Flavio Gomes é jornalista, mas gosta mesmo é de dirigir (e pilotar) carros antigos.
SÃO PAULO (last days) – O Alexandre Neves mandou este vídeo (acho que já tinha visto, mas tudo bem) do tipo que antigamente a gente dizia ter sido feito por um “cinegrafista amador”. Foi em Spa, 1991, quando todo mundo vestiu a camiseta em homenagem a Bertrand Gachot, preso em Londres — a história todos sabem, foi o que permitiu a estreia de Michael Schumacher na F-1. Entre 0min40s e 0min42s aparece um rapaz atrás da notícia.
Acho que conheço esse rapaz.
Rio, despeço-me de ti olhando o mar pela janela e lembrando da primeira pizza, muito ruim, no hotel onde morei por um mês (terei problemas com as pizzas), mas foi só um mês, porque depois me instalei onde dava para ver o mar e o pôr-do-sol, e a pizza lá embaixo, que já fechou, era boa, e passei a acordar todos os dias com o cara da kombi-geladeira-velha-ar-condicionado-velho, então comprei uma bicicleta com pneus brancos e com ela atravessava a balsa todos os dias para ir trabalhar olhando o mar e escutando a rádio paradiso de berlim, achtundneunzig two (por que não é zwei?, preciso aprender alemão), no meu fone sem fio, e então um dia precisei tirar meu passaporte e fui com a bicicleta dos pneus brancos ao shopping e no meio da ponte os moleques agarraram o bagageiro e falaram alguma coisa e me assustei e fui em frente sem olhar para trás e quando tive de ir buscar o passaporte fiz outro caminho e quase tomei um tombo enquanto dava a volta num lago porque tinha muita areia na calçada, e então na casa nova no segundo dia desci com o cachorro e levei no lugar onde ficam os cachorros, e a moça com seu cachorro contou que estava se mudando para o prédio do lado, olha só, porque se separou do marido que era músico, mas ela sustentava porque o pai dela era militar e morreu e deixou os apartamentos e mais umas salas em campo grande e você sabe que eu não trabalho, né?, não, eu não sabia, pois é, e no outro dia outra moça no elevador com seu cachorro falou a mesma coisa, você sabe que eu não trabalho, né?, e aquilo me causou a falsa sensação de que ninguém trabalhava aqui, ou ao menos as moças com os cachorros do meu prédio, e é claro que isso não era verdade, todo dia às oito da manhã a voz metálica da kombi-fogão-velho-ar-condicionado-velho me lembrava que todos trabalhavam e desde cedo, porque às oito da manhã se a kombi-microondas-velho-ar-condicionado-velho não me acordava, me acordavam os moços cortando a grama e assoprando as folhas no condomínio do outro lado da rua, e assim foram os primeiros meses, bicicleta de pneus brancos, balsa, calçadão da praia, rádio paradiso, musik zum verwöhnen, vou estudar alemão, e então entrei na escola de alemão e comprei os livros, mas não fazia as lições de casa, então não adiantou muita coisa, mas duas vezes por semana pegava a bicicleta de pneus brancos e ia ao shopping estudar alemão, aqui onde morei nesses anos tudo fica dentro de shoppings, gardens, squares, villages, malls, tem até uma estátua da liberdade, downtown, city, aí fui ao grande mercado, guanabara, tudo por você, vi na TV, café pimpinela nove e noventa e oito, óleo de soja leve ou soya sete e noventa e nove, e embaixo do mercado tinha tudo para comprar, pratos, garfos, facas, copos, panelas, jarra de plástico, foi difícil encontrar o escorredor para macarrão mas achei, aí veio o calor e as pessoas me olhavam de um jeito estranho no calçadão com minha bicicleta de pneus brancos e calças compridas, na balsa tudo bem porque os caras da balsa já me conheciam, e um deles queria toda semana que eu entrasse no bolão da megasena, mas nunca entrei porque não jogo, acho muito difícil ganhar, depois uma vizinha convidou para passear de barco nas ilhas tijucas, mas foi meio esquisito porque não conhecia ninguém e era um barco pequeno e no fim eram só umas rochas no meio do mar, e todo mês eu metia o pé e pegava o avião e ia lá para onde morava, e às vezes durante a semana tinha um jantar dos amigos que também haviam se mudado para cá, e eu ia de metrô, riocard, metrôrio, e voltava de táxi amarelo, ônibus eu não pegava porque desde pequeno morria de medo dos ônibus daqui, os motoristas são todos loucos, dizia meu pai, e eram, são, mesmo, aí meu livro ficou pronto, e quando chegou pelo correio peguei a bicicleta de pneus brancos e fui ao rosas, é um condomínio, ou um bairro, é aqui perto, perto do shopping onde estudava alemão, então me sentei sozinho no bar do rosas, pedi o prato que gostava, tomei duas caipirinhas e li o livro todo e...