A chuteira preta

SÃO PAULO (como prometido, não falo de futebol!) – Não falo de futebol, mas aplaudo de pé bons textos. Como esse abaixo, de Joaquim Ferreira dos Santos, em “O Globo”.

Uma delícia. Leitura obrigatória.

CHUTEIRA PRETA NELES

A chuteira preta não melhora o esquema tático de time algum. Feia e fora de moda, sozinha ela não sabe o caminho das redes nem o da sexta estrela no céu dos comerciais.

Mas faltou ela, digna e cheia de lama, amaciada com jornal de ontem, para contar aos jogadores do Parreira as lições de história e civismo dos que vieram antes e colocaram essa pátria mixuruca literalmente em pé nos estádios de todo o mundo. Daria moral.

A chuteira preta, se é que eu me faço claro na vontade de entender a escuridão futebolística em que nos metemos, não ficaria ajeitando as meias na entrada da área enquanto o francês enfia para dentro das nossas redes.

Ela vai na bola de qualquer jeito, não está preocupada em mandar mensagens ao pessoal do marketing da Nike.

A chuteira preta, coisa de museu do Maracanã, é prima pobre da chuteira amarela — mas tem vergonha na cara.

Não compactuaria com os comerciais da Skol, em que os brasileiros ganham dos argentinos porque a trave se mexe a nosso favor.
A chuteira preta é senhora obsoleta na terra dos bandidos espertos.

Ela devia ter feito pelo menos uma preleção aos jogadores-modelos do Armani e acertado, se não o passo, o caráter dessa gente antes bronzeada e agora só patrocinada.

Ela estava nos pés do Barbosa contra o Uruguai, no do Toninho Cerezo no Sarriá.

Ela sabe tudo dos grandes heróis nacionais que perderam com a cabeça erguida, e ao mesmo tempo calçava também Romário para ele dar o biquinho genial contra Camarões em 94.

Viu de tudo e sabe. Faltou tesão. Para falar a língua que os novos jogadores entendem, faltou patrocínio do Viagra na chuteira dourada desses chupadores de sorvete verde da Kibon.

Está visto pelos que sofreram com o Brasil e França de anteontem, está definitivamente confirmado pela nossa mais profunda decepção com a apatia brocha desses patetas, que só os tolos acham o futebol um jogo a ser resolvido na bola.

Faltou o humildificador-macho da chuteira preta com a inscrição de todas aquelas partidas inesquecíveis que tiraram o Brasil do canil dos vira latas e reinventaram, para proveito de todo mundo, o brinquedo do futebol.

Ela não arredondaria o quarteto mágico, não tiraria cinco anos do Cafu, 20 quilos do Ronaldo.

Não é disso que se está sofrendo. A chuteira preta é uma postura de vida.

Não canta de galo, não afronta, pois aprendeu ouvindo Noel que o revólver entrou em cena para acabar com a valentia.

Sabe, de tanto ver futebol na televisão, que todos os times do mundo jogam a mesma bolinha — e a diferença está no talento e na dedicação ao jogo.

O talento brasileiro, viu-se por todo o mês de junho, é exclusivo do Gatorade e da Brahma.

A dedicação vai junto no pacote — só serve às bandeiras dos novos donos.

Na simplicidade cromática que a chuteira preta carregava não vinha escrito “Nascido para jogar futebol”, como na camiseta Nike-Seleção. Vinham inscritos o vigor do Dunga e a folha-seca do Didi, todos do meio do campo, todos começados por D, todos certos de que para cada tempo se vai na bola de um jeito — mas sempre com Dignidade.

Vontade, hombridade, seriedade, essas caretices que não avançam um passo no que interessa ao jogo de hoje.

Comer todas as louras, encher todas as burras de euro e ganhar a bola de ouro daquela revista francesa.

A chuteira preta está por fora e isto aqui é só um necrológio a essa dama linda que já se foi faz tempo.

Ela não imprime bem no vídeo de plasma, fica chapada no gramado verde, não salta aos olhos a marca do patrocinador — mas quanta sabedoria moral ela carrega em cada trava, quanta lição de postura viril em cada costura de seus cadarços.

A chuteira dourada, o laço de fita nos cabelos, os relógios-apartamentos no pulso do Roberto Carlos.

Esse foi o Brasil na Copa. Acreditamos, Parreira dizia toda noite, que com a Golden Cross ao nosso lado ficaria mais fácil. Tudo mentira.

Se Ronaldinho fosse na bola com a fúria que ele passou esses meses todos correndo atrás do desodorante Rexona roubado no vestiário, estaríamos na semi-final contra os portugueses.

Faltou chuteira preta, séria, cívica, nos pés e no lombo deles também.

Esse passadismo, só superado pela geladeira branca, está impregnado de Gerson, Brito e Tostão suficientes para ser calçado nos pés das focas do Santander e dar força brasileira, injetar uma overdose de Almir Pernambucano nos artelhos dos falsos tomadores de Guaraná Antártica.

Calçaria os brios dos mercenários. Daria vergonha na cara dos apátridas.

Faria como nos velhos tempos, antes do futebol virar um show de rock globalizado, quando os filhos teus não fugiam à luta nem ficavam olhando como o telão no alto do estádio está divulgando sua imagem para os futuros patrocinadores.

Foi uma tragédia.

Trocou-se o quadrado mágico pelo Juninho Pernambucano, o Cafu pelo Cicinho.

Não eram esses, vê-se agora, os problemas. Robinho é da Vivo, Ronaldinho da Oi.

Evidentemente não se telefonavam para organizar o movimento, orientar o carnaval e inaugurar um novo monumento em honra ao futebol no planalto central do país. Nada deu certo.

A chuteira preta da humildade, com suas mil e uma utilidades, teria colocado a bola no chão, a cabeça no foco e o coração em jogo.

O Ronaldo toma Brahma e a propaganda mostra. Não dá a primeira para o santo. Não dá para ninguém.

Nunca fomos tão individualistas, sem sentido de equipe.

A pátria da chuteira preta era o contrário e o Sobrenatural de Almeida do Nelson Rodrigues, que Deus nos tenha a todos, devia atirar um par delas — acordem, muquiranas! — no quengo desses Ronaldos de anteontem.

Caramba!, o Maradona estava certo. Que pesadelo!

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fred coutinho
fred coutinho
17 anos atrás

O melhor texto sobre a Copa que saiu na imprensa brasileira. Joaquim é o melhor cronista que temos na atualidade.

Paulo
Paulo
17 anos atrás

Parabéns,Parreira!

Parabéns senhor Parreira
rei da teimosia e pasmaceira
parecia até uma brincadeira
O time dormindo a partida inteira
Sua imagem à beira do campo
seria cômica, não fosse trágica
Inerte, morto, o tempo passando
esperando por um passe de mágica
O time te via ali desmotivado
sem nenhuma emoção aparente
como se novamente o resultado
Houvesse sido acertado previamente
Não acho pena não termos ganhado
mas sim não termos jogado, covardemente.
Por certo haverão os que se façam de sonsos
achando que que perder um jogo é normal
querendo sempre parecer bons moços
Insonsos , sem açucar e nem sal.
Mas eu prefiro falar o que penso
e mostrar a minha indignação
pois acho de muito bom senso
Não me fazer de babaca não.

Arquimedes
Arquimedes
17 anos atrás

Texto fantástico. Fica a ressalva para “pátria mixuruca”. Sacanagem… eu jogo minhas peladas no gol e uso chuteira prateada rsrsrsr

Serginho RJ
Serginho RJ
17 anos atrás

clap, clap, clap, clap.
absolutamente fantático texto.

Severino
Severino
17 anos atrás

Numa palavra: Genial!

Renato
Renato
17 anos atrás

Brilhante! Verdadeiro!

Rafael Lucas
Rafael Lucas
17 anos atrás

Acho que os últimos heróis do futebol foram Dunga, Romário e Taffarel. Depois deles só vieram esses fantoches que se vê por aí.
Aliás, a primeira chuteira colorida que me lembro surgiu na copa de 94, um jogador da Bélgica usou uma vermelha combinando com a camisa.

Edgar SC
Edgar SC
17 anos atrás

Ahahaha…
O Maradona tava certo!

Que pesadelo!!!

É verdade…

do contra
do contra
17 anos atrás

Parei de ler o texto logo no segundo parágrafo, assim que vi a descrição deste país como “esta pátria mixuruca”.
Não sou chegado a patriotadas, mas sou muito menos chegado a desrespeito.
Tenha dó!!!!

Carlos Alkimim
Carlos Alkimim
17 anos atrás

Falou com autoridade, razão e coração. É isso ai irmão ! ” a caravana passa enquanto os cães ladram”, como diz o poeta.

VIRGO
VIRGO
17 anos atrás

Ao Luiz Eduardo,

Assino embaixo. E ficamos assim,
Não usamos Rexona,
Não abrimos conta no Santanderrrr
Não tomamos Brahma
Não compramos nada da Nike…
Mas, acho que todas essas marcas já devem estar se tocando que não vale a pena associar a sua imagem a esse bando de perdedores mercenários…. E providenciando a demissão desses diretores de Merdaketing que aprovaram campanhas publicitárias milionárias acreditando na conversa mole da Globo e contando com o ovo no fiofó da galinha.
O texto não fala de saudosismo; o texto fala que heróis se fazem com caráter, coragem e atitude.
Estamos mal de heróis….

Luiz Eduardo
Luiz Eduardo
17 anos atrás

Concordo com os que dizem que este texto deveria ser escrito antes, e com o Ingo quando diz que deveríamos ficar indignados com nossos políticos também. A seleção é só uma foto do país, onde se faz política com o mesmo individualismo, a mesma falta de brio e patriotismo e o mesmo desrespeito ao povo. Cabe a nós, simples mortais, fazer uma faxina geral, seja através do voto, do protesto e até do boicote aos produtos que patrocinam “nossos” jogadores.

Acarloz
Acarloz
17 anos atrás

Sensacional o texto, traduz o que muitos gostaríamos de dizer aos galáticos. Porém tínhamos sim uma chuteira preta no time, pena que não teve chance de mostrar sua dedicação e raça, chama-se Mineiro.

Abraço!

Alexandre Reis
Alexandre Reis
17 anos atrás

Belo texto, agora é transferir a revolta e vontade de luta pra a politica, pois os pilantras já estão armando mais um monte %!$&#por ai.

Ricardo Jungbluth
Ricardo Jungbluth
17 anos atrás

Assim ainda valem comentários sobre futebol FG, valeu porque aonde me escondo não tenho OGLOBO, esta foi de maestro, não importando se o amigo escreve para este imparcial e preciso gigante da mídia ou pra o pasquim medíocre da esquina, nada mais a dizer hoje, MATOU A PAU….

Bola
Bola
17 anos atrás

Muito bom o texto.
E pro pessoal que reclama da hipocrisia da globo, espero que esta revolta/desanimo com a seleção marca registrada FIFA/CBF diminua um pouco o maldito culto a estas estrelas de ceus europeus. Por que é por comprarmos as chuteiras/desodorantes/cervejas e outras inutilidades quenemdosjogadô é que temos de engolir junto o Galvão e a cada vez mais estapafúrdia cobertura Globo.
Mas a mudança tambem precisava de uma ajudinha da FIFA. Esta sim transformou o futebol em vitrine de boutique e nos obrigou a ver a copa na globo. Fez até alemão beber Budweiser !!!!

o revelador
o revelador
17 anos atrás

é… agora não adianta chorar né…. pq a globo não falou disso antes????? Engraçado o Galvão, que é do mesmo grupo deste senhor que escreveu o texto, dizendo nos minutos finais que futebol não é tudo na vida….. pq não disse antes Gavião!!!!

Deodato Filho
Deodato Filho
17 anos atrás

TEXTO BEM MONTADO. MAS VOCÊ CONTINUA A ENALTECER A POBREZA.

Willian
Willian
17 anos atrás

Texto muito bonito……….

Mas porque escrito só agora?

Será que foi uma revolta das organizações Globo porque a seleção saiu antes da hora, e que o contrato com os anunciantes foi interrompido ?

Pura hipocrisia……….

Mais um marmitex………..informação pronta para vc digerir…….mais um marmitex da Globo.

Se a seleção tivesse nas semi-finais………o texto seria outro……..chamando o Ronaldinho de fenômeno das chuteiras douradas…………..o fenômeno de audiência da Globo.

Bando de hipócritas.

Ingo
Ingo
17 anos atrás

Muito bom o texto.
Mas aproveitano a carona deste “texto-indignação” eu gostaria que o brasileiro mostrasse indignação contra os políticos corruptos assim como mostra contra os jogadores e técnicos que vacilam.
O brasileiro está prestes a reeleger um parreira pra presidente… Mas o que eles estão preocupados é com o Parreira técnico.
o brsileiro é passivo com a política e altamente ativo no futebol. Tens o que merece.

Augusto Freire
Augusto Freire
17 anos atrás

Sempre digo aos meus filhos que detesto essas chuteiras coloridas, brancas, prateadas, douradas, etc. Só não havia ainda conseguido verbalizar o que está por trás disso. O Joaquim disse tudo. Só para completar, acho mesmo as chuteiras pretas mais bonitas, têm mais classe, as chuteiras de cores de hoje fazem os jogadores parecerem palhaços, bozos, com os pés enormes. E os nossos confirmaram isso no campo…

1GT
1GT
17 anos atrás

Texto fenomenal!
Como já disseram…o FG não está no seu normal..tá acertando tudo ueheuhee

Joaquim Souza
Joaquim Souza
17 anos atrás

Alguém que more perto da %!$&#da sede da CBF, deveria imprimir e madar colocar debaixo da porta da %!$&#da sala do %!$&#do Ricardo Teixeira…

TEXTO MARAVILHOSO!!!!!!

Thiago Azevedo
Thiago Azevedo
17 anos atrás

Texto espetacular.
Deveria ser mandado para cada um dos jogadores do Brasil.

Polly Parker
Polly Parker
17 anos atrás

Tenho cantarolado esses dias, a música “O Futebol”, do Chico Buarque, c/ saudade do futebol nela cantado. Futebol q/ nem conheci, infelizmente. Esse texto me despertou o mesmo sentimento q/ a música. Nostalgia do q/ nunca vi.
Será q/ um dia vou assistir algo próximo desse lendário futebol num estádio, ou mesmo pela tv, mas numa transmissão ao vivo e não uma reprise de antes de eu nascer? O mais próximo q/ vi disso, foi o Reinaldo no Mineirão, mas era ainda pequena e as lembranças são poucas e quase apagadas pela triste história q/ o meu Galo vem vivendo de lá prá cá… c/ um presidente q/ é o maior credor do clube. E futebol não há na Cidade do Galo há anos.
Mas na tv me dizem q/ sou brasileira e não devo desistir nunca! Só rindo. Ou pingando o colírio alucinógeno do José Simão.

Thais
Thais
17 anos atrás

gostie muito do texto FG!! que bom que o colocou aqui… pq eu detesto futebol, mas esse estava especial!!!
faltou falar dos casamentos em castelos…. rs
Mas realmente, “que pesadelo” que a chuteira preta tenha sido deixada de lado!

Edison Guerra
Edison Guerra
17 anos atrás

Genial este texto!
Nada mais a dizer….
Abraços….