Seixas e o Gordini

SÃO PAULO (vai aprendendo…) – Deliciosa a história contada pelo meu afilhado Fábio Seixas em seu blog, a epopéia pela descoberta de uma tampa do distribuidor de seu Gordini (é esse aí da foto, Interlagos/2003, desfile na preliminar do GP do Brasil de F-1; andou, gostou e comprou, no que fez muito bem).

O carro, antes que me esqueça, é uma graça.

O caso me fez lembrar de história parecida, logo depois de eu comprar minha moto DKW, que foi entregue numa caixa de madeira na casa de meu amigo Luiz Salomão, porque comprei escondido de minha mulher. Como ela não tinha documentos em dia, um outro amigo, que trabalhava num jornal da cidade de onde ela veio, no norte do Paraná, mandou a bichinha de caminhão acompanhada de uma nota fiscal de “peças de rotativa”, para o caso de uma fiscalização indesejada… Pequenas transgressões, mas fiquem tranquilos: a moto já foi devidamente regularizada. Sem esquemas, à custa de muitas buscas por informações na Alemanha, levantamentos em departamentos de trânsito e tudo mais. O esforço vale a pena.

Mas eu falava da moto, e quando ela chegou, fizemos funcionar, e tal. Mas a coitada estava com um carburador fajuto, acho que de uma Suzuki 80 cc ou coisa do gênero. Não sossegaria enquanto não encontrasse um original, e depois de muito pesquisar descobri que ela usava, em 1936, um Dell’Orto assim & assado.

Procurei, procurei, até encontrar loja semelhante à do Fábio, lá mesmo no centro da cidade, numa travessa da avenida São João. Brasimport, o nome da loja. Fui com uma amiga, que não acreditava naquela estranha obsessão por um carburador. Eu falava dele como se fosse o Santo Graal.

A loja tinha armários de madeira de cima a baixo, como aqueles de antigas farmácias, piso de linóleo, duas ou três luminárias lá no alto, um mezanino de onde saía a luz azulada de uma TV em branco e preto. Como na loja do Seixas, computadores e máquinas para passar cartões não faziam parte do cenário, nem da realidade daquele ambiente estranhamente silencioso, apesar do barulho lá fora, Minhocão à vista, ônibus passando, motoqueiros alucinados entregando suas entregas, tudo rápido, ruidoso, urgente. Menos na loja.

Me atende um senhor que imagino ter sido o único vendedor daquele estabelecimento em todos os tempos. Meio envergonhado, porque às vezes fico com vergonha das minhas maluquices, inicio o diálogo timidamente. “Preciso de um carburador para minha moto”, digo. Eu sabia que ele perguntaria qual era a moto, é claro, e já me preparava para ouvir um “isso não existe mais”, ou “nunca ouvi falar”.

Ele perguntou, como eu previa, e eu respondi. “Uma DKW 1936.” O vendedor ajeitou os óculos, fez cara de quem vendia dez carburadores para motos DKW 1936 por dia, e sugeriu que eu fosse um pouco mais específico. “Cilindrada?”, perguntou, algo impaciente, e eu: “Duzentas e cinquenta”.

Um momentinho, falou, como se fosse aquele o pedido mais normal do mundo. Dirigiu-se a uma gaveta onde estavam guardados, há dois mil anos, catálogos de todas as fábricas de carburadores do universo conhecido. Ainda de costas, e antes de abrir a gaveta, perguntou: “Sport?”.

Sim, era uma 250 cc Sport. Como é que aquele cara sabia que em 1936 havia um modelo de moto DKW Sport?

Ele sabia. Pegou o primeiro catálogo, colocou sobre o balcão, folheou, fez ar de contrariedade, olhou a contracapa e reclamou consigo mesmo. “Este catálogo aqui é muito novo, não vou achar nunca”, censurou-se. Tinha sido impresso em 1954. Voltou com outro mais antigo, ou menos novo, para seus padrões, esboçou algo que poderia ser chamado de sorriso, foi direto na página dos Dell’Orto, apontou o dedo e, feliz por ter encontrado o que procurava, decretou, sem demonstrar surpresa ou glória pela descoberta: “É esse aqui”.

Que bom. Pelo menos achamos o carburador para a DKW 1936 250cc Sport, o que não era garantia de nada, porque a chance de haver um daqueles naquela loja, por mais otimista que eu fosse, era mínima. “Tem?”, perguntei quase implorando, quase me desculpando por remover tamanho cadáver de sua memória.

“Claro. O senhor quer novo ou usado?”, ele respondeu, um tanto ofendido pela impertinência de minha dúvida.

Comprei o novo. Paguei uma grana, mas comprei o novo. Um Dell’Orto original para a DKW 1936 250 cc Sport.

São Paulo tem dessas coisas. Não sei até quando, mas ainda tem, e é o que me faz dormir tranquilo todas as noites.

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pedro adalberto
pedro adalberto
6 anos atrás

Tenho um Gordini que estou restaurando, necessito do assoalho completo. alguém poderia me ajudar onde encontrar.

Giovani
Giovani
9 anos atrás

Alo amigos .Só por curiosiodade informo que tenho estes dois veículos ainda comigo. Sou de Canoas RS e gostaria de saber da loja onde foi comprado o carburador DellOrto, pois minha moto DKW está com um carburador de motor de popa. Agradeço a informação por email se possivel.
[email protected]
Grato

Flavio Gomes
Admin
Reply to  Giovani
9 anos atrás

Giovani, a loja fechou, infelizmente.

Roberto Fróes
Roberto Fróes
16 anos atrás

Quando estava restaurando meu BMW 2002 Ti 1970, eu morava num prédio que tinha uma floresta na garagem, uma floresta de pilares. Impossível manobrar sem ambos os espelhos laterais, melhor ainda com a ajuda de minha mulher, pois cada centímetro era essencial na manobra.
Pois bem, esse modelo de BMW saiu com espelho apenas do lado do motorista. Penei durante mais de um ano procurando a peça pela internet, pesquisando nos países de direção inglesa, e nada… só conseguia o espelho direito dos modelos mais recentes, 73 para a frente.
Desisti de procurar, usava o do 73 mesmo.
Um dia, vou a Juiz de Fora visitar a exposição de antigos. Como sempre se procura alguma pecinha, saí procurando quem tivesse algo para BMW, comprei várias miudezas, e me disseram que um árabe, não me lembro mais o nome, vendia alguma coisa da marca. Fui falar com ele, que me disse que não, havia desistido da marca, não tinha mais nada, aliás, só tinha um espelho, e assim mesmo, não serviria para uso aqui, pois era do lado direito… adivinhem?…

neanderthal
neanderthal
16 anos atrás

gomes, essa história é emocionante de tão legal e está belíssimamente escrita. meus cumprimentos.

André Grigorevski
André Grigorevski
16 anos atrás

Fantásticas as histórias (tanto a da moto quando a do Gordini)!

Felizmente ainda há lugares assim, mas que (como já comentaram) infelzmente estão sendo usados por especuladores para multiplicar sabe-se lá por quanto o preço pedido por estas peças.

Vale comentar que de vez em quando eu também me sinto um tanto envergonhado a procura de frisos, acabamentos ou peças que só servem para modelos que beiram os 30 anos. O que seria então se fosse para uma moto de 71 anos!

Joel_RS
Joel_RS
16 anos atrás

E o endereço?
curti muito essa história.

Rene Witzke
Rene Witzke
16 anos atrás

Grande Flávio,

Sâo Paulo tem mesmo destas coisas…

Recentemente também me aconteceu uma bôa.

Como V. sabe, estou reformando o meu DKW 57. A última reforma eu fiz em 77 (há 30 anos…)

Naquela ocasião, como agora, precisei trocar o assoalho do carro. E em 77 comprei o dito cujo lá na centenária Estribex. Voltei lá estes dias para comprar outro assoalho, e não é que fui atendido pela mesma pessôa ?

Só que agora, nós dois com cabelos brancos…

Grande abraço,

Rene.

Irapuã
Irapuã
16 anos atrás

Realmente São Paulo é um parque de diversões para nós que rsepiramos antigomobilismo. E por incrível que pareça, ainda existem esses templos para nos socorrer. Pena que muitos desses acervos está indo parar nas mãos de especuladores e aproveitadores que
inflacionam e desvirtuam a atividade do fornecedor de peças…

Super Cadu
Super Cadu
16 anos atrás

O Gordini foi o carro mais espaçoso de todos os tempos. Vejam que cabe até o nariz do Seixas que a buzina seja acidentalmente acionada!

Patrick - não Depall
Patrick - não Depall
16 anos atrás

Pô Gomes,
Faltou o endereço da loja, né?

Jason
Jason
16 anos atrás

Em São Paulo ainda tem disso, é?

Essa história me lembrou a loja do Marcelino em Montevidéu.

Marcio Pimenta
Marcio Pimenta
16 anos atrás

Que bela historia Flavio! Já havia visto a do Fábio e comentei o mesmo com ele. Parece que esse vírus de carros e motos antigos (ou menos novos hehehe) parece contagiar.

Abraços!

Pandini
Pandini
16 anos atrás

Esse é o tipo de história que só nós, malucos que queremos deixar nossas relíquias 100% originais, temos chance de viver. Fantástico!

Tohmé
Tohmé
16 anos atrás

Tive uma história parecida:
Precisava de uma ferramenta para desmontar a embreagem da minha Ducati Áurea ano 1961.

Fui ao Centro da cidade, achei a oficina do velho Latorre (importador oficial das Ducati na época) e comprei por uma grana o tal sacador de embreagem dito original. Quando cheguei na minha oficina, meu mcânico deu uma boa gargalhada e perguntou se eu tinha pago mais de 30 mangos por aquela porcaria nacional, feita em fundo de quintal.

Mais que envergonhado disse: Claro que não, porrra, se acha que sou otário? E fiquei no prejú, com uma peça que não funcionou.

Peixe
Peixe
16 anos atrás

A.., pare com essa coisa de bairrismo!!!
hehehe
quer dizer então que essa moto aí é tua?
Meus parabéns, é linda!

Christian S
16 anos atrás

Flávio, por favor, grava o som da motoca e coloca no podcast! Por favor nunca ouvi o som de uma destas….

Marcog
16 anos atrás

Fantástica a história. Fora que esse nome (Dell´Orto) remete aos tempos de fusquinha…

Os kits de Dell´Orto duplos (semelhantes aos Weber40) eram muito legais, com aquele acionamento por cima, semelhante aos dos Porsche…

Nome gostoso de falar… lembrei da minha esposa, que desde pequena adora falar MICRÓBIO… diz que é gostoso de falar a palavra.

Eu gosto de Dell´Orto, Iskenderian, Berta, Crane… : )

VELOZ-HP
VELOZ-HP
16 anos atrás

Meu kompadre kamarada, o Centrão de São Paulo e das Motos é lindo também por isso. Também por isso e muito mais é que vou todos os sábados (é amanhã, viva !!!!!) passar o dia inteiro por lá visitando os amigos psicopatas e suas lojas maravilhosas.
Brasimport, Recar, Belikar, Jacaré, General, Caverna, Moto Hobby, Moto Space, Gaeta, Latorre e mais um monte delas fazem a alma e a glória daquele pedaço motociclístico de São Paulo. Até o prefeito está ajudando limpando e restaurando toda a região, que a cada semana fica mais linda.
Quanto a esse carburador italiano Dell`Orto, creio que o da Agrale Elefantré 30.0 também serviria nela, caso você não encontrasse o original, o que é dificil como você bem comprovou. Lá tem tudo e se não tiver na hora, mandam trazer em poucos dias.
Por isso e também por muito mais, durmo tranquilo e feliz na minha querida cidade de São Paulo, a capital da América do Sul, queiram aceitar a definição ou não, pouco importa, contra fatos não há argumentos.
Viva São Paulo, a verdadeira Cidade Maravilhosa, queiram aceitar a definição ou não. De novo.

Engate
Engate
16 anos atrás

Maravilhoso o Gordini.

zamborlini
zamborlini
16 anos atrás

gomes
são paulo é isso aí! muito bacana a história do carburador. só quem conhece a cidade e a admira por estas e outras entende o que falou.

Guilherme
Guilherme
16 anos atrás

Aceitaria qualquer um como doação: http://noticias.uol.com.br/uolnews/economia/2007/08/17/ult2498u279.jhtm

Por que não leiloaram para financiar projetos sociais?

Midas
Midas
16 anos atrás

História interessante.

É por essas coisas que lembro da música: “É sempre lindo andar na cidade de São Paulo…”