ARTUR

SÃO PAULO – A postagem é de um blog hospedado no “Sapo”, o maior portal de internet de Portugal. O link me foi enviado pelo Twitter por um leitor, Luis Oliveira. Nele, há uma outra remissão a pequeno texto do “Autosport” luso. “Morreu o Artur Ferreira”, começa a nota assinada por José Luis Abreu.

Morreu o Artur Ferreira.

Faltam informações básicas. De quê? Onde? Como? Quantos anos tinha o Artur?

Então me dou conta de que tais perguntas são desnecessárias e me envergonho, até.

Morreu o Artur Ferreira.

O resto não importa muito.

A notícia foi publicada em julho do ano passado. Como se vê, mesmo em dias como hoje as notícias não correm tão rápido assim. Artur era um bom amigo. Em algum momento, perdemos contato — ou por ele ter largado a F-1 e voltado a Moçambique, ou por eu ter deixado as corridas para trabalhar em TV, nunca saberei ao certo o que aconteceu primeiro. Na F-1 havia uma curiosidade nos tempos em que eu viajava. Todos começamos nessa lida quando não existiam celulares nem redes sociais. Raramente trocávamos telefones. Porque sabíamos que a cada 15 dias estaríamos juntos. Falo de todos, brasileiros e estrangeiros. Éramos, verdadeiramente, uma grande família fluente em vários idiomas que de duas em duas semanas se encontrava em algum ponto do planeta para fazer o que famílias fazem: contar as novidades, almoçar, jantar, beber. No meu livro “Ímola 1994” há um capítulo reservado à minha primeira cobertura internacional, na França em 1989. Num trecho, falo do Artur. Artur, não deve ter lido. Gostaria muito que alguém pudesse ler para ele. Está aí embaixo.

É gozado como a gente lembra de coisas aparentemente irrelevantes para o destino da humanidade quando abre as gavetas da memória. Nessa prova, cheguei à sala de imprensa como um completo desconhecido. Tinha feito, no autódromo, apenas dois GPs antes — ambos no Rio, em 1988 e no início daquela temporada. Não sabia como as coisas funcionavam, onde me sentar, como usar o telefone, como enviar uma matéria. Nada. Nada de nada. Pergunta daqui, pergunta dali, compreendi que poderia usar as máquinas de telex muito modernas, inclusive, mas teria de ser rápido. Boa parte dos jornalistas já usava computadores meio primitivos ou máquinas de escrever para enviar seus textos por fax. Mas telex ainda era bastante popular. Eram poucas máquinas, quatro, apenas, e muita gente precisava delas. Assim, sentei-me diante de uma delas e pedi para o cara me explicar como funcionava, porque o texto não era perfurado em fita de papel, como nas máquinas que tínhamos na Agência Folha, mas sim gravado num disquete daqueles flexíveis enormes, de oito polegadas – floppy disks, para os mais familiarizados com equipamentos de informática da época. “Escreve tudo, e quando acabar coloca esse disquete ali, aperta essa tecla aqui para gravar, tira o disquete, me entrega que eu envio”, explicou o rapaz responsável pelo atendimento ao pessoal de imprensa.

Ao meu lado, em outra máquina, estava um jornalista português, Artur Ferreira, que eu achava que era brasileiro. Pensava que era o Milton Coelho da Graça, de “O Globo”, não sei bem por quê – ele tinha cara de Milton Coelho da Graça, sei lá. Artur não falava com sotaque de portuga. Na verdade, cidadão do mundo que vivia entre Portugal, Angola, Moçambique e Macau, além dos países por onde a Fórmula 1 passava, fotógrafo excepcional e repórter de texto também, sabia se expressar em “brasileiro” sem sotaque algum. Sujeito grande, alto, de longos cabelos brancos, uma figura.

Não nos conhecíamos, mas percebi que era “brasileiro” ao ouvi-lo conversando com alguém. Fiquei na minha, escrevi minhas matérias, e lá pelas tantas o Artur pediu o auxílio de alguém porque não conseguia gravar (“salvar”, meninos) seus textos no telex, e o bonitão aqui, querendo dar uma de gentil e prestativo, se ofereceu para ajudar. Afinal, tinha acabado de aprender: escreve, coloca o disco, grava. E fui direto no botão indicado para gravar, e o Artur se apavorou e gritou “não, já fiz isso, não, vai…”, e foi. Vai foder tudo, era o que ele iria dizer, deu algum pau naquela merda e eu, em vez de gravar o texto, apaguei a porra toda. Todo o material que ele estava mandando para algum jornal de Luanda ou Maputo, sei lá, só sei que não era pouca coisa, os textos eram gigantescos, desapareceu. Da tela, do disquete, do mundo.

Artur deveria ter quebrado meu pescoço ali mesmo, me pouparia de muitos dissabores futuros, inclusive, mas não o fez. Suspirou, olhou para a telinha do telex (era mesmo muito moderna, aquela máquina de telex, poucas coisas haviam me impressionado mais na vida até então do que aquele telex com tela que permitia voltar o cursor e corrigir uma palavra, ou frase) e furiosamente começou a escrever tudo de novo. Não me disse uma palavra. Eu fiquei mais ou menos uns cinco anos pedindo desculpas a ele. Grande cara, o Artur.

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6 Comentários
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Hilton V Pezzoni
Hilton V Pezzoni
2 anos atrás

Como de costume, lindo texto e bela homenagem!

Afonso
Afonso
2 anos atrás

Que legal essa história. Dei risadas

Afonso
Afonso
Reply to  Afonso
2 anos atrás

Lindo texto

Carlos Jose Pimenta Franco
Carlos Jose Pimenta Franco
2 anos atrás

Até eu lendo aqui, pensei o que deve ter passado na sua cabeça na hora: CARALEO, FUDEU rsrs

Ricardo Mayor
Ricardo Mayor
2 anos atrás

É uma coisa sobre ficar mais velho. A gente acumula histórias que são boas de serem recordadas.

Maria Madalena
Maria Madalena
2 anos atrás

Você também é um grande cara, Flávio. Outro belo texto.