A BANDEIRA
SÃO PAULO (em breve) – O texto abaixo é um piloto de um projeto que, espero, seja levado a cabo em 2022. Escrevi sob encomenda dois dias depois da vitória de Hamilton em Interlagos. Como é um piloto, não seria justo deixá-lo morrer numa gaveta lido por apenas meia-dúzia de pessoas. Digam o que acharam, se acharem alguma coisa…
Ayrton Senna pegou uma bandeira do Brasil para comemorar uma vitória na F-1 pela primeira vez no GP dos EUA de 1986, em Detroit. Era um domingo, 22 de junho. Na véspera, não muito longe dali – o fuso horário era parecido e o continente era o mesmo –, a seleção brasileira havia sido eliminada pela França nas quartas-de-final da Copa do México no estádio Jalisco, em Guadalajara. A geração de Zico, Sócrates & companhia bela perdia sua última chance de ganhar um título mundial.
Muitos dos mecânicos da Lotus, equipe do piloto brasileiro, eram franceses. O time usava motores Renault. Eles não perdoaram Senna. A zoeira é livre. Ayrton não ligava muito para futebol, se dizia corintiano quando lhe perguntavam para que time torcia, mas não era sua praia. Anos depois, em Paris, poucos dias antes do acidente de Ímola, mostrou toda sua estranheza diante de uma bola ao dar o pontapé inicial de um amistoso entre Brasil e um combinado PSG/Bordeaux no Parque dos Príncipes. “Não leva jeito pra coisa!”, brincou Galvão Bueno quando o piloto, vestindo calças pretas e camisa social branca sob um pulôver listrado em tons de cinza, deu um bico desajeitado em Vossa Senhoria, a pelota, conspurcando seu reluzente sapato de cromo alemão impecavelmente engraxado. Foi aplaudido pelo público, embora temesse vaias porque, afinal, vivera alguns anos de uma rivalidade sangrenta com um ídolo local, Alain Prost.
Mas, em 1986, os mecas (vão se acostumando, mecânicos na língua dos boxes é simplesmente “meca”) da Renault e da Lotus encheram tanto seu saco, que ele resolveu dar o troco. No sábado, Senna tinha acabado de fazer a pole e, assim que entrou nos boxes, um desses mecânicos lhe mostrou um cartaz onde estava escrito “França 1, Brasil 0”. Pela descrição, já estava acontecendo a disputa de pênaltis. Ayrton correu para o hotel para assistir ao final — no tempo normal, o jogo terminara empatado em 1 a 1, gols de Careca e Platini. Nem compareceu à entrevista obrigatória do pole. A FIA não era tão rigorosa na época. Hoje, se um piloto faz isso, leva uma multa pesada e é obrigado a assistir a três DVDs com os melhores momentos de Satoru Nakajima. Ajoelhado no milho.
Senna contou, anos depois, que só foi aparecer na garagem da Lotus de novo no domingo de manhã, porque tinha certeza que os mecânicos iriam alugá-lo. O Brasil de Telê fora derrotado nos pênaltis por 4 a 3, a última cobrança convertida pelo espanhol naturalizado francês Luiz Fernández – que formava um senhor meio-campo com Platini, Tigana e Giresse.
Ayrton ganhou a corrida e ainda teria no pódio, ao seu lado, dois franceses: Jacques Laffite, da Ligier, e Alain Prost, da McLaren. Não poderia ser melhor. Quando voltava para os boxes para a festa da vitória, viu um torcedor brasileiro pendurado no alambrado com uma bandeirinha chinfrim de plástico. Parou o carro, fez sinal para um comissário, ninguém entendia nada, até que o cabra conseguiu passar a bandeira para o sujeito, que por sua vez a entregou a Senna.
Virou uma marca registrada do tricampeão mundial, que sempre que podia, depois de vencer uma corrida, descolava uma bandeira do Brasil com alguém e desfilava com ela pelos autódromos. Outros pilotos o imitaram algumas vezes, como Nigel Mansell em 1992 em Interlagos. Detalhe: deram a ele uma bandeirinha dupla, do Brasil e da Grã-Bretanha, e com elas o inglês foi para o pódio em São Paulo. No ano anterior, Senna tinha vencido pela primeira vez no Brasil, depois de sete tentativas frustradas – seis delas em Jacarepaguá. Foi sua primeira vitória correndo de carro no Brasil, já que nunca disputou nenhum campeonato por aqui, exceto de kart. Quando migrou para os automóveis, foi direto correr na Inglaterra.
Todo mundo se lembra daquele GP do Brasil de 1991 em Interlagos, especialmente os integrantes mais fanáticos da Santa Igreja da Sexta Marcha, que consideram a maior façanha da vida do piloto vencer a prova com apenas uma marcha funcionando nas últimas sete voltas da corrida. Foi tenso, claro. Mas está longe de ser considerado um milagre pelo Vaticano, já que Riccardo Patrese, o segundo colocado, estava mais de 40 segundos atrás dele quando o defeito se anunciou. Ayrton segurou a onda e se aquele GP tivesse mais uma volta, provavelmente perderia. Tenso, sem dúvida. E catártico. Quem estava em Interlagos guarda na memória a vibração do público, os berros de Senna pelo rádio, a dificuldade para levantar o troféu no pódio.
Pois bem, tudo isso para falar da bandeira que Hamilton empunhou domingo em Interlagos, 30 anos depois da histórica vitória de Senna no mesmo circuito. A bandeira do Brasil – e seus derivados como as camisas amarelas da CBF e as bandanas verde e amarelas de motoqueiros barrigudos –, como sabe bem quem vive neste bananal, se transformou num símbolo do que de pior o país produziu em sua história.
É uma apropriação indébita que, cedo ou tarde, será revogada porque bandeira nenhuma, coitada, merece ser associada ao combo negacionismo/misoginia/ homofobia/tara por coturnos e fuzis/fetiche por tortura/rachadinhas/culto à ignorância/combate à cultura/raiva da ciência/pão com leite condensado/cercadinho do Planalto/salames em Roma/pizza na rua em Nova York.
Hamilton gosta do Brasil. Tem o Cristo Redentor pintado no capacete, cujo design é feito há anos por um brasileiro, é fã declarado de Senna, amigo de Anitta e parça de Neymar. Lewis é bem mais do que isso, também. Além de heptacampeão mundial de F-1, recordista de poles e vitórias, primeiro piloto negro da história da categoria e fodão do Bairro Peixoto, milita por causas essenciais e é engajadíssimo na luta contra o racismo, a desigualdade, a violência policial, a destruição do meio-ambiente, a discriminação por orientação sexual e mais um monte de coisas que, hoje, causam arrepios naqueles que se apropriaram da bandeira brasileira para atacar tudo que alguém como o piloto da Mercedes defende.
Imagino o nó na cabeça do tio do zap domingo. Aliás, tios do zap tentaram arrastar Hamilton para seu universo paralelo e divulgaram a notícia – falsa, claro – de que ele deu uma declaração ao New York Times dizendo que “nunca viu os brasileiros tão felizes quanto agora, no governo Bolsonaro”. Isso circulou loucamente nos grupos bolsonaristas nas redes sociais, talvez uma forma de tentar convencer seus pares de que Lewis se converteu à esgotosfera — afinal quem ostenta a bandeira brasileira é gente como a gente, do bem.
Três fiscais de pista foram os responsáveis por entregar a bandeira a Hamilton depois da corrida lá pelo Bico de Pato. Um deles torcia por Verstappen. Outro disse que aquela bandeira “nunca esteve na Paulista” e que “jamais gostaria que ela fosse associada àquele desgraçado”. Palavras literais, o rapaz me mandou um e-mail contando a saga da bandeira. Hamilton tem noção, claro, do que se passa no Brasil desde 2018. De vez em quando compartilha em suas redes a indignação com a devastação da Amazônia e com a destruição do Pantanal. Não tem o hábito de mencionar nomes de políticos, e certamente não tinha a menor ideia da periculosidade do 01 (ou seria o 02, ou o 03?), que lhe enfiou uma camiseta da seleção em Abu Dhabi outro dia para roubar-lhe uma selfie. Mas querer que ele saiba que a bandeira do Brasil foi surrupiada por essa gente é pedir um pouco demais.
Assim, o gesto de desfilar com ela, e nela se enrolar no pódio, teve a pureza da resposta das crianças, a criança que ele já não é mais, mas foi quando andava de kart, usava um capacete amarelo e via Senna pela TV. E fez muita gente que hoje tem ânsia de vômito quando vê um cidadão de bem pintado de verde e amarelo se lembrar que não, essa bandeira aí não é deles, não. É nossa. Foi preciso um inglês para nos mostrar. E preto. Que recebeu a quadriculada de uma menina também preta, descoberta num projeto público de iniciação esportiva que se transformou na maior estrela da ginástica mundial. E que foi ao pódio ao lado de um moço de Minas Gerais que se formou engenheiro numa universidade pública, a Unicamp, e hoje é estrategista da Mercedes. E tudo isso coroado por uma reação tão… brasileira de um austríaco, Toto Wolff, chefe da equipe alemã, que virou para a câmera ao fim da corrida e, se não disse, pensou: “Lewis Hamilton, porra!”. De quebra, o cara chegou a 101 vitórias, igualando o número de vitórias brasileiras na categoria para que todos lembrassem que nem só de Senna se fez a história deste país nas pistas – teve Emerson, Pace, Piquet, Barrichello, Massa, e todos os outros que podem não ter vencido um GP sequer, mas foram lá e tentaram.
Ayrton levantou sua bandeirinha em 1986 para nos redimir de uma derrota e vingar o fracasso de jogadores tão queridos numa Copa do Mundo. Parecia querer dizer, em perfeito português, que “nóis capota, mais num breca”. Lewis talvez nem saiba, mas fez o mesmo domingo.
Interlagos foi muito Brasil neste fim de semana. Um Brasil que ainda existe, apesar de.
O domínio que você demonstra na escrita dessa bela crônica me lembra os grandes mestres desse gênero, Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, etc, etc. Eu estou até pensando em comprar um livro seu. Parabéns! E fora Bolsonaro!
Minha bandeira jamais terá “desordem e retrocesso”, falta pouco, outubro está logo aí e 23 também.
Excelente texto! É preciso continuá-lo! A bandeira, as cores, a camisa da Seleção, o hino são todos nossos e não dessa gente nojenta que saiu das profundezas do esgoto da história (e que, em breve, serão devidamente enxotados de volta para lá!)
Manda ver esse projeto para frente sim!
A Bandeira é Nossa, e não deles.
jamais será!
Digamos a verdade, não é um texto isento, muita pachecagem. Só faltou falar seu amor Portuguesa.!
Saudade da época que podia usar uma camisa do Brasil sem ser confundido com um imbecil.
A única certeza que se tem hoje é que, em cada casa ou sacada com uma bandeira nacional, ali tem um boçal! Parabéns pelo texto!
Você está de parabéns, Flávio Gomes, por nos ter brindado com este texto piloto! Nos dias de hoje em que a Mídia veio a significar Jornalismo de má qualidade (segundo o escritor Britânico Graham Greene), aparece você com este exposé emocionante, apaixonante e realista, mas nem por isso sensacionalista, nem tampouco maldosa.
Por quatro anos, estudei e vivi no Brasil, terra que aprendi a amar pelos seus feitos, ,pelas suas grandezas, e pelo joie-de-vivre do seu povão; mas que também aprendi a criticar e a desprezar, pelas suas injustiças sociais e demais feiuras. E você soube, com mestria einsteiniana, unificar conceitos aparentemente sem elo de ligação, tais como o esporte e os pilotos da F1, o Futebol, a deificação do Senna e do Hamilton, o triunfo da cor da pele, a idolatria da política e de polícos do mal, etc.
Tudo isso tendo no centro desse seu enredo genial, a linda bandeira de cores branca, verde, amarela e azul-anil, bandeira respeitada e eternizada por dois Impávidos Colossos da Fórmula 1.
Parabéns pelo grande texto!
Tenho dito!
Texto maravilhoso. De arrepiar. A bandeira que quando vejo hoje pendurada nas varandas de apartamentos vultosos (e sinto asco) voltará a ser nossa. Voltará a ser digna, não devido a qualquer patriotismo vulgar ou tosco mas apenas por sabermos que voltará a ser de todos e não mais somente da parcela mais espúria e abjeta da nossa sociedade.
belo texto Flávio parabéns!!
Descreve o q lamentavelmente ocorre hoje no país, c esses usurpadores da verde amarela!
Pena q vai levar muito pau do gado!
Belo texto, só se perdeu na curva da política !
Desenvolva sua tese, queridão.
Sério que é sobre política, o seu texto/crítica/piloto ou como você acha melhor entitular. Até você chegar no tema político estava ótimo acompanhar linha de raciocínio, mas degringolou misturou tudo. Mas não consigo fazer um resumo desse???
Você deve estar no blog errado, inclusive no país errado, posto que é impossível compreender o que escreveu.
Estava indo bem até deixar o esporte e se enveredar pela política. Nota 2,5
Suma, babaca.
Excelente texto! Lamento muito quando vejo o símbolo da pátria sendo indevidamente apropriado por aqueles que, seguramente, dela não gostam.
Esse desgoverno, de longe o pior (entre tantos muito ruins), vai passar.
Aonde eu assino?
Texto-piloto no padrão Flávio Gomes de qualidade, é a melhor síntese possível para que aprecia redações perfeitas.
Hamilton é mais Brasil que um bando de ignaros & sevandijas com camiseta da CBF.
Meu parabéns ao escriba.
Sensacional o texto! E necessário. Que bom que ele não ficou guardado em uma gaveta!
FG escreve bem demais! Que o projeto se realize!
Texto sensacional, emocionante e verdadeiro. Flávio, você tem mesmo o dom da literatura. Bom demais ler tudo que você escreve.
Daqueles textos que “desengasgam” a gente….
Marco Lage (o da Vespa nova que não te convenceu)
Sensacional o texto, Ayrton Senna e Hamilton dois dos maiores pilotos que vi, pena que em épocas diferentes, quanto ao ladrão, mandriāo, boçal do Planalto será derrotado e humilhado futuramente. DÁ-LHE SENNA!
Vai te catar, como vossa senhoria escreve bem! :D
Se isso é um piloto, quero muito ver o produto acabado.
Abraço!
Que baita texto – leitura emocionante.
Texto ótimo como sempre. Está empolgado, vem coisa boa aí.
Quem teve essa ideia genial de colocar o texto nesses retângulos? É ótimo para ler no telefone.
Coisa linda!!
Esse texto deu lágrima nos olhos. Luciana leu comigo, como sempre, e amou também. Continue com esse projeto, por favor. Será um presente para nós.
Que texto perfeito! Eu sou muito sua fã! Sempre leio seus textos para o meu noivo!
Excelente, teus textos são demais! Que felicidade abrir o blog e encontrar esse monte de posts. Continua sempre, tu consegue escrever aquilo que muitas vezes estamos sentindo e nem nos dávamos conta. Parabéns, grande abraço.
Verdadeiro, real, desabafou, emocionou……meus aplausos Flávio.
Muito bom, já estava com saudades de seus belos textos!
E não, não vamos deixar de visitar esse blog!
Gomes,
Como sempre ótimo texto. Informação detalhada e de fácil leitura.
Se este é o piloto, va em frente.
Abs
Texto padrão Warm Up de qualidade. Gostamos. Queremos mais disso aí ao longo do ano.
Não lembro de ter visto essa imagem, mas o texto traduziu perfeitamente o que sinto quando vejo a bandeira nas mãos daqueles cretinos.
Quanto à camisa da CBF, que se exploda. A seleção já não me importa há muito tempo. Aliás, cabe perfeitamente a esses cretinos: a camisa símbolo de uma instituição totalmente corrupta e corrompida, lar de cartolas que odeiam o Brasil, mas amam dinheiro.
O melhor foi a última frase “… um Brasil que existe, apesar de.”
Eu estava no autódromo e sou testemunha da alegria das pessoas, eu incluso, qdo vimos Hamilton parar para pegar a bandeira e andar com ela pelo autodromo. É o Brasil que existe, apesar de.
A vontade de grita um palavrão aqui é enorme! Puta que pariu!!!! Que texto!!!! Senhor Flávio Gomes, parabéns!
Parabéns, Flávio Gomes!
Como sempre, excelente texto.
Que delícia ver o blog cheio de textos novamente. Estamos sempre aqui, entrando todo dia, desde 2005… Obrigado, Gomes!
Posso adir? /fudelança e cheiração no Bahrain/
Bom, primeiro quero agradecer a sua volta. A dias visitava o site e sempre aparecia a mesma foto dos caras colocando tijolos na pista alemã. Sobre o texto, ótimo como sempre. Longo, mas sem encher linguiça. Dá prazer de ler. Vai contar aqui qual o projeto? Abrassss
Perfeito Flávio.
Gostei do termo “esgotosfera”, é o que temos vivido nos últimos anos recentes, gente mergulhando no esgoto, se lambuzando e infelizmente usando a bandeira nacional para se secar.
Que neste ano possamos mandar esta gente de volta para o bueiro de onde eles nunca deveriam ter saído.
Top!
No mesmo nível das descrições das corridas; pensante e engraçada ao mesmo tempo.
O que dizer…só que olhos ficaram marejadas, como ficaram ao ver a situação acontecer….Ótimo texto!
Um pecado imperdoável um texto desses engavetado.
Mistura de satisfação e asco.
perfeito, Flávio!!!
Excelente!
Flavinho, só uma observação: Brasil X França em 1986 o Brasil saiu na frente com Careca e Platini empatou no final do 1o tempo. O francês mostrou o plaquinha pro Senna com França 1×0 pra sacanear?
Pode ser. As declarações são dele. Mas já mudei. Talvez estivesse começando a disputa de pênaltis.
Faltou o miojo no japão.
Uau, sensacional
Muito bom mesmo
Parabéns