic e Gregor Mendel: personagens importantes

Mais tarde, a SBPC alugou uma casa para nossa equipe em Pinheiros, na rua Costa Carvalho, 222. Pelo “Encontro com a Ciência” viajei a Belo Horizonte e Curitiba para cobrir as Reuniões Anuais da SBPC, entidade que tinha um enorme peso naqueles tempos de transição democrática. Não tem mais, creio. Deveria ter. Fui a São Carlos, São José dos Campos, Campinas, Araraquara, onde havia uma universidade e alguém para dizer alguma coisa, lá estávamos eu, o Chico e o Nagra.

Entrevistei dezenas de cientistas e pesquisadores ao longo de dois anos, sobre todos os assuntos possíveis. Buracos negros, maçaricos de plasma, teias de aranha, crustáceos esquisitos, origens do carnaval, supernovas, poluição sonora, violência urbana, futebol e ciência, saci-pererê, cantos dos pássaros, aplicações do bambu, big-bang, cometas, meteoros, energia nuclear, relógio biológico, viagens no tempo, sem nunca entender patavina de porra nenhuma.

A bagagem acabou me levando para a editoria de Educação e Ciência da “Folha” dois anos depois, vaga obtida em concurso público, e o resto é história — minha história, que não deve interessar a muita gente.

Só que semana passada me bateu uma saudade danada dos meus 20 anos, rodando a cidade e o país com o Chico e seu Nagra a tiracolo, de editar as fitas na gilete, do cheiro do estúdio da Cultura, do fascínio que me provocava aquela enorme discoteca, do ambiente universitário, do bom-humor do professor Pavan, dos telescópios do INPE, dos laboratórios da Química, das salas bagunçadas cheias de livros dos cientistas que ia entrevistar, e como hoje existe o Google, encontrei na internet um registro sobre nosso programa, que no final de 1986 saiu da Cultura para a rádio USP e mudou de nome para “Tome Ciência”.


Professor Crodowaldo Pavan (com as mãos nos bolsos)

O pequeno texto foi escrito pela querida professora Carolina Bori, presidente da SBPC que morreu em 2004, aos 80 anos. Uma dama, peso-pesado da comunidade científica brasileira, que nos tratava como iguais, como se fôssemos importantes na sua cruzada pela divulgação da ciência pelas ondas do rádio. Acho que nunca fomos, mas talvez fôssemos, sei lá. Sempre achei os cientistas uns sonhadores, por isso eles são melhores que a maioria das pessoas, sonham.


Professora Carolina Bori (1924-2004), de casaco escuro

Boa parte daquelas centenas de entrevistas foi preservada pelo Chico, e elas estão armazenadas aqui, separadas por temas, o que me parece um espanto, mais de 20 anos depois.

Nesse enorme índice, encontrei algumas matérias que fiz na época. Minha voz de garoto imberbe falando sobre aplicações do bambu, o crustáceo Callichirus e aproveitamento de lixo, na área de “Biologia e questões ambientais”; sobre o eco do big-bang, em “Astronomia”; dissecando o carnaval de 1987, em “História, Filosofia, Sociologia e Antropologia”. Tem até a curiosidade da vinheta do programa, que se você escutar vai conseguir identificar a voz do locutor.

Deve haver uma coisinha ou outra a mais, não escutei tudo, um dia volto ao site e procuro.

Quem sabe encontro um pouco mais da radiação de fundo que todos nós deixamos pelo caminho ao longo de nossas vidas, como fez o Universo quando resolveu existir. Quem sabe encontro o Nivaldo, a Anita, a Glória, o Fábio, o João Bosco, o Gregório, o Chico e seu Nagra, quem sabe encontro quem eu era.


Meu passado, gravado num Nagra

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Camila Ceregatti
Camila Ceregatti
17 anos atrás

AUHUAHUAHUAHUAHUHA…olha só a discussão que causei sem intenção!!!

Obrigada vitão pelos desejos para meu futuro….espero que se realizem….e naum se preocupe quanto ao tamanho…já passei o FG faz tempo!!!AUHHAHUUHA….mas eu nunca serei engenheira…fique tranquilo…

meu pai tem razão….esperem eu aprender a dirigir e depois a gente conversa!!!uhauahuahuhauha…

herdei a inteligência e aparência de minha mãe mas a modestia herdei do meu pai!UHAUHAHUUHA

Claudio Ceregatti
Claudio Ceregatti
17 anos atrás

Provoquem, amigos.
Podem provocar.
Deixa minha filha menor aprender a dirigir, e verão…
Acho que voces imaginam as aulas que terá, e em que horários…
Já estou com pena do Alan “Bandeira Preta”. Se ela pegar a mão…

VELOZ-HP
VELOZ-HP
17 anos atrás

Vitão, queira Deus que a menina tenha mais sorte com o futuro marido do que a mãe dela teve…
Ah, ah, ah, de novo.
Brincadeira, dom Cláudio.

vitão
vitão
17 anos atrás

prezado Veloz, qual talento a Camila teria herdado do pai? no meu palpite ela seria uma ótima engenheira. De demolição.

VELOZ-HP
VELOZ-HP
17 anos atrás

Comendatore Don Cláudio, graças a Deus que sua filha puxou a mãe na aparência e na inteligência, não ?
Ah, ah, ah, brincadeirinha, não me xinga…
Grande abraço e parabens prá menina.

vitão
vitão
17 anos atrás

Ah, esqueci de mencionar . Sabe qual foi o comunista mais esperto ? o Gorbachov, que foi o último deles.
Ele apagou a luz e colocou a chave embaixo do tapete.

vitão
vitão
17 anos atrás

Para a Camila Ceregatti :
Seja uma grande jornalista, dura, imparcial, cobradora, pluralista, humanista, antenada. Mas não queira ser grande como o FG. Ele tem 1,30 m , SENTADO no LADA, porque de pé não passa de 1,20.

Marcelo De Brito
Marcelo De Brito
17 anos atrás

Hallo, Gomes!

Bravo, meu caro… Bravo!

[]’s

Marcelo

Claudio Ceregatti
Claudio Ceregatti
17 anos atrás

Tal pai, tal filha…
Tão vendo só?
Dezoito anos récem-completados, duas semanas apenas de Faculdade e… Já parece jornalista!!!!
Ou então, piloto (ou pilota? Nunca sei…)
Como bem o diz o FG, piloto é tudo cascateiro. Quando jornalista, então…

Camila Ceregatti
Camila Ceregatti
17 anos atrás

É, realmente o mundo dá voltas. Nem preciso dizer que sua história me impressiona, fascina.
Espero um dia ser uma grande jornalista como você. Quem sabe daqui uns 23 anos eu não conte uma história parecida com a sua, de um começo. Talvez os meios sejam diferentes, mas sei que sentirei as mesmas saudades que você sente hoje.
Sem querer você me deu um conselho: “aproveite ao máximo!”

Parabéns flávio.

gildo - Zé34
gildo - Zé34
17 anos atrás

Flavio,
Bom parar para lembrar, para sonhar, para sonhar o amanhã, o de todos nós…
Este teu post me levou a esta emoção e aproveitei também para enviá-lo a uma amiga que está nele, que é a Maria do Carmo Guedes, da PUC e que escreveu o artigo com o qual voce fez link  ‘Memorável Carolina Bori’.
Valeu ‘virtuose’ Flávio!

Claudio Ceregatti
Claudio Ceregatti
17 anos atrás

Muito, muito bom mesmo esse seu post, FG.
Assim como a maioria de nós, nunca sabemos para onde a vida nos leva, independente de profissão escolhida.
Pois imagine agora o que acontecerá nos próximos 23 anos, pois os 23 já passados te trouxeram até aqui.
Impossível prever, nunca sabemos.
E por mais fértil que seja a nossa imaginação, a vida e o dia a dia são sempre muito mais criativos, embora pareçam monótonos e repetitivos.
Minha filha Camila, que acaba de entrar na Faculdade de Jornalismo vai ler esse seu texto com muito interesse, e com olhos profissionais.
O que voce demonstra aqui é exatamente o que transmito à ela, sempre.
Parecemos ser pilotos de nossa vida. Nada disso.
Somos passageiros, e nunca sabemos qual o itinerário, e muito menos o destino final.

Gomes
Gomes
17 anos atrás

Não, Aliandro. Nagra para gravar, Akai para editar.

Aliandro Miranda
Aliandro Miranda
17 anos atrás

Show! Como o Flavio tinha a voz diferente.

Flavio, lá vocês utilizavam o gravador de fita de rolo Sony-O-Matic? Joguei fora um recentemente, estava com uns probleminhas insolúveis.

Gomes
Gomes
17 anos atrás

Não seja ridículo, rapaz. Eu sei o esforço que meu pai fez a vida toda para poder ajudar seus filhos. Quando não tiver o que falar, não fale nada.

ATROZ-HP
ATROZ-HP
17 anos atrás

Parabens FG, mas….

ganhou carrinho de papis quando passou no vestibular? como era aquele verso do Cazuza sobre a burguesia mesmo?

André Escada MaJirus
André Escada MaJirus
17 anos atrás

Parabéns FG !

Rogério Magalhães
Rogério Magalhães
17 anos atrás

Putz, e eu que achava já pré-histórico quando entrei na Metodista em 1995 para o curso de jornalismo (que um dia ainda termino!) e a gente fazia programa de rádio no ano seguinte gravando em cassete, com uns gravadores sinistros e escrevia as laudas em máquinas de escrever Olivetti tão antigas que as teclas saíam junto com os dedos. Imagina sair gravando com um Nagra e editando na gilete!

Mas que é legal esse tipo de experiência, ah isso é… e com certeza te deu muita cancha para o futuro no jornalismo, de saber se virar com o que tem, com o que sabe… na raça!

Aliás, pelos relatos do projeto, talvez tenha inspirado o surgimento da Superinteressante anos depois, na época em que ela efetivamente se preocupava em abordar os temas que você citou com embasamento científico, não essa coisa tosca que virou hoje.

Sem contar que olhar para trás e ver tudo que se passou é muito legal… parabéns pelo relato!

Valmir  Chicarolli
Valmir Chicarolli
17 anos atrás

Ptz, Gregório Bacic!! Um dos gênios da Tv brasileira. Tive oportunidade de conhecê-lo e o tiozinho é um gênio. Pena que torce para o Guarani…rs

É seu Flávio, começou com o pé direito, rodeado de excelentes profissionais!

Tohmé
Tohmé
17 anos atrás

É amigo. Foi à luta e chegou lá.
Tem um Nagra desses?

Thiago Azevedo
Thiago Azevedo
17 anos atrás

Flavio, você deve ter bastante jogo de cintura para fazer entrevistas sem conhecer o assunto hehe. Legal, eu mesmo não tenho esta capacidade.
Ciência… Coisa que praticamente não existe no Brasil. Aqui, o cara faz mestrado e doutorado e, salvo raríssimas exceções, a única alternativa é dar aulas. Não que estas pessoas qualificadas não sejam importantes para a educação, mas como suas potencialidades não são usadas, perdemos muito com o não desenvolvimento de tecnologias por aqui. O Brasil precisa de mais profissionais professores, e não professores profissionais… E assim continuamos dependentes…

VELOZ-HP
VELOZ-HP
17 anos atrás

Eu tô falando a muito tempo por aqui, todos nós de um jeito ou de outro cruzamos nossos caminhos a vida toda e só agora nos percebemos disso.
Você frequentava a loja Sebring na Rua Augusta na mesma época que eu. Agora me vem com essa do seu primeiro emprego na USP.
Pois saiba, nobre kamarada, que no período em que você trabalhou na USP na Cultura AM num programa de ciências, eu estava lá também trabalhando na Comissão Nacional de Energia Nuclear, o famoso CNEN, no projeto e montagem do laboratório de dissolução e enriquecimento de urânio.
Fui, inclusive, um doador voluntário de vários discos LP de música erudita para serem tocados nos programas da Cultura FM. Cortesia dos meus pais.
Nas noites de sexta e sábado haviam os rachas no Circúito do Relógio em frente aonde você trabalhava e depois no Circúito da Fonte, mas isso é uma outra história que fica para uma outra ocasião.
Pelo jeito é melhor nem tocarmos em nomes de garotas e ex namoradas pois é bem capaz de termos “conhecido” algumas delas em comum.
Grandes tempos, eu me lembro muito bem…

armando
armando
17 anos atrás

Parabéns FG, e “Vamos a luta oh campeões”….

Rodolfo I. Vieira F.
Rodolfo I. Vieira F.
17 anos atrás

Bem legal toda esta sua história , é muito bom ter boas lembranças .

reginaldo
reginaldo
17 anos atrás

Cara!: vc está entrando na crise da meia idade. Vai de acostumando . Esses momentos “revival” são normais e dão uma saudade louca daquilo que fizemos no passado. Até das loucuras cometidas. Faz um bem danado pois demonstra que temos história. Ainda bem que podemos relembrar e sonhar…..Abração

Marcelo Liberatori
Marcelo Liberatori
17 anos atrás

Estudei no Colégio Agostiniano Mendel do Tatuapé e, se não me engano o nome é justamente uma referência a Gregor Mendel.

Alex Moreira
Alex Moreira
17 anos atrás

A pintura da Honda acabou de ser divulgada, será aquela mesmo

Estevão
Estevão
17 anos atrás

O Sr. Gregório Bacic continua na ativa na TV Cultura. Ele eo o Antonio Abujamra capitaneam o único bom programa de entrevistas da TV brasileira, o Provocações.

Bom porque o entrevistado tanto
pode ser o Galvão Bueno, quanto eu.

Sem estrelas, o negócio se torna bem mais interessante. O quadro “vozes da rua” é excepcional. Entrem no site e vejam por si: http://www.tvcultura.com.br/provocacoes/
Abs.