O FIM DA ALDEIA
RIO (merci) – Se um dia me perguntarem o que li na vida que mais me influenciou, creio que deixarei perplexos os que imaginam grandes autores ou clássicos da literatura mundial.
Minha formação vem basicamente de Asterix e Tintim. Era nos álbuns que comprava nas bancas de jornais da rodoviária da Luz, toda vez que embarcava no Cometa para Campinas voltando dos jogos da Portuguesa, que eu conhecia o mundo.
Tinha um ritual. Só quando o ônibus deixava a Marginal e entrava na estrada para engolir os oitenta e poucos quilômetros de asfalto até a cidade onde morava é que abria os livros. A leitura terminava exatamente na saída da Anhanguera, já de noite, enquanto a maioria dos passageiros dormia. Foram dezenas de viagens assim. Na minha memória, cada uma delas encantada. Jamais poderei expressar minha gratidão a Hergé (1907-1983), René Goscinny (1926-1977) e Albert Uderzo, que morreu terça-feira aos 92 anos em Neuilly-sur-Seine.
Devorei os 38 álbuns do gaulês que nasceu em 1959 nas tirinhas da revista “Pilote” resistindo ao Império Romano de Júlio César. Sua pequena aldeia era meu mundo. Nela, suspeito, vivo até hoje.
Obelix, companheiro inseparável de Asterix que caiu num caldeirão de poção mágica quando era criança, foi meu amigo imaginário por anos. Me fazia rir. Eu sonhava com grandes banquetes de javali e jurava que não descansaria enquanto não visse um menir de perto. Sem nunca saber direito o que era um menir, muito menos a inscrição S.P.Q.R. nos estandartes dos romanos que apanhavam o tempo todo dos gauleses. E nem queria saber. Achava que, em algum momento da vida, aqueles pequenos mistérios seriam desvendados naturalmente, quando estivesse rodando o mundo como se fosse um Flavix, desgarrado da Gália e do tempo.
(S.P.Q.R., anos depois, me foi traduzido por “sono pazzi questi romani”, piadinha de italiano, o que só comprovava que tinha razão Obelix, que achava todos loucos. Já os menires, eles existem. Há pouco menos de dois anos fiz uma viagem pela Bretanha que só se tornou completa quando fui a Carnac para vê-los de perto. Foi quando se fechou este ciclo de revelações e se a vida terminasse ali, tudo bem.)
Adulto, nunca reli os álbuns que deram vida e cor à minha infância e adolescência. Eles devem estar esquecidos numa caixa de papelão qualquer na casa de meus pais. Acho que é medo. Medo de descobrir que a poção mágica que a cada leitura fazia de mim um menino invencível talvez não funcione mais. Medo de descobrir que a aldeia não está mais lá.
Não é muito interessante voltar as nossas lembranças da infância : livros , lugares …
Tudo parece menor , menos mágico.
Deixa as revistas lá, permanece com as lembranças…essas sim, tem cheiros…magia.
Você tem alma de poeta. Explore essa vertente!
Foi tão triste pra mim saber sobre a morte do Uderzo… eu sei que os últimos álbuns já não tiveram a participação dele (e são muito bons, ma verdade), mas foi como quebrar um vínculo pra mim. Tenho essa msm sensação de q o “céu vai cair sobre nossas cabeças” e a aldeia gaulesa vai, enfim, perecer.
Todo o amor que tenho pela leitura hoje começou com “Uma Volta pela Gália”, que minha professora de português, em uma escola Municipal, me fez ler. Tudo mudou ali. Me apaixonei por aquele quadrinho, por aqueles personagens, pela leitura, pela mágica das palavras. Tenho certeza q cheguei no jornalismo e na comunicação por causa daquele momento.
Uderzo morrer agora, em meio a tempos tão sombrios é muito, muito triste pra mim. Que ao menos sua memória seja honrada e não destruam esse mundo fantástico que criou em seus quadrinhos. Descanse em paz, mestre Uderzo.
Pra mim, um dos favoritos é “A Zaragata”, onde Tullius Venenus, ou “o semeador de discórdias”, lembra muito certa pessoa atual.
Releia sim! tenho certeza que estará do mesmo jeito… talvez a música do Chatorix até tenha melhorado.
Olá Flavio
Tenho a coleção toda encadernada e recentemente descobri que já havia o “Coronavirus” naquela época.
vou te mandar as fotos.
Abraços
Oi, Flávio!
Eu tenho todos guardadinhos em perfeito estado. Como também tenho os de Tintim. E até algumas miniaturas de ambos. Também tenho as edições da Ebal de Flash Gordon, Príncipe Valente, as edições do Pato Donald e Tio Patinhas desenhadas por Carl Barks e Don Rosa e por aí vai.
Quando tinha uns 12, 13 anos, a professora de inglês da escola onde estudei, D. Wilma, disse que era melhor ir lavar calçadas do que ler gibis. Só me lembro do nome dessa professora. Talvez porque tenha me dado pena dela ter ouvido aquilo.
P.S. Li o Boto do Reno e entreguei o do meu sobrinho no Natal. Ele nem acreditou nos press releases que vieram juntos. Ri um bocado de vários textos. Em outros parecia que estava vendo os lugares que você descrevia.
Conheci Asterix em 1972, no cinema, desenho animado, adorei, só encontrei em formato de livro em 1975, Passei a comprar todos e a buscar em sebos os mais antigos, completei a coleção, que releio vez ou outra com rara emoção. As metáforas com o imperialismo são excelentes. Meu enteado aprendeu a ler na coleção, que hoje está encadernada como relíquia. Parece que o mundo só entristece a cada segundo e nenhuma poção surge pra dar jeito. Ri muito com Asterix, agora é hora de chorar também, grato Uderzo, até quem sabe…
Boa Noite, Fávio.
O meu preferido é “Cizania”. Daquele homenzinho asqueroso que com a sua simples presença criava problemas para todo mundo.Eu uso uma foto do Veteranix no meu status do WhatsApp .
Faço minhas as palavras do Fábio Renato.
A aldeia está dentro de você Flávio, revisitar os livros será como voltar para casa, não se prive. Bela homenagem!
Lindo texto, FG, você aprendeu bem com os irredutíveis gauleses e seus criadores!
Pode reler à vontade, os efeitos da poção são perenes… E recomendo um trecho em especial, da edição de 2009, o Livro de Ouro do Aniversário de Asterix e Obelix: na página de abertura, uma linda carta de Anne Goscinny, filha do René e escritora, para o Asterix. Arrepiante.
Flavio, recomento demais reler tudo. As expressões do Ideafix ainda são impagáveis e eu rio alto como se fosse um moleque, descobrindo o mundo na coleção de Asterix do meu pai. Do alto dos meus 45 anos, ainda me divertido barbaridades!
Como disse o Fabio Ribeiro, reler todas as histórias, agora adulto, é um exercício fantástico. Já fiz e recomendo. As sacadas sempre foram geniais, mas uma que me marcou. Quando foram lutar na Inglaterra, o Asterix deu uma dica para os ingleses: colocaquem algumas ervas no chá das 5. Antes, eles, os ingleses, só bebiam água quente.
Não deixaria perplexo, não. Isso é normal para quem gosta de ler. Prova de cultura multitextual. Quando vê cita Asterix, junto à sua escrita e ao repertório que demonstra nela, tem muito mais credibilidade que pseudointelectuais como o guru do imbecil do Planalto citando os carne-de-vaca da Filosofia.
FG, o site ficou bonito e limpo. Só está um pouco devagar.
Apesar de nunca ter comentado nenhum post, sou um leitor assíduo do seu Blog.
Eu não lhe conheço pessoalmente, provavelmente isso nunca ocorrerá, mas sempre me identifiquei com seus posicionamentos e seu gosto por automobilismo.
Fico feliz em saber que, assim como eu, você também possui boas memórias relacionadas as aventuras dos gauleses. Faço das suas palavras as minhas em relação ao gênio que foi Albert Uderzo.
Em tempos tão sombrios, talvez seja necessário procurar nas velhas caixas ou nas antigas gavetas as histórias do Asterix e Obelix, afinal a loucura dos romanos me parece um problema muito menor do que aquela que estamos vivendo.
Um abraço!
Flávio, lindo texto, na verdade, acho um dos melhores que li neste blog. Me fez relembrar um pouco da minha infância e refletir sobre o presente. Confesso que lendo o último parágrafo até escorreu uma gota de lágrima. Sem palavras!
Flávio, além dessa expressão chamando os romanos de loucos, há outra que diz “sono porci questi romani” – “São porcos estes romanos”: parece que era muito usada pelos florentinos nos idos de 1500, época em que Florença tinha o brilho de Michelangelo e Da Vinci.
Eu voltei a ler Asterix quando adulto, depois de aprender francês – foi uma excelente desculpa! Vale reler sim, vale muito, Asterix tem vários níveis. Depois de adulto dá pra apreciar melhor o caráter absolutamente francês dos livros, as piadas auto-referentes, os contrastes culturais – e, especialmente, o que motiva tudo isso, a luta contra o fascismo. Em dias como os nossos, absolutamente necessário. Minha filha tem seis anos, mal posso esperar ela ler um pouco mais pra dar os livros pra ela.
Eu acho que Tintim envelheceu pior, tinha muito de colonialismo em algumas histórias, fica difícil reler hoje. Abraço, e que tenhamos mais javalis assados no futuro!
Somos dois. Entendo perfeitamente o que você quer dizer e está sentindo. Quando levei meus filhos ao parque Asterix, comecei a chorar de repente. Eles, que nunca tinham me visto chorar, não entenderam nada.
Estes textos e que fazem do blog um sucesso e nunca deveriam deixar de existir,
Toda vez que me convenço a parar de lê-lo, por sua ignorância política e social, me deparo com textos magníficos como esse. Poucos no mundo tem seu talento para escrever… poucos no mundo sabem colocar as palavras corretas para que nos imaginemos dentro das suas histórias e relatos. Ler teu blog é um vício diário, às vezes muito irritante, mas, na maioria, muito prazeroso. Para mim vc é a prova que é possível admirar pessoas que tem um pensamento completamente oposto ao seu em algum assunto. Parabéns pelo texto! Vc é foda!
Muito educado, você.
hAaa ra ra ra ra ra , rachei de rir , esse pode vir pra Goiás! Chuta o balaio mas não larga o piqui.
Grande texto. Li todos os livros de Asterix, assim como de Luky Luke e outra BD franco/belga, como Comanche ou Bernard Prince. Essenciais.
Obrigado.
Você já leu “Asterix e os Godos”? Este é o meu preferido de todos…