JÁ ERA HORA

O modelo que veremos em 2022: mais limpo e menos turbulento

SÃO PAULO (texto corrigido com dados mais precisos) – Coloquem apenas dois números na cabeça: 47 e 18. Eles resumem bem o que vai acontecer na F-1 a partir do ano que vem, com o carro novo que foi apresentado hoje em Silverstone. O regulamento de 2022 já deveria ter entrado em vigor neste ano. Mas por causa da pandemia os planos foram adiados. Chegou a hora.

Já tem um tempo que a categoria discute o que fazer para tornar as corridas mais atraentes — ou seja: para que tenham mais ação, mais ultrapassagens, mais disputas, que sejam menos previsíveis. Esse carro novo apresentado hoje vem sendo desenvolvido pelo pessoal técnico da F-1 desde 2017 no túnel de vento da Sauber/Alfa Romeo. O grande drama nos últimos tempos foi o avanço dos estudos aerodinâmicos, que transformou os carros em geringonças esquisitas cheias de asas, asinhas, asonas, apêndices, aletas, túneis ocultos, canaletas e tudo que os computadores conseguiram imaginar para usar o ar como agente de estabilidade e aumento de velocidade.

A FIA e a Liberty resolveram limpar a área. Simplificar as coisas. Tornar os carros menos dependentes desse monte de coisa que só aumenta os custos e piora as disputas. Porque com tantas peças “trabalhando” o ar do momento em que ele atinge o bico até ser “expelido” pela traseira, o resultado foi um negócio que atrapalha muito quem gostaria de se aproximar do carro da frente para um duelo franco e aberto: a turbulência.

As novas asas dianteiras, por exemplo, passam a direcionar o ar para baixo do carro, e não mais para os lados. Chegaram, até, a cogitar a eliminação dessas asas — tivemos carros assim no final dos anos 70 e início dos 80, como a maravilhosa Brabham BT49 de Piquet, lembram? Os “winglets” sobre as rodas dianteiras foram colocados ali para tirar o vento das asas traseiras. Que, portanto, perdem importância nessa configuração aerodinâmica. O objetivo de todas as mudanças é muito claro: “limpar” o ar para quem vem atrás.

Asa dianteira: menos elementos, mais simplicidade

Calcula-se que hoje, do jeito que são, os carros “sujam” 47% do ar de quem vem atrás a uma distância de dez metros, contando do bico de um ao bico do outro — um espaço de um carro entre os dois. Tento explicar em outras palavras, vamos lá. Um carro de F-1, para ser eficiente aerodinamicamente, precisa usar todo o vento que recebe na cara. Os fluxos se aproximam lindamente, claros e cristalinos, passam por aqui, contornam ali, aceleram acolá, e o que temos é um automóvel grudado no chão porque as asas e seus apêndices “domaram” o vento, como Éolo.

Só que o carro que está chegando para tentar uma ultrapassagem, por conta da turbulência gerada pela maçaroca de asas & afins, perde 47% de sua eficiência aerodinâmica, porque o ar não chega “limpo” para ele. Chega, sim, todo bagunçado, fazendo voltas, redemoinhos, tufões e furacões. Resumindo: contornar uma curva de alta perto do carro da frente tira do carro a eficiência aerodinâmica e o piloto tem de pagar um dobrado para se manter na pista. Então, prefere ficar longe para: 1) não perder o controle; 2) não estragar os pneus.

Sim, os pneus também são afetados pela turbulência porque o carro de trás tende a escorregar mais, ficar mais instável, se desequilibrar, e aí quem sofre é a coitada da borracha, uma vez que os pneus são os únicos seres vivos na face da Terra que informam ao asfalto do quê foram capazes os engenheiros com suas fórmulas aerodinâmicas mirabolantes e seus motores potentíssimos.

Rodas de 18 polegadas e calotas: menos borracha, mais metal

Os novos carros reduzirão esse déficit aerodinâmico para 18% na distância de 10 metros, o segundo número informado lá no começo deste texto. Para ilustrar mal e porcamente o que isso significa, podemos dizer que se o cara que vinha atrás tinha 47% de chances de se estatelar no guard-rail se se metesse a besta de contornar uma curva de alta grudado no adversário, esse índice caiu para 18%. Quando essa distância passa para 20 metros, o equivalente a três carros, a perda de eficiência aerodinâmica hoje é de 35%. Cairá para 4%. Nada mau.

Claro que a conta não é tão singela assim. Apenas usei os números para tentar dar uma ideia de como os carros simplificados aerodinamicamente facilitarão a tarefa de buscar uma ultrapassagem, se aproximar do rival, arriscar uma manobra mais ousada. Em tese, com o ar mais limpo e a pressão aerodinâmica mais dependente do assoalho do que das asas — sim, o efeito-solo dos anos 80, Chapman era muito foda –, teremos carros andando mais próximos, pilotos tentando uma freada mais no deus-me-livre, mais ação, menos tédio.

A outra mudança mais visível é dos pneus. Hoje a F-1 usa rodas de 13 polegadas, como meu Trabant, com uma enorme massa de borracha em volta. As rodas aumentam, 18 polegadas agora, daquelas que a gente vê em Gol bolinha tunado por aí, com pneus de perfil baixo que sentem até quando se passa em cima de uma gilete deitada. Menos borracha, mais metal — o diâmetro do conjunto segue igual — e calotas para dar uma reduzida na turbulência interna. Elas são necessárias porque a área “oca” da roda, agora muito maior, tende a enlouquecer o ar que circula por essa cavidade.

Pneus de perfil baixo também tendem a deformar menos suas paredes laterais, algo que preocupa os engenheiros porque isso também afeta a aerodinâmica. Não precisarão mais pensar nisso. E são pneus que superaquecem menos.

Asa traseira cheia de curvas: rampas de Niemeyer

O carro tem um visual meio metido a futurista por causa da asa traseira com elementos cheios de curvas, como se tivessem sido desenhados por Oscar Niemeyer. Por enquanto ainda não está decidido se a asa-móvel continuará existindo. Há uma corrente que defende sua extinção. Saberemos nos próximos dias.

Com orçamentos limitados a US$ 145 milhões por ano, faz todo sentido para as equipes partirem de um modelo básico para fazerem seus carros. Usa-se menos túnel de vento — a hora de trabalho desses monumentos ao deus dos ventos é bem cara, podem acreditar — e fabricam-se menos peças. O custo de construção da baratinha será menor. O valor do martelinho de ouro, em caso de batidas, também será reduzido. Motores não mudam, pelo menos até 2025. No tanque de gasolina, a ideia é aumentar gradativamente o uso de biocombustíveis. Hoje, a taxa é de 5,75% na gasosa utilizada. Ano que vem, 10% com a adoção de mais etanol na mistura. Os carros ficarão mais pesados: passam de 752 kg de peso mínimo para 790 kg.

Isso significa que todo mundo terá carro igual em 2022? Não necessariamente. O regulamento é o mesmo para todos, impõe limites à imaginação dos projetistas, mas não impede ninguém de buscar soluções que os outros não tenham. E se ficarem todos parecidos e com desempenhos próximos, e daí? Melhor para quem assiste.

Um fato, porém, jamais poderá ser desprezado. Sempre existirá uma equipe mais bem estruturada que a outra, um engenheiro mais criativo, um piloto mais talentoso. Ainda que tudo pareça igual, é diferente. Mas é possível que tenhamos mais resultados surpreendentes, zebras mais frequentes, e que hegemonias como as da Red Bull (de 2010 a 2013) ou da Mercedes (desde 2014) não sejam mais tão comuns ou duradouras. Isso, por si, é positivo.

Sendo assim, pode vir, 2022. Estamos todos ansiosos e otimistas!

Subscribe
Notify of
guest

39 Comentários
Newest
Oldest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Renato F1/FE Mercedes
Renato F1/FE Mercedes
2 anos atrás

“(…) uma vez que os pneus são os únicos seres vivos na face da Terra que informam ao asfalto do quê foram capazes os engenheiros com suas fórmulas aerodinâmicas mirabolantes e seus motores potentíssimos.”

Só mesmo o Flavio Gomes para dar vida aos pneus.

Ótimo texto, como sempre!

Roberto Alves de Morais
Roberto Alves de Morais
2 anos atrás

Cada vez mais creio sua figura na mídia esportiva televisiva faz muita falta. E tomara que a realidade siga as intenções manifesta em seu texto. Se assim for: é uma boa notícia !!!

André
André
2 anos atrás

Pode vir, 2022, não só pela F1, mas também pelo pé na bunda que o seboso irá levar nas urnas eletrônicas.

Rodney Domingues
Rodney Domingues
2 anos atrás

Desculpe a simplicidade, mas me parece que a f1 usará os carros da Indy?

JURACY
JURACY
2 anos atrás

Saudações Flavinho!!!

Projeto Joãosinho 30… Olha a Beija-flor aí gente!

Horrível..
abs

Marcus
Marcus
2 anos atrás

O DRS poderia ser abolido.

JON
JON
2 anos atrás

seria interessante alguém com acesso a informações técnicas comparar os f1-2022 com os atuais carros da indy.

José Roberto Pedreira
José Roberto Pedreira
2 anos atrás

A Brabham BT49 era realmente bela, só a Lotus 88 consegue superar.

Jão
Jão
2 anos atrás

Apesar de ter estranhado o design do carro inicialmente, se é para valorizar mais o talento dos pilotos e melhorar as disputas, vale a pena.

Mario Alves
Mario Alves
2 anos atrás

É o que nós, espectadores, esperamos que ocorra: fim de hegemonias, maior competitividade e mais ultrapassagens.

Valmir Passos
Valmir Passos
2 anos atrás

As imagens já tinham vazado. Mas enfim, é lindo. Os carros novos vão depender muito do assoalho, lembrando o efeito solo do final dos anos 70, meados dos anos 80, que foi banido por questões de segurança. Espero que as dispustas voltem, sem asa móvel.

Pedro
Pedro
2 anos atrás

flavio, eu leio seus textos há muitos anos, quase vinte, e esse é um dos mais legais! eu, leigo em aerodinâmica e engenharia, entendi perfeitamente o conceito dos novos carros.

confesso que gosto dos carros atuais, apesar de muito compridos. depois do horror que foram os carros de 2009 a 2016, esses são mais agradáveis aos olhos.

espero que haja mais competitividade e, com menos gastos, mais equipes. vinte carros na pista é merreca. olha a indy colocando quase 30 no grid…

Rodrigo da Silva
Rodrigo da Silva
2 anos atrás

Ficou parecido com um Champ Car do começo do século

Jaime
Jaime
2 anos atrás

Flavio, após ler esse post, ficou uma duvida, nos F1 atuais, esse monte de aletas nos carros, são mais para ajudar no carro ou mais prejudicar o cara que vem atrás ? Abs

Carlos
Carlos
2 anos atrás

Escrevo errado, hoje a eficiência baixa para 55% para quem persegue, o novo design vai baixar para os 86%, reduzindo o prejuízo portanto. Perdia 45% e vai perder 14%.

Carlos
Carlos
2 anos atrás

Acredito que você se enganou nos números. Pelo que eu li, hoje quem persegue perde 55% da eficiência aerodinâmica, e o novo projeto aumentará esse número para 86%.

SergioFernando
SergioFernando
2 anos atrás

Hipótese: Moro candidato
Questã: o bandido participaria dos debates ???

Ted
Ted
2 anos atrás

Ótimo texto, como sempre. Feliz aniversário!!!

Bruno
Bruno
2 anos atrás

Boa noite Flávio,

Parabéns pelo trabalho.
Só de tirar a porcaria do DRS, já fizeram um ótimo trabalho.

Grande abraço.

Gabriel Barbosa
Gabriel Barbosa
2 anos atrás

Acho interessante que entre 2008 e 2009 tivemos uma mudança semelhante no regulamento. Na época, os carros também eram repletos de apêndices, gerando uma dificuldade ainda maior para ultrapassagens, em uma época em que ainda não existia o DRS. Lembro que tal dificuldade era uma grande crítica que existia contra a categoria que, aliada aos pit stops com reabastecimentos e undercuts, tornavam as corridas muito estratégicas e pouco emocionantes.
Para 2009, os carros surgiram com aerodinâmica muito mais simples, justamente com a premissa de se ter maior propensão às ultrapassagens. Passaram-se 8 anos até que em 2017 os carros voltassem a adotar maior refinamento aerodinâmico.
De qualquer forma, mal posso esperar para ver estas mudanças na temporada 2022.

Tales Bonato
Tales Bonato
2 anos atrás

Legal. Há muito tempo questiono porque F1 não se livra de tanta dependência aerodinâmica. Haviam criado aquele “grupo de estudos para facilitar ultrapassagens” só para inglês ver. No caso, para engenheiro aerodinamicista inglês ver. RB e AN.
DRS foi uma tapada de vento com a peneira.

Raul
Raul
2 anos atrás

Ei Flávio, acho q os números se inverteram. Eu li no Grande Prêmio que hoje os carros mantém 55% do downforce e vão passar a manter 86% com as novas medidas. Então na analogia, antes havia 55% de chance do carro não sair da pista e ano que vem esse número aumenta para 86%.

jeferson de araújo pereira
jeferson de araújo pereira
2 anos atrás

A coisa toda é muito feia! Começando pelo pior de tudo: o defletor em forma de L acima dos pneus dianteiros. É mais do que feio: é cafona, é brega demais.

Essa foto da asa traseira é ótima, pois ela revela justamente o que parece essa asa sem graça: parece o cabo de uma pá!

Encerro o Top 3 da feiúra com as calotas.

Mas…tem sempre um mas. Mas se é para termos mais ultrapassagens, então a gente “engole” esse visual horrível.

Bara
Bara
2 anos atrás

Em Maio de 22 estaremos lendo sobre a nova sacada do Newey….

Albert
Albert
2 anos atrás

Chapman sabia das coisas.

E feliz aniversário, Flávio! Saúde e vida longa!

Luciano
Luciano
2 anos atrás

Tudo muito bonito. Mas essas calotas… Ah, meu Deus!

guest
guest
2 anos atrás

É impressão minha ou aumentaram ainda mais o entre-eixos?

Daniel Granja
Daniel Granja
2 anos atrás

Feliz aniversário, amigo!

Wender Higinotsumi
Wender Higinotsumi
2 anos atrás

Flavio, você não acha que seria interessante algo como o Push To Pass do que a asa móvel? Assim os pilotos teriam uma quantidade limite de utilizações e também permitiria que o piloto da frente pudesse se defender. Hoje com o DRS é ate maldade as disputas, pois o sujeito que vai a frente não tem nenhuma, ou quase nenhuma chance de defesa. Além disso a utilização do Push To Pass implicaria numa melhor gestão de corrida além de mais possibilidades nas estratégias, como ficar na pista com pneus mais velhos e usar o PTP pra prevenir o undercut do rival.

GIOVANI JARDIM
GIOVANI JARDIM
2 anos atrás

Gostei muito da ideia. Só uma curiosidade, quem produziu esse modelo para FIA e a Liberty.

ED
ED
2 anos atrás

CONTINUA GRANDE DEMAIS. Por causa do imenso motor.

Lucas G
Lucas G
2 anos atrás

Flavio, segundo o site da F1, a asa móvel segue:
“DRS remains on the rear wing, meanwhile, with the Motorsports team keen to study its effect in conjunction with the rule changes”.

Jorge Luis
Jorge Luis
2 anos atrás

Excelente texto !
Perfeito.
Parabens !!!!

Felipe Luz
Felipe Luz
2 anos atrás

Liberaram o uso dessas guelras para refrigeração. Acho lindas. Vamos com ansiedade até o próximo ano para ver as novidades na pista.

Rafael
Rafael
2 anos atrás

Muito bom o texto. Explicou uma coisa técnica de um jeito super leve e simples.

Irinaldo Barros
Irinaldo Barros
2 anos atrás

Que venha 2022!!
Parabéns Flávio Gomes!!! Paz, sucesso, saúde!
Meu aniversário é dia 23/11!!
Abcs

lagerbeer
lagerbeer
2 anos atrás

ué.. as “bolhas” serão padronizadas ? não precisa mais do Adrian Newey ?