AQUI NÃO PODE (10)

SÃO PAULO (estamos de olho) – Não sou de ficar reclamando. Só porque perdi três horas da minha vida esperando uma credencial na quarta-feira, levei uma hora na quinta entre o túnel debaixo da pista e o estacionamento, a faixa de carros credenciados hoje estava cheia de carros não credenciados, o trajeto da minha casa até a pista me tomou duas horas, a sala de imprensa é uma cabana sem vista para a pista e exige subir uma escadaria de 62 degraus até o paddock?

Não, não reclamo.

Porque quem tem de reclamar é esse pessoal aí embaixo.

João Felipe Coelho Viterbo é um leitor deste blog, espécime bem raro, e mandou a foto. Diz no e-mail: “Professor, só mandando porque sei que você faz cobertura séria do GP. Portão do setor G fechado, 11:33 da manhã. Minha primeira vez em Interlagos, cheguei na fila às 9:30 e não consegui ver a Sprint. Abraço e bom trabalho. Tô acompanhando tudo lá no blog!”.

Setor G, o mais “popular”: portões fechados, polícia sem fazer nada

Essas pessoas têm muito do que reclamar. No Grande Prêmio, nossa equipe está produzindo uma reportagem sobre a desgraça de milhares de torcedores que chegaram às 7h, 8h em Interlagos, e até o meio-dia não tinham conseguido entrar no autódromo. Perderam a Sprint e as corridas de apoio. Ficaram três, quatro horas em filas amorfas e hostis. Tudo por pura falta de organização.

Nunca vi nada parecido, nem nos anos 90. E, agora, tem-se na F-1 um público mais estridente. Há 30 anos, era uma galera acostumada a perrengues. Torcedores forjados nos barrancos de Interlagos e no calderião de Jacarepaguá. Sabiam se virar.

Hoje, não. São pessoas habituadas a QR codes, e-mails de validação, mensagens de SMS e “check in”. Se alguma coisa não dá certo, vão às redes sociais e “xingam muito no Twitter”, como se dizia há anos.

(Dá para acreditar que maneirismos do Twitter, que nem tem mais esse nome, são coisas de um passado que parece tão remoto?)

Multidão na rua: lerdeza para entrar no autódromo

E são pessoas que além de xingar muito no Twitter (e no “face”, no “insta”, no TikTok, e na puta que pariu), procuram culpados muito rapidamente. Estão no seu direito. Tenho certeza que boa parte dessa multidão da foto acima deve estar culpando o Lula. A massa do público do automobilismo é majoritariamente de direita e culpa o Lula por tudo. E a esquerda e os comunistas. Hoje vi um cara que, atendendo à solicitação da organização para usar as cores do Brasil para homenagear “nosso Ayrton”, desfilava com uma camiseta amarela da Havan.

A culpa, patriotas, é dos organizadores. E da Prefeitura do prefeito Ricardo Nunes, que administra esta pocilga através de uma empresa pública, a SPTuris, e precisa cuidar dela de forma a oferecer algum conforto a quem paga ingressos caríssimos — em vez de ficar se preocupando com os vips nos camarotes. Prefeitura que asfaltou a pista e ficou uma merda, como disseram os pilotos.

Parece papo antigo e fora de época, mas não é. Porque se é verdade que havia perrengues no passado, posso garantir que não se cobrava para este evento o que se cobra hoje. Um amigo querido que veio com sua filha está num setor de arquibancada de 4 mil reais por cabeça que não tem espaço para os pés.

Fiquei assustado quando cheguei hoje pela manhã. Uma multidão ao longo da avenida Interlagos para a entrada em vários setores, poucas catracas, gritaria, gente passando mal, dezenas de viaturas da PM e da Guarda Civil, além das motos dos policiais sobre as calçadas apenas atrapalhando o trânsito e o fluxo das pessoas, que precisam o tempo todo desviar das “autoridades” para perguntar algo a não se sabe quem sobre o que não saberão responder.

Na boa, quando a F-1 veio para cá em 1990 eu achei que os acessos a Interlagos e a proverbial desorganização brasileira não suportariam a quantidade de gente que um GP movimenta. Mas, para enorme surpresa de todos, foram anos de absoluta calmaria. Paravam-se os carros em bolsões de estacionamento e apenas ônibus levavam o povo ao autódromo. Carros, só os de serviço e credenciados. Funcionava muito bem. A prefeita Luiza Erundina e sua equipe, mais a Interpro, que promovia a corrida, souberam domar as multidões.

O problema é que nos últimos anos foram multiplicando setores, ampliando as áreas de “hospitality” dentro do circuito, botando muito mais gente em cada centímetro disponível de Interlagos, criando ingressos que não se limitam mais a um cartão ou um papel, exigem celulares, validações, códigos, senhas, inventaram de revistar todo mundo porque não se pode mais entrar no autódromo nem com uma caixinha de cotonetes, e em vez de aumentarem a segurança, transformaram tudo numa desgraça.

Não há muito o que dizer para quem ficou três, quatro, cinco horas na fila e perdeu o que aconteceu até agora por aqui. Lamento, apenas. Processem a organização, a Prefeitura, a Eventim (“tiqueteira” oficial do evento). Não tem o menor cabimento não conseguirem organizar um evento para 70 mil pessoas. Um dos motivos dessa zona é que o estímulo ao transporte público e a proibição de carros particulares foram deixados de lado. Porque essa gente não pode proibir os exibicionistas de chegarem ao autódromo com seus Porsches & similares, não é mesmo? Reclamariam muito no “insta” e não conseguiriam produzir seus “conteúdos”.

É o que penso.

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Diogo
Diogo
4 meses atrás

Que zona. Entrei na tal Eventim e vi o ingresso mais barato no setor puta que pariu e pensei, é tenho meia, uns pontinhos aqui na cia aérea e falei pra mulher, é hoje que assisto esse trem pela primeira vez. Ela com o bebê no braço e a pequena nas pernas em tom de brincadeira e com cara ameaçadora: tá bom, pode ir, depois vou no jogo do Coxa. Algo me disse que seria uma boa ideia recuar. Ainda bem. Ainda tem imbecis que andam por aí orgulhosamente com camisetinha da Havan, do nosso queridão sonegador-mor? Arre, vaderetro. O ruim de ir nesses trem é esses playboy folgado, por que playboy comuna como o Flávio mesmo são poucos, rsrs. Deixa os nenens crescerem mais que terei uma desculpinha melhor e um pouco mais de sorte, espero. E um país com menos jumentos também, esses merecem a espera, quem sabe já não oram pra algum pneu e tudo certo, uma pena pra galera de boa que não tem nada a ver com essa zorra e se ferra por falta de organização.

Alexandre Neves
Alexandre Neves
4 meses atrás

Hoje perdi a Sprint porque fui até Martinsville, 1:45 de casa, ver a corrida da NASCAR Xfinity. Como é a última dos playoffs, e Martinsville ser bem popular, estava LO-TA-DO. Cheguei as 2:10, comprei umas bugigangas, comida, vi o treino da Cup. A corrida começou às 4:00. Às 9:30 da noite já estava em casa. Organização IMPECÁVEL. Aliás, como na imensa maioria dos eventos por aqui. Muito triste em ver essas notícias, parece que perrengue é a regra no Brasil, não a exceção.

Edson
Edson
4 meses atrás

É inexplicável um prefeito péssimo como o Nunes ter sido reeleito, o cara não dá conta nem de manter funcionando o que já existia, as coisas na mão dele estão regredindo, ainda bem que não moro na capital Paulista, como diriam as meninas da rádio.
Mas os faria limers estão satisfeitos pois pelo menos livraram a cidade de Santo Paulo do comunismo.

Fernando
Fernando
4 meses atrás

Sensacional o seu trabalho.
Muito obrigado.

João Felipe
João Felipe
4 meses atrás

Valeu por mostrar o que precisa ser mostrado, professor! Abraço!

Valmir Passos
Valmir Passos
4 meses atrás

Que absurdo. Frequentei por muuuitos anos e nunca vi Interlagos assim. Que zona!

Carlos Jose Pimenta Franco
Carlos Jose Pimenta Franco
4 meses atrás

Excelente texto, excelente. Os minions devem estar falando que São Pedro é Comunista.

Igor Belizário Rocha
Igor Belizário Rocha
4 meses atrás

Boa tarde Flávio, hoje na transmissão da TV Argentina – moro em Buenos Aires – os jornalistas destacaram a grande desorganização do evento e péssimas condições de trabalho oferecidas a imprensa, citando inclusive o GP do México em contraponto. Agradeço pela cobertura em texto, é de grande valor. Um abraço.

Vinicius
Vinicius
4 meses atrás

Adaptando uma frase antiga: a Fórmula 1 é legal, mas o fã-clube é uma merda.

Marcio Marolla
Marcio Marolla
4 meses atrás

Olá, FG. Terrível essa desorganização, pior: é a área que tem mais hermanos sulamericanos. Uma vergonha.
Um ponto para quem acompanhou a transmissão. Foram sete horas de transmissão sem um único comercial. Essa conta não fecha.

Renato
Renato
4 meses atrás

Lamentável, mas quem já teve que lidar com a Eventim já sabe que desorganização é uma prática recorrente deles.

Rodney Domingues
Rodney Domingues
4 meses atrás

Jornalismo? Morreu! Tudo é press release, feito por publicitários e quem não propagar as belas frases “icônicas”, é exilado. Opinião só dos influencers que não tem conhecimento nenhum. Ah, aborrecido, nem ficou boa minha crítica! Valeu, Flávio, pela cobertura.

Paulo Rickli
Paulo Rickli
4 meses atrás

Alô Buenos Aires ! Tá ficando fácil levar essa corrida pra outro canto da América do Sul…

Joelton
Joelton
4 meses atrás

Flávio, não assisti a Sprint pela TV. Dormi além da hora.
Antes de ler essa publicação, tive que assistir a uma longa entrevista do Celso Miranda (puxando o saco escancaradamente) com o “excelentíssimo” Sr. Prefeito de São Paulo, que estava passando o “mundo de maravilhas” que Interlagos vivia nesse momento.
Eu já estava puto com o conteúdo e duração da tal entrevista, panfletária, e lendo estas suas palavras, só posso repudiar a bandeirantes, o repórter e esse ignóbil governante, que só num país como o Brasil pode ter tanto eleitor. Nojo disso tudo!

O crítico
O crítico
Reply to  Joelton
4 meses atrás

Infelizmente, Joelton, ignóbeis governantes e seus eleitores estão a se proliferar iguais a baratas no mundo todo. Nos resta torcer muito para que um ignóbil mor não seja eleito em breve lá no norte.

Zé Alonso Muchon
Zé Alonso Muchon
4 meses atrás

Esperava antes dos sessenta assistir ao GP BRASIL de F1, mas o tempo voou e não con$egui. Hoje já não tenho saco nem saúde pra compartilhar espaço com pseudos endinheirados posando de europeus e vestindo camiseta da seleção comprada no Brás. Em tempo: acompanhando bastidores na tv bandeirantes canal 13😎, o jornalista se superou ao finalizar a entrevista com o NelsinhoPiquet : “o nelsinho trouxe mais uma vez a característica da família; HONESTIDADE ” é de cair do sofá e assistir jogo do varzeano aqui em Sorocaba SP. PT saudações.

O crítico
O crítico
Reply to  Zé Alonso Muchon
4 meses atrás

Ah, sim, caro “jornalista”, a família do motorista do capetão é um primor de honestidade, um exemplo de comportamento ético para todos. Putz, o mundo realmente está de ponta-cabeça.

Fernando (Pai do Clark)
Fernando (Pai do Clark)
4 meses atrás

Putz, tenho um misto de sensações com essa situação.
Por um lado, acho que tá totalmente errado, quem pagou tem direito de ser bem atendido (não importa o que e quanto) e quem vendeu (essas tiqueteiras são uma aberração) tem obrigação de prestar um bom serviço, além obviamente das autoridades que estão interessadas no bônus de um evento desses e nunca no ônus de se preparar.
Isto posto, o outro lado quer mais é que se foda a maioria dessa turma, que vota com o rabo e só repercute devaneios do zap… Inflacionaram absurdamente o setor de shows e eventos para não deixar de postar sua presença…
Escrevi com o fígado, infelizmente.
Abraço e boa cobertura Jornalística.

O crítico
O crítico
Reply to  Fernando (Pai do Clark)
4 meses atrás

É isso mesmo, é difícil ter pena dessa gente. Recentemente presenciei muitos idiotas vaiando um promotor de um show que, por solicitação da banda, exigiu da plateia que não filmasse ou fotografasse enquanto estivessem tocando, sob a ameaça de encerrarem a apresentação antes do final. Isso no intervalo, porque o pedido já havia sido feito, por vídeo e áudio, antes do início do show. Pedido obviamente ignorado por pelo menos 90% da plateia, o que levou à reprimenda posterior. Mesmo assim, com a maioria se submetendo, alguns imbecis ainda fizeram questão de desobedecer, para serem abordados, de forma constangedora (pelo menos o seria para mim), por seguranças. Mas, pior ainda foi o comportamento de um casal que estava logo à minha frente: durante a primeira parte, se preocuparam só em filmar e em se fotografar, fazendo as poses as mais cretinas possíveis; após o intervalo, literalmente murcharam, ficaram sem ter o que fazer, pararam até de interagir um com o outro. Fiquei me perguntando o porquê de estarem ali e penso que só não foram embora para não passar (ainda) mais mico.