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Ficou melhor que a Ferrari.

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HARD RACE CAFÉ (1)

Verstappen: confiança em quem fica

SÃO PAULO (força, Sul!) – Quinta-feira, véspera da abertura das atividades de pista em Miami, e o noticiário foi, como se esperava, robusto. Afinal, foi o primeiro dia útil da F-1 após a bombástica saída de Adrian Newey, anunciada ontem pela Red Bull. Vamos às caixinhas?

MENOS – Verstappen foi aquele que a imprensa mais quis ouvir sobre o episódio. E minimizou os sinais de crise: “Visto de fora, parece muito dramático. Mas quando você sabe como as coisas funcionam na equipe, é menos dramático do que parece. Nunca haverá outro Adrian, mas nossa equipe técnica é muito forte. Basta ver os últimos dois anos. Confio neles. Não posso negar que preferiria que ele ficasse, pelo que é como pessoa, pelo seu conhecimento, e pelo que levará a outras equipes. Mas a saída dele não impacta meu futuro. No momento, não. O pessoal da imprensa inventa muita coisa porque não entende direito quais as funções dele na equipe. Seu papel nos últimos anos mudou um pouco. No fim das contas, o que importa é ter um carro rápido, e nós temos”.

Hamilton sorri: vai trabalhar com Newey

MAIS – Já Hamilton, piloto da Ferrari em 2025, foi questionado sobre o desejo de trabalhar com o projetista. “Você gostaria?”, perguntou o repórter. “Sim, é um desses com quem todo mundo gostaria de trabalhar”, respondeu. “Gostaria quanto?”, insistiu o jornalista. “Muito”, falou Lewis, abrindo um sorriso. Adrian deverá assumir o posto de chefe de projetos da Ferrari no começo do ano que vem. As outras possibilidades ventiladas nos últimos dias têm sido descartadas uma a uma.

MAIS OU MENOS – Ainda que Max tenha tentado colocar panos quentes na situação, seu pai Jos deu entrevista à imprensa holandesa e falou que a Red Bull corre o risco de “colapsar”. Por ele, o filho dava um pé na equipe para correr na Mercedes.

O Valkyrie da Aston Martin: Alonso tem um

PARTE DE MIM – Quem também falou de Newey foi Fernando Alonso. A Aston Martin também teria feito uma proposta ao engenheiro, que não teria se interessado muito. “Ele é uma lenda do esporte. E fico feliz de fazer parte dessa trajetória dele, porque corri minha vida toda contra seus carros”, disse o espanhol. E acrescentou: “Eu o admiro muito e, de qualquer forma, tenho um carro dele na garagem”. Se referia ao Aston Martin Valkyrie, supercarro apresentado em 2017 pela montadora inglesa quando ela patrocinava a Red Bull. Newey foi um de seus projetistas.

MUITA CALMA – Outro muito assediado foi Carlos Sainz, depois que a imprensa espanhola publicou notícias dando conta de que ele teria dito não à Audi. O piloto negou. Falou que vai tomar a decisão certa na hora certa, elogiou os alemães e a contratação de Hülkenberg, e admitiu que a ligação de seu pai com a montadora das quatro argolas ajuda nas conversas e tem um peso. Mas, na prática, Sainz espera para saber o que farão Mercedes e Red Bull. A primeira tenta tirar Verstappen da segunda. Se isso acontecer, Sainz corre para a Red Bull. Se não acontecer, pode correr da mesma forma no caso de uma saída de Sergio Pérez. Já a Mercedes, se não conseguir arrancar Max de onde está, tem duas opções: o próprio Sainz e o novato Andrea Antonelli.

DISTRAÇÃO – Enquanto os negócios acontecem aqui e ali, a turma se divertiu hoje brincando de futebol americano. A Ferrari também promoveu uma apresentação oficial de seu visual azul para Miami — carros e indumentária agora à vista de todos. Vasseur e Steiner, ex-chefe da Haas, pagaram mico com a bola oval. O dirigente francês deu uma passadinha por Londres antes de seguir para a Flórida. Segundo a imprensa inglesa, foi se encontrar com Newey.

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SUPERQUARTA (4)

SÃO PAULO (pode funcionar) – Michael Andretti resolveu jogar pesado. O ex-piloto não se conformou com a rejeição da FOM/Liberty a sua entrada na F-1 e recorreu ao Congresso americano. Doze deputados mandaram uma carta ao Liberty Media Group, que é dos EUA, dizendo que é “errado e injusto” tentar bloquear companhias americanas como a Andretti e a GM (via Cadillac) de participarem de uma competição administrada por uma empresa do país. Isso enquanto outras equipes, associadas e montadoras europeias, competem no mesmo mercado [de automóveis] com empresas americanas, também.

Segundo os congressistas, a negativa à Andretti contraria as leis antitruste dos EUA. E eles formalizaram três perguntas à Liberty. São elas:

1) O pacto da Concórdia prevê a participação de até 12 equipes na F-1 e só dez disputam o campeonato. A FIA aprovou a Andretti. Com qual autoridade a FOM/Liberty veta a Andretti se ela atendeu a todas as exigências da entidade?

    2) As leis antitruste de 1890 apoiam a livre competição em favor dos consumidores americanos. Por que a FOM/Liberty rejeita a Andretti, americana, beneficiando empresas europeias e montadoras estrangeiras que atuam nos EUA?

    3) A GM pretende relançar a marca Cadillac no mercado europeu e a F-1 seria uma ótima plataforma para isso e geraria muitos empregos nos EUA. Seria, assim, concorrente na Europa de marcas que estão na categoria. Quanto desse veto tem a ver com o protecionismo contra uma marca americana?

    Respostas na mesa dos senhores deputados até sexta-feira, 3 de maio.

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    SUPERQUARTA (3)

    SÃO PAULO (dobrou a aposta) – A Mercedes quer Verstappen, isso já é claro e cristalino. Mas, na dúvida, está investindo o que pode e o que não pode no italiano Andrea “Kimi” Antonelli, 17 anos. Há alguns dias, jogou o moleque no Red Bull Ring para andar com o carro da equipe de 2022. Nesta semana, os treinos com o W13 estão acontecendo em Ímola.

    E são treinos bem específicos: pneus duros, pneus macios, carro leve, carro pesado, longos stints, voltas de classificação, prática de largada, além de um curso intensivo de operação de um carro de F-1 e situações de GP como pit stops, mudanças de configuração durante uma corrida, comunicação com os boxes e tudo mais.

    Não há divulgação de tempos, por isso fio-me no que a imprensa italiana está dizendo. Na segunda-feira, andou na casa de 1min20s com pneus duros e tanque cheio. Na terça, virou 1min17s18. Esse tempo lhe daria a pole para a Sprint de Ímola em 2022. É apenas uma referência, claro, e deve ser relativizada por falta de dados oficiais.

    Mas que a Mercedes quer que Antonelli corra logo, isso quer. Se Verstappen vier, espera mais um pouquinho e será emprestado à Williams. Se não vier, vai ser ele mesmo no ano que vem.

    Caixinhas sobre mercado, agora.

    AUDI & OCON – É a última da fábrica de boatos da F-1, em plena atividade. A Audi/Sauber espera por Sainz, mas não se sabe até quando. O plano B da montadora alemã, que já contratou Nico Hülkenberg, é o francês Esteban Ocon, que está na Alpine. Ocon tem boa reputação e vem andando na frente de Pierre Gasly. A Alpine tem um carro horrível, mas Ocon, normalmente explosivo, nem tem reclamado muito. Há quem diga que ele ainda tenta convencer o ex-chefe Toto Woll a lhe dar uma chance na Mercedes, também. Mas essa possibilidade é bem mais remota.

    GASLY & WILLIAMS – É mais desejo do que possibilidade concreta, mas Gasly quer sair da Alpine e como não tem muito lugar por aí para correr, a Williams poderia ser seu destino com a altamente provável saída de Logan Sargeant. Mas é só espuma, por enquanto.

    SAINZ & RED BULL – A saída de Newey mexe no tabuleiro e por isso Sainz continua empurrando com a barriga uma resposta à Audi. É que se Verstappen resolver ir embora junto com o projetista — no caso do piloto, para a Mercedes –, abre-se uma vaga de potencial campeão mundial em 2025. Porque a Red Bull seguirá tendo o melhor carro do grid, já que ninguém vai investir os tubos para fazer um modelo que vai caducar em um ano. Por esse carro aí, mesmo sem saber qual será o futuro da Red Bull a partir de 2026, com motor Ford e sem Newey, Sainz abre mão da Audi.

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    SUPERQUARTA (2)

    SÃO PAULO (poxa…) – Foi algo decepcionante a revelação da pintura da Ferrari para o GP de Miami, neste fim de semana. Por dias a equipe alimentou nas redes sociais a expectativa de apresentar um carro azul que lembrasse os dois GPs finais de 1964, nos EUA e no México — quando John Surtees conquistou o título mundial. Na época, brigado com a FIA, Enzo Ferrari inscreveu seus carros nessas provas em nome da NART (North American Racing Team), equipe que pertencia a um amigo italiano radicado nos EUA. Mandou tirar o vermelho de birra. Os carros da NART eram efetivamente brancos e azuis e chamaram muito a atenção. Seria uma mudança de impacto fazer algo parecido agora.

    Mas que nada… O que a equipe fez foi aplicar as cores Azzurro La Plata (mais claro) e Azzurro Dino (mais escuro) nas asas, rodas, laterais, retrovisores e Halo. Aproveitou para inserir os adesivos da HP, sua nova patrocinadora máster. E ficou nisso.

    Azul mesmo, só a indumentária da equipe para essa corrida. Leclerc e Sainz vão usar capacetes, roupas de passeio e macacões nessa cor, como nos anos 60 e 70.

    No fim das contas, muito barulho por nada.

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    SUPERQUARTA (1)

    SÃO PAULO (vem mais…) – É oficial, como a essa altura todos já sabem. A Red Bull divulgou comunicado hoje cedo anunciando a saída de Adrian Newey da equipe. Ele chegou à equipe em 2006 e seu contrato terminaria no final de 2025. Em quase 20 anos na organização, seus carros ganharam 118 corridas e fizeram 101 poles. A Red Bull fez questão de colocar nessa conta a vitória e a pole de Sebastian Vettel em 2008 pela Toro Rosso.

    Newey, que começou na Indy e passou pela Copersucar, é o mais vitorioso projetista da história da F-1. Seus carros ganharam 12 títulos mundiais de construtores por três equipes diferentes (Williams, McLaren e Red Bull) e 13 títulos mundiais com sete pilotos diferentes — Mansell, Prost, Hill, Villeneuve, Hakkinen (dois), Vettel (4) e Verstappen (3). No final deste ano, deve acrescentar mais duas conquistas, já que Max caminha célere para seu quarto campeonato. No quadrinho acima, à direita, vocês podem fazer as contas das vitórias por temporada só de seus carros campeões — são 157, incluídas as quatro de Verstappen em 2024. Contando os carros que não ganharam títulos, os números estão aí embaixo: 217 vitórias, 253 poles. É coisa pacas.

    Oficialmente, ele se afasta de suas funções na F-1 agora, mas permanece na Red Bull cuidando do projeto do RB17, um superesportivo que terá 50 unidades construídas. Estará liberado, de acordo com a equipe, no primeiro trimestre do ano que vem. Acho que sai antes.

    A Red Bull divulgou comunicado afetuoso para informar sobre sua saída, rasgou elogios ao engenheiro e ela mesma postou fotos simpáticas em suas redes sociais. Procura tratar o assunto com alguma normalidade, embora todos saibam que as coisas estão em ebulição pelos lados de Milton Keynes. Verstappen fica, com sua saída? Seu pai Jos já saiu falando um monte. Disse que a notícia de hoje indica que a equipe “corre o risco de colapsar” diante dos últimos acontecimentos. Parece preparar o terreno para uma mudança de endereço do filho. Uma reunião dele com Toto Wolff, chefe da Mercedes, estaria marcada para depois do GP de Miami. Wolff negou que tenha agendado qualquer compromisso dessa natureza para os próximos dias.

    O destino de Newey, embora muita gente esteja telefonando para ele neste momento, parece definido: Ferrari. É verdade que ele recebeu propostas e/ou sondagens de Aston Martin, Mercedes, McLaren e Audi. A primeira lhe ofereceu muito dinheiro e a possibilidade de montar um novo projeto, como fizera na então novata Red Bull ao deixar a McLaren. Mas é algo que leva tempo, e Adrian tem 65 anos e talvez não tenha paciência para liderar operações de longo prazo. A Mercedes acena com a possibilidade de tirar Verstappen de onde está, mas é algo ainda em negociação — e não são conversas simples. A McLaren negou a intenção de contratá-lo dizendo que seu corpo técnico é bom o bastante. E a Audi, que comprou a Sauber e estreia em 2026 como equipe de fábrica, garante que tem planos diferentes e não quer ser time de um homem só.

    Por que a Ferrari? É preciso voltar um pouco no tempo para entender o passo a passo dessa história. Já faz cerca de um ano que os italianos, agora sob a direção do francês Frédéric Vasseur, conversam com o projetista inglês e tentam seduzi-lo a mudar de ares. Usam sempre como exemplo o que aconteceu em Maranello a partir dos primeiros anos da década de 90, quando Jean Todt chegou e começou a montar a equipe que conquistaria tudo a partir de 2000 com Schumacher, Ross Brawn e Rory Byrne.

    Newey, como todo mundo, adora a Ferrari. E, paralelamente, nunca escondeu o desejo de trabalhar com Lewis Hamilton. Em fevereiro, Lewis assinou com a equipe vermelha. O anúncio coincidiu com a deflagração de uma crise interna na Red Bull causada pelas denúncias de assédio sexual contra o chefe Christian Horner. Elas partiram de uma funcionária da equipe que, agora se especula, trabalharia diretamente com Newey. O clima pesado na equipe austríaca passou a incomodar demais o pacato Newey, e a contratação de Hamilton foi o gatilho para ele tomar sua decisão.

    A Ferrari acaba de anunciar um novo patrocínio, da HP, e dinheiro não será problema. Um anúncio oficial talvez demore um pouco, porque Adrian segue sob contrato com a Red Bull. Mas quando as coisas chegam a esse ponto, não tem como segurar muito a notícia. O timing para a Ferrari é perfeito. Hamilton assume um de seus carros em 2025, Newey chega nos primeiros meses e já começa a trabalhar no modelo de 2026, que virá sob novo regulamento técnico.

    Dias muito interessantes vêm por aí.

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    ÍMOLA, 1994

    SÃO PAULO – Não tenho muitas fotos, como se vê. Nessa breve galeria aí embaixo, a primeira nem é minha. O autor é Alberto Pizzoli, da agência Sygma. Foi tirada às 18h40 do domingo, 1º de maio, pelo horário da Itália. Trata-se da hora do anúncio da morte de Ayrton Senna feito pela médica Maria Teresa Fiandri, chefe do setor de Anestesia e Reanimação do Hospital Maggiore, de Bolonha.

    Dez anos depois reencontrei a doutora Fiandri em sua casa bolonhesa, na Via dei Lamponi número 1. É o predinho que aparece na quarta foto, depois do retrato que fiz dela na varanda de seu apartamento. Na imagem seguinte, a Tamburello pelos fundos, fotografada em 2004. Depois, um registro da quarta-feira, dia 27 de abril, quando fui com meu amigo Alex Ruffo pegar sua credencial no portão da Rivazza, por onde entrávamos de carro. O Fiat Punto é citado mais adiante, se vocês tiverem a paciência de ler o texto depois das fotos.

    E, na última fileira, a solitária foto que fiz da Tamburello naquele começo de maio — na segunda-feira, dia 2, pela manhã –, o press-release da Simtek comunicando a morte de Roland Ratzenberger no sábado e a capa de meu livro que conta todas essas coisas.

    Por ter estado em Ímola, 1994, creio que já escrevi e falei tudo que sei sobre o assunto. Não sou protagonista da história. Por circunstâncias profissionais, fui apenas uma testemunha dos fatos que lá estava para fazer seu trabalho — contar o que vi e ouvi a meus leitores e, naquela época, ouvintes, também.

    Por isso, o que deixo neste blog hoje são apenas essas fotos e o capítulo que encerra o livro. Que não traz nenhuma novidade, nenhum fato novo, nada espetacular.

    Como disse, apenas o que vi e ouvi. E vivi.

    ÍMOLA, 1994

              O grande drama de todos que estavam cobrindo o GP de San Marino em 1994 era conseguir alguma informação, qualquer uma, que ajudasse a esclarecer o que tinha acontecido no domingo. Havia duas perguntas básicas, a saber: 1) o que causou o acidente? e 2) o que matou Senna?

              Não era fácil. Williams, FIA e autoridades italianas se fecharam num silêncio sepulcral. Quem sabia alguma coisa, não dizia. Quem não sabia nada, chutava. Se havia uma tragédia evidente, havia igualmente a necessidade de tentar explicá-la. Era para isso que estávamos lá, os jornalistas. Para informar, antes de chorar a morte de alguém com quem convivíamos regularmente — uns mais, outros menos.

              Na segunda-feira pós-acidente, o trabalho se deu em duas frentes, Itália e Brasil. Para além da dor e da tristeza que os brasileiros sentiam, havia também um certo ar de indignação e de busca por culpados. É natural, em casos tão rumorosos. A indignação vinha do fato de a corrida ter sido realizada mesmo depois da morte de Ratzenberger, um dia antes. Mais tarde, essa indignação se estenderia à equipe, que acabou sendo acusada de negligência na solda da coluna de direção do carro de Senna.

              As causas do acidente ainda são controversas. A perícia levada a cabo pela Justiça Italiana concluiu que a coluna quebrou. Há quem não acredite nisso. Damon Hill, por exemplo, tem outra tese. Companheiro de Senna em 1994, o inglês tem convicção de que a pressão dos pneus do carro do brasileiro caiu dramaticamente durante as voltas atrás do safety-car, novidade naquela temporada. Na Tamburello, que tinha ondulações respeitáveis, o carro bateu no chão e Ayrton perdeu o controle. “Ele estava para uma parada, com o carro pesado e muito rápido, pneus frios, pressão baixa. Se numa curva daquela o carro oscila por alguma razão, é muito fácil perder o controle. Dá para ver claramente pela câmera do Schumacher que o carro de Senna bate no chão. Quando isso acontece, ele dá uma balançada. Levanta o bico, e ele corrige. Aí bate de novo e vem uma grande ondulação. O carro balança de novo, aponta para o muro e vai direto. Ele freia, mas aí está na grama. E é isso. Tinha muita pressão sobre Ayrton naquele fim de semana. Ele não queria ser segundo para Schumacher de jeito nenhum.”

              Esse depoimento de Hill está no livro “Senna versus Prost – The story of the most deadly rivalry in Formula One”, do jornalista Malcolm Folley (Arrow Books, 2009), do “Mail on Sunday”. No mesmo livro, Hill conta que depois do acidente de Senna a Williams desligou em seu carro o sistema de direção hidráulica que, pelo regulamento, não poderia ter outra função que não reduzir o esforço do piloto para virar o volante.

              Tal informação vai ao encontro de o que me disse um dia, na Bélgica, o ex-piloto Emanuele Pirro, que participou como consultor das perícias feitas pelos italianos. Foi numa noite em que tomamos umas a mais no hotel em que nos hospedávamos em Malmedy, depois de uma animada partida de pingue-pongue. Pirro me contou que uma das hipóteses para o acidente era de que o sistema teve algum tipo de pane e a direção ficou louca, ou pesada demais, ou sei lá o quê. A Williams nunca teria admitido uma falha porque o sistema era, segundo ele, possivelmente irregular. O regulamento técnico, repito, dizia no item 4.2 do artigo 10 que tais sistemas eram permitidos. Na íntegra: Power steering systems which do anything other than reduce the physical effort required to steer the car are not permited.

              Mas o que havia naquele sistema da Williams que levou a equipe a desligá-lo no carro de Hill para o reinício da corrida? Jamais saberemos, desconfio. Talvez nada. Mas talvez a suspeita da própria equipe recaísse sobre ele.

              Voltando à segunda-feira pós-acidente, eu precisava de alguma coisa além do factual que todos teriam: se o corpo seria submetido a alguma autópsia, quando seria liberado, quando iria para o Brasil, quais as medidas que seriam tomadas pela diplomacia brasileira na Itália, essas coisas.

              Já surgiam, àquela altura, informações desencontradas sobre a suspeita de que Senna tinha morrido na pista. Algo que, na prática, não mudaria em nada a situação — ele estava morto, e suspeitava-se que Ratzenberger tinha morrido no circuito, também, embora tenha sido declarado morto oito minutos depois de chegar ao Hospital Maggiore. Mas era algo relevante na construção daquele quebra-cabeças, para tentar compreender a real causa da morte. Ninguém sabia, na segunda-feira, se ele tinha batido a cabeça no muro, se tinha quebrado o pescoço, se tinha tido um ataque cardíaco, nada.

              Um dos episódios mais controversos daquele dia foi o do diálogo entre Bernie Ecclestone e Leonardo Senna, que teria ouvido do chefão da Fórmula 1 que “he is dead”, quando na verdade Bernie teria dito algo como “injuries in his head”. Isso nunca foi, igualmente, esclarecido. Como nunca se soube direito qual o teor de um suposto dossiê que Leonardo teria levado ao seu irmão com informações sobre sua namorada Adriane Galisteu, de quem a família não gostava. Senna estava, sim, mais tenso que o normal naquele fim de semana — disso me lembro bem. Sem saber de dossiê nenhum, que poderia ter contribuído para esfacelar seu estado de espírito, eu e todos que lá estavam, antes do acidente, atribuíamos seu humor especialmente amargo à situação dele no campeonato: duas corridas, zero ponto, com Schumacher já somando duas vitórias. E, de quebra, um carro dificílimo de guiar.

              Algo que já tinha ficado claro para ele depois das primeiras voltas que deu no Estoril, em janeiro, com sua nova equipe. Era um carro complicado, arisco, nervoso, quase incontrolável. Eu estava nos boxes da equipe em Portugal, me escondendo do frio cortante daquele inverno, quando ele saiu do cockpit com cara de poucos amigos, passou do meu lado e eu mandei um singelo “e aí?”. Ayrton me respondeu com uma frase tão singela quanto: “Puta que pariu, bem na minha vez cagaram no carro”. Frase que repetiria semanas depois a amigos em Aida, no Japão. Depois, foram mais três dias de intenso trabalho com o híbrido FW15C e a conclusão: “Sem suspensão ativa, esse carro não é tudo isso que a gente via, não”.

              A última entrevista, digamos, agendada de Senna naquele fim de semana de Ímola aconteceu na quinta-feira, como em todas as semanas de GP. Ele recebia a imprensa brasileira no motorhome da equipe e falava sobre a corrida, sobre o campeonato, sobre os adversários e tal. Dela, me lembro de um detalhe irrelevante. Senna vestia uma calça impecavelmente branca e comia macarrão com molho de tomate enquanto falava. Eu achava que uma hora aquele molho ia respingar na calça. Não lembro direito o que disse. Mas escrevi, naquele dia, baseado na entrevista de Ayrton, algo que, visto 20 anos depois, tem ar de profecia: “O maior problema da Williams é a falta de estabilidade em pisos irregulares. O carro ‘salta’ muito e não desfruta de seu potencial aerodinâmico. A suspensão, muito dura, agrava os defeitos de nascimento do projeto — originalmente concebido para utilizar um sistema computadorizado, que mantém o carro a uma altura constante do solo (proibido neste ano pelo regulamento da F-1)”.

              No dia seguinte, depois de fazer o melhor tempo no primeiro treino oficial (os tempos de sexta valiam para formar o grid e Ayrton largaria na pole com essa volta, já que não treinou no sábado depois do acidente de Ratzenberger), Senna continuava reclamando do carro. “Não dá para dizer muita coisa porque de manhã o carro estava razoável e de tarde impossível de guiar. Foi assim com todo mundo. Eu não consegui fazer uma volta inteira bem. Não conseguia me sentir tranquilo para guiar rápido.” Reclamou do vento. “O carro fica imprevisível. Vai bem numa volta e mal em outra. Faz bem uma curva e mal a outra. Você é pego de surpresa.”

              No sábado, Senna não falou mais.

              Segunda-feira, 2 de maio. Já sabendo que seria feita uma autópsia, que o corpo embarcaria no dia seguinte para o Brasil, que a polícia instaurara um inquérito para apurar as causas do acidente, fui atrás de algo que pudesse acrescentar à cobertura mais informações que ajudassem a esclarecer o que matou Senna. Queria falar com a médica que o recebeu no Maggiore, Maria Teresa Fiandri. Ir ao hospital achando que toparia com ela na recepção era fantasia. Foi quando me lembrei da minha namorada.

              Maria Cristina Gervasi fora minha namorada em 1981, quando eu estava no terceiro colegial e morava em Campinas. Italiana, mudou-se para a cidade porque seu pai trabalhava com telecomunicações e veio para o Brasil para tocar um projeto qualquer durante um ano. Cris estudava na minha classe no Objetivo e começamos a namorar. Éramos apaixonados, como são os adolescentes. Acabou o ano, ela voltou para a Itália em meio a lágrimas e juras de amor eterno.

              Mantivemos contato durante meses em 1982, quando eu já voltara para São Paulo para fazer faculdade. Meu único objetivo de vida era juntar dinheiro para morar com ela na Itália. Trocávamos cartas. Cris, que era de Roma, tinha entrado na universidade para fazer medicina. Em Bolonha.

              Ainda em 1982, ela arrumou um namorado, engravidou e se casou. A última notícia que tive dela foi essa. Estudava medicina em Bolonha e tinha casado. Perdemos o contato, tocamos a vida.

              Achei que tinha uma chance ali. Se ela tivesse se formado em Bolonha, talvez trabalhasse na cidade e conhecesse a doutora Fiandri. Mas podia ser que tivesse desistido da faculdade, que tivesse mudado de país, qualquer coisa. Fui a uma cabine de telefone perto do IML, no centro da cidade. Se me jogarem em Bolonha hoje, saberei chegar àquela cabine sem grandes problemas. Algumas coisas daqueles dias permanecem muito claras na minha memória.

              Naquela época, era possível consultar listas telefônicas nas cabines, presas com correntinhas para ninguém roubar. Era uma tentativa. A lista continha os números dos assinantes de Bolonha e das cidades da região metropolitana. Comecei a procurar o sobrenome Gervasi nas listas. Não tinha grandes esperanças. Ela tinha se casado, poderia estar usando o sobrenome do marido.

              Passei por todas as cidades, até chegar a Casalecchio di Reno, pequena vila a sudoeste de Bolonha. No G, surgiu uma Gervasi. Gervasi, Maria Cristina, dottoressa.

              Cris tinha virado médica e vivia nas redondezas. A chance de trabalhar no Maggiore aumentara consideravelmente. De conhecer a doutora Fiandri, idem. Eu precisava tentar alguma coisa. Coloquei alguns milhares de liras no telefone e liguei. Entrou uma secretária eletrônica. Reconheci a voz e devo ter sorrido brevemente. Era bom ouvir uma voz familiar àquela hora, mesmo sendo de alguém que eu não via, ou ouvia, desde 1981.

              Deixei um recado em português. Imaginei que ela se lembrava de mim, mas me alonguei para explicar o que estava fazendo em Bolonha 13 anos depois. Não havia internet em 1994. Ninguém rastreava a vida dos outros como hoje. Para se ter notícias de alguém, só escrevendo ou telefonando. Eu não escrevia para minha ex-namorada fazia muito tempo. Muito mesmo.

              Terminei minha mensagem dizendo onde estava hospedado, no Novotel de Bolonha, para onde me mudara depois do acidente. Na semana do GP de San Marino, sempre ficava em Riolo Terme, a uns 15 km de Ímola. Naquela segunda-feira, saí de mala e cuia da pensão para ficar no mesmo lugar onde estavam os diplomatas brasileiros e a turma do Senna. Ali seria um ponto natural de concentração de informações.

              À noite, quando voltei ao hotel, havia um recado para ligar para a dottoressa Gervasi. Liguei. Para quem não falava comigo havia 13 anos, ela foi até rude. “Onde você estava? Te procurei o tempo todo no IML!” Não entendi direito. Como, me procurou? Como você sabia que eu estava lá?

              Cristina tinha uma irmã mais velha, Simona, que se casou no Brasil e ficou morando em Campinas. Naqueles anos todos, acompanhou meu trabalho no jornal e no rádio. Elas se falavam, e por isso minha ex-namorada sabia perfeitamente que eu tinha virado jornalista, que trabalhava na “Folha” e na Jovem Pan, e que cobria F-1. Assim, seria bastante plausível que eu aparecesse no IML na manhã de segunda-feira.

              O que não era muito plausível, e isso eu não sabia, é que Cristina se formou em medicina e estava se especializando em Medicina Legal. Fazia o último ano da especialização e suas aulas eram ministradas no IML. Seus professores eram os médicos que fizeram a autópsia no corpo de Senna. “Eu sabia que você estava lá. Podia ter te mostrado o corpo!”, bronqueou. Parecia que tínhamos nos falado um dia antes. Engraçado, isso. Não havia tempo para muitas demonstrações de sentimentalismo, e ela entendia isso bem melhor do que eu.

              Nos encontramos na terça-feira à noite, depois que o corpo de Senna embarcou, do aeroporto de Bolonha, num avião militar italiano rumo a Paris, de onde voltaria para o Brasil na classe executiva de um voo da Varig.

              Cris me deu uma longa entrevista. Descreveu em detalhes tudo que viu, o que acompanhou, o que disseram os médicos. Contou sobre a aula que teve naquela terça-feira, dia em que a autópsia foi realizada, por um dos legistas que realizaram o trabalho, Pierludovico Ricci, um excêntrico professor que trabalhava sem luvas porque acreditava que vírus nenhum resistia à morte de um corpo — não entendo nada disso, mas a Cristina me disse que ele tinha alguma razão, cientificamente falando; não vem ao caso, porém.

              Ricci, “estranho e psicótico”, saiu da autópsia e foi para a sala de aula com o jaleco sujo de sangue. Mal-afamado na cidade, era um doidivanas que conhecia todas as putas de Bolonha e costumava convocá-las para noites de luxúria no IML tocando uma corneta pela janela. Um dia os estudantes roubaram a corneta, enlouquecendo o médico. Mas Ricci tinha princípios éticos muito fortes e ministrou uma aula vigorosa sobre o que chamou de “morte Série A e morte Série B”, indignado com a indiferença a Ratzenberger, cujo corpo era vizinho do de Ayrton no IML.

              Encontrei a Cristina algumas vezes depois daqueles primeiros dias de maio de 1994. Já não lembro bem quando. Três ou quatro anos depois, talvez. Jantamos uma noite em Bolonha, num belo restaurante numa colina, e em outra oportunidade visitei-a em Casalecchio, onde fiquei comovido com um cantinho de sua casa onde havia na parede uma placa de carro com o escudo da Portuguesa, algumas fotos nossas em porta-retratos e pequenas lembranças de nosso namoro adolescente.

              Nos falamos de vez em quando pelo Facebook. Ela se casou novamente e passou a dividir o tempo entre a Itália e Zurique, de onde era seu novo marido. Em 2014, entrei em contato para lembrarmos aqueles dias de 20 anos atrás. Não foi uma conversa triste e melancólica. Médicos sabem lidar melhor com certas coisas como a morte. Me escreveu:

              Trabalhar como médico legista lhe permite ver a vida a partir de um ponto de vista diferente. Ou, talvez, você pode apenas ver a sua vida… Corremos atrás de nossos sonhos e ilusões, corremos de manhã à noite, e quantas vezes nos perguntamos o que fazemos? No final, tudo é o resultado de nossas escolhas. Há os que escolhem uma vida de rotina, tranquila, e há aqueles que arriscam suas vidas, e fazem isso de modo bem consciente. E um dia o final da corrida vem, vem para cada um de nós.

              Os mortos são todos iguais, não há mortes de série A ou de série B. Dois jovens saíram daqui há 20 anos com seus sonhos e suas esperanças, tirando as esperanças e sonhos de milhões de pessoas. Era o que tínhamos aqui no dia 1° de maio, no Instituto de Medicina Legal de Bolonha, onde eu cursava o último ano de especialização em medicina forense.

              Não sou daquelas que seguem os eventos esportivos, por isso não sabia direito o que estava acontecendo quando me vi presa no trânsito da Via Irnerius, incapaz de chegar ao Instituto. Depois de muito tempo consegui alcançar o portão vigiado pela polícia, que só me deixou entrar quando mostrei minha identidade. Estacionei o carro no lugar de costume, em um pequeno recesso logo atrás do portão de entrada.

              Notei os rostos consternados e as lágrimas de dor. Me lembro, na entrada para o necrotério, de várias pessoas que falavam com uma cadência e uma musicalidade que me trouxeram lembranças doces e nostálgicas da minha juventude. Eles falavam português e tinham a bandeira do Brasil nas mãos.

              A entrada foi inundada com flores, flores em todos os lugares, nunca vi tantas flores juntas, bilhetes, mensagens… Nesse dia, as atividades normais do Instituto foram suspensas e ficamos na varanda observando esse estranho fenômeno que se desenvolvia sob nossos olhos.

              Os dois jovens pilotos estavam na antessala da câmara frigorífica, e pareciam dormir. Senna tinha uma ferida costurada na parte frontal da base do couro cabeludo, mas seu rosto estava sereno e já não apresentava muito inchaço. Ratzenberger era de uma beleza típica do Tirol Austríaco. Um belo rapaz. Senna, o grande campeão. Ratzenberger, o piloto que fazia apenas sua terceira corrida. Ambos apaixonados pela mesma coisa, ambos rapazes que fizeram do risco e da velocidade suas vidas, e que estavam ali na nossa frente para mostrar como a existência é efêmera, a realidade concreta da transitoriedade da vida.

              Com alguns colegas, oramos por suas almas, que agora corriam em direção a outros objetivos e para os seus entes queridos que precisassem de ajuda e conforto. Pegamos algumas rosas e colocamos nas mãos dos jovens pilotos antes do fechamento dos caixões. A rua estava cheia de pessoas que se amontoavam nos portões. E de jornalistas à espera de notícias. Mas não havia muito o que dizer.

              Senna saiu em primeiro lugar, e centenas de pessoas com gritos e aplausos acompanharam o caixão saindo do beco atrás do Instituto. Aplaudiam um grande campeão que perdera a vida na Tamburello, deixando um enorme vazio nos corações de fãs em todo o mundo. No dia seguinte, saiu Ratzenberger. Em silêncio, sem aplausos, lágrimas ou câmeras de TV. Membros de sua família chegaram e nós, do Instituto, o aplaudimos. Aplaudimos o rapaz corajoso que perdeu a vida na busca de um sonho que nunca alcançou. Aplaudimos com todo vigor aquele cuja fama não tinha despertado o clamor do povo.

              Os mortos estão mortos, e eles são todos iguais. Não há desculpas e/ou atenuantes para aqueles que “esqueceram” muito rapidamente que por aquela corrida, naquele circuito, dois jovens rapazes haviam perdido suas vidas. E que estavam viajando juntos na sua última corrida para a linha de chegada.

              Reunimos todos os buquês, colocamos tudo em vários carros e levamos para o cemitério da cidade, que foi inundado de cores, doando uma beleza fúlgida e fugaz, como fora a vida daqueles jovens pilotos, a túmulos desbotados e esquecidos por suas famílias e amigos. Nesse dia, aqueles mortos puderam rever as cores da vida e o fascínio da natureza, num sofrido contraponto à realidade da morte e da dor.

              Li com atenção e solenidade cada palavra da Cris, que escreveu em italiano. Já era madrugada em Zurique, onde ela estava no início desta semana, quando apareceu a bolinha verde na janela de mensagens do Facebook.

              Posso fazer umas perguntas, Cris?, perguntei, depois das amenidades de praxe. “Sim, claro”, ela respondeu em português. Depois, só escreveu em italiano. E eu, sempre em português. Era assim quando éramos adolescentes. Para escrever, não falar. Minha namorada aprendeu português muito rápido. Era uma excelente aluna.

              Cris me contou que a autópsia seguiu os padrões de sempre. “Começamos pelo crânio e depois vai descendo. Não se deve negligenciar nada, mesmo os órgãos aparentemente não atingidos. São retirados os órgãos principais, que são pesados e medidos, e deles retiramos pequenas amostras para análises. Durante uma autópsia, se descreve continuamente tudo que está sendo feito, para que seja gravado e, depois, transcrito.”

              Foi Cristina quem, em 1994, me disse que a base do crânio de Senna tinha inchado de tal forma que ele ficou bastante desfigurado, “a cabeça em forma de pirâmide, com a base larga”. “O que eu me lembro foi que no estudo das meninges cerebrais foram encontradas lesões que lembravam ferimentos típicos de soldados que morreram em conflitos militares por explosões próximas de bombas.”

              Cristina lembrava da roupa com que o corpo de Senna foi vestido: terno preto, gravata cinza e camisa branca, comprados em Bolonha. A cabeça desinchou porque os médicos usaram fármacos para reduzir os edemas cerebrais. Lembrava também que no dia seguinte ao acidente recebera uma ligação de uma seguradora na Suíça pedindo informações sobre a causa mortis. Seu interlocutor acabou cometendo uma indiscrição, revelando que a apólice de seguro de Senna era da casa de US$ 20 milhões.

              Ele morreu na pista?, repeti a pergunta feita 20 anos antes no meu quarto de hotel em Bolonha. A resposta foi exatamente a mesma, a mesma que estaria no primeiro laudo dos legistas, que acabou sendo minha última matéria na “Folha”, porque me demiti depois. “Do ponto de vista jurídico, o conceito de morte não é o que mesmo que se usa em linguagem normal. O que se pode dizer é que as lesões encontradas eram incompatíveis com a vida, e como consequência ele podia ser considerado morto, sim.”

              Fui encontrar a doutora Maria Teresa dez anos depois, em 2004, na penúltima vez em que estive em Ímola. Foi no pequeno prédio na periferia de Bolonha, na Via dei Lamponi. Ela nos atendeu – a mim e Fábio Seixas, colega da “Folha” e da Rádio Bandeirantes — numa segunda-feira ensolarada e luminosa, com aquele céu de um azul pálido e profundo e um ar fresco que, por alguma razão, só se percebe na Emilia-Romagna no começo da primavera. Ela nos recebeu em seu pequeno apartamento com cortesia e gentileza.

              Era uma dívida que tinha comigo mesmo. Na semana do acidente, foi a única pessoa que quis muito entrevistar e não consegui. Foi uma boa conversa, essa com a doutora Fiandri dez anos depois. Mas, curiosamente, meu gravador não funcionou. Tenho problemas com gravadores quando se trata do Senna. Ainda em 1994, eu e o Nilson Cesar, então meu colega de Jovem Pan, fomos à quinta na cidade de Sintra, perto do Estoril, onde estava vivendo Adriane Galisteu. A casa pertencia ao Braguinha, empresário conhecido, ex-presidente do Bradesco, muito amigo de Senna e tal. Adriane ficou lá por meses depois da morte do namorado.

              Foi a primeira vez que a namorada de Ayrton falava após o acidente e fizemos ao vivo, por telefone, durante o programa “São Paulo Agora”, da Pan. Era semana do GP de Portugal. Ficou ótima e está nos arquivos da rádio, possivelmente. Mas eu também resolvi gravar. Coloquei o gravador ali do lado, play e REC ao mesmo tempo, e vamos embora. Quando terminamos, entramos no carro e eu disse ao Nilson: vamos escutar para ver se ficou legal. Coloquei no toca-fitas, estava tudo OK. “Boa tarde ouvintes, estamos aqui em tal lugar etc.”, comecei, e fiz a primeira pergunta, a segunda, e, de repente, silêncio total. Por alguma razão, o bendito gravador parou de gravar. Nunca vou entender essa porra. Fiz todos os testes e estava funcionando direitinho. Mas não gravou a Adriane na quinta de Portugal. Só o começo.

              Com a doutora Fiandri aconteceu algo parecido. Ou o gravador não funcionou, ou apertei o botão errado – era um equipamento mais moderninho, que usava minidiscos digitais, que a gente chamava de MD. Só sei que não gravei. Por sorte, anotei as respostas num bloquinho. E, também curiosamente, elas estavam muito bem registradas na minha cabeça, de forma clara e cristalina, quando sentei para escrever o texto que segue:

              O prédio é idêntico aos milhares que perpassam a paisagem das cidades do norte da Itália: baixo, quatro andares, pintado de bege, numa rua tranquila e arborizada da periferia de Bolonha. Via dei Lamponi, número 1. Ali, no segundo andar, vive a pessoa que avisou ao mundo, há dez anos, que Ayrton Senna não mais vivia. Foi por suas mãos que ele passou ao chegar ao Hospital Maggiore, 32 minutos depois de bater no muro da curva Tamburello, em Imola, a 35 km dali. Foi de sua boca que saiu, após uma agonia de quatro horas, a notícia que abalou as estruturas da Fórmula 1, chocou o mundo e deixou um país dobrado sobre sua própria dor.

              A médica Maria Teresa Fiandri parou de trabalhar no Maggiore em 2001, depois de 36 anos de serviços. Naquele 1º de maio, era a chefe do setor de Anestesia e Reanimação. Como sempre, desde que o circuito passou a receber a Fórmula 1, em 1980, fazia parte das equipes de emergência que poderiam ser chamadas a qualquer momento para atendimento em casos de acidente.

              Naquele 1º de maio, não precisou esperar o bip convocá-la. Quando Senna bateu, ela se levantou, vestiu o jaleco branco e já estava pronta para sair de casa rumo ao hospital quando o piloto mexeu a cabeça pela última vez.

              Fiandri estacionava seu carro no pátio reservado aos médicos do Maggiore quando viu o helicóptero cor-de-laranja se aproximar. Trazia Senna e uma equipe de reanimação que tentava mantê-lo vivo. No helicóptero mesmo ele já havia recebido uma transfusão de 4,5 litros de sangue.

              Ayrton tinha batido na abertura da sétima volta do GP de San Marino, a segunda sem o safety-car na pista. Seu carro, na entrada da Tamburello, guinou para a direita. Ele freou e reduziu marchas, de acordo com a telemetria. O impacto frontal, às 14h12 locais, aconteceu a 216 km/h. A barra da suspensão dianteira direita voltou-se contra o capacete, penetrou a viseira e atingiu sua cabeça pouco acima do olho direito. Ele morreu na hora. “Da pista, o doutor Gordini já tinha me avisado que havia pouco a fazer”, conta Maria Teresa.

              Mas, como todo médico, Maria Teresa Fiandri fez o possível, mesmo sabendo que o quadro era irreversível. “Do ponto de vista cerebral, já não havia mais atividade imediatamente após a batida. Ele chegou ao hospital com o pulso fraquíssimo, quase sem pressão. Mas, depois, voltou ao normal. Só que não havia mais atividade cerebral, era apenas uma questão de tempo para que ele fosse legalmente considerado morto.”

              Maria Teresa Fiandri, cinco filhos, três netos, todos homens, lembra de tudo, em detalhes. Ela diz ter consciência de que participou de um episódio histórico, mas não revela, no tom de voz suave e tranquilo, nenhum tipo de emoção especial, não diferente da que provavelmente teria se relatasse outros casos de pacientes que passaram por suas mãos.

              E guarda, de Senna, uma imagem bem diferente daquela transmitida pelos que viram seu rosto, horas depois do acidente: “Ele chegou a mim pálido, mas belo e sereno”.

              Pergunta – Doutora, em que condições Ayrton chegou aos seus cuidados, logo depois de descer do helicóptero?
              Fiandri – Ele já havia recebido os primeiros socorros na pista e no helicóptero. Estava pálido, mas belo, sereno… Um jovem bonito, com os cabelos revoltos, os olhos fechados. É a imagem que guardo. Tinha um corte na testa, três ou quatro centímetros. Mais nada. Era a única ferida. Chegou ainda de macacão. Mas quando o viramos, vi que tinha muito sangue. E eu me perguntava: “Mas de onde vem tanto sangue?” Saía de trás, da base do crânio. Lembro do macacão, quando lavamos, para devolver à família, tinha tanto sangue… E eu disse à Monica, uma assistente de enfermagem: “Não podemos entregar isso a eles assim”. Mas era colocar na água e a água ficar vermelha.

              Pergunta – Ficou gravada na memória de todos aquele sangue na pista…
              Fiandri – Foi da traqueostomia. O sangue era dele.

              Pergunta – Onde a senhora estava no momento do acidente?
              Fiandri – Em casa, assistindo à corrida pela TV. Quando vi a batida, e a cabeça dele caindo para o lado, já me vesti, antes mesmo de me chamarem. Nem esperei pelo bip. Sabia que seria necessária minha presença no hospital. Eu estava chegando com meu carro quando o helicóptero estava descendo.

              Pergunta – Pela TV, deu para ter ideia da gravidade?
              Fiandri – Pelo movimento da cabeça, eu concluí na hora que era algo muito grave. Ali ele já entrava em coma, mas o coma é um fenômeno muito estranho. Por isso foi só quando vimos o resultado da tomografia que tive certeza de que não havia nada a fazer, embora o doutor Gordini [Giovanni Gordini, que o atendeu na pista] já tivesse me avisado que não tinha volta. Aí fizemos um eletroencefalograma. Já não havia mais atividade elétrica. Quando ele chegou, o pulso estava fraquíssimo e quase sem pressão. Mas antes do eletro, tinha voltado tudo ao normal. Por isso, até ver a tomografia, quem sabe… Mas quando vimos, todos nós… Bem, aqui não há nada a fazer.

              Pergunta – Já no hospital, como a notícia foi dada àqueles que estavam no 12º andar?
              Fiandri – Eu me lembro de seu irmão, não sei se ele tinha noção da gravidade da situação. Eu o levei para ver os resultados dos exames. Expliquei que já não havia mais atividade elétrica. Mas quem assumiu o controle de tudo foi uma moça, que parecia tomar as decisões naquele momento [ela se refere a Betise Assumpção, então assessora de imprensa de Senna, que depois se casaria com Patrick Head, um dos sócios da Williams].

              Pergunta – A senhora tinha a percepção de que participava, de certa forma, de um momento histórico?
              Fiandri – Tinha. Mas, mesmo assim, nessas horas você deixa isso de lado e segue os protocolos precisos de atendimento. A, B, C, D, todos os procedimentos. Isso ajuda a vencer a emoção. Alguns anos antes, houve um acidente de trem em Bolonha, e as primeiras vítimas que chegaram ao hospital eram crianças de 3, 4, 5 anos. Aí a disciplina é importante, senão você não faz nada. Eu fui para um canto e chorei por 30 segundos. “Agora chega”, disse. “Ao trabalho”. Com Senna, não chorei. Segurei a emoção. É uma forma de disciplina. Estávamos todos emocionados, mas isso não condicionou nosso trabalho.

              Pergunta – Houve alguma chance de sobrevivência?
              Fiandri – Não. Quando vimos o resultado do eletro… Bem, pela lei ele não estava morto, era preciso esperar o coração parar de bater. Mas não, não havia nenhuma esperança. Foi imediata a profundidade do coma na batida.

              Pergunta – A senhora se lembra se dormiu naquela noite?
              Fiandri – Em dias como aquele não se dorme sem umas 20 gotas de Valium… Era um jovem, um piloto, ele em particular, um pouco herói, carismático… Eu recebi muitas cartas do Brasil, de gente me perguntando se ele tinha recuperado a consciência… As pessoas tinham necessidade de saber algo.

              Pergunta – A senhora é religiosa?
              Fiandri – Não praticante. Mas penso em Deus, e isso ajuda. Depois vim a saber que ele era assim. Sabe, me parece que ele sempre achou que iria morrer jovem. “Morre jovem quem ao céu é caro”, dizem os mais antigos. Talvez se envelhecesse, não teria havido essa comoção. Ele deixou uma história que não deixaria se envelhecesse. É só uma opinião, mas eu acho que se ele pudesse escolher entre morrer jovem e envelhecer… Acho que pagaria esse preço.

              Passaram-se dez anos entre aquela segunda-feira em Bolonha, quando tentava de alguma forma um contato com a médica que recebeu Ayrton Senna no Hospital Maggiore, e a publicação dessa entrevista, que ficou restrita a alguns jornais menores do interior do Brasil para quem eu escrevia em 2004. Era a entrevista que eu queria publicar na “Folha” depois do acidente, mas não tive tempo.

              Na terça-feira, 3 de maio, às 17h15, um carro fúnebre Mercedes-Benz deixou o Instituto Médico Legal da cidade rumo ao aeroporto, a 8 km de distância, carregando o caixão com o corpo de Senna coberto com uma bandeira do Brasil. Cerca de duas mil pessoas se aglomeravam na rua e aplaudiram o féretro, atirando flores sobre o carro. Um veículo dos carabinieri, a polícia italiana, fazia a escolta. O consulado brasileiro em Milão agiu junto à Justiça local para a liberação do corpo. Todos os documentos foram expedidos, segundo os diplomatas, “com a maior boa vontade por parte dos italianos” — atestado de óbito (emitido pelo hospital), autorização para transporte do corpo, laudo preliminar do IML com a causa mortis e passaporte mortuário.

              Às 18h o carro fúnebre chegou ao aeroporto de Bolonha, onde já o aguardava um bimotor da Força Aérea Italiana. A decolagem aconteceu às 18h18 rumo a Paris. De novo uma multidão, no terraço do terminal, aplaudiu o piloto. Na capital francesa, o corpo de Senna foi transferido para um MD-11 da Varig, matrícula PP-VOQ, que deixou o aeroporto internacional Charles de Gaulle às 23h20 locais rumo ao Brasil, no voo RG723. O avião teve os assentos da fileira central da classe Executiva retirados para que ali fosse acomodado o esquife. Com Senna, na Executiva, viajaram apenas Galvão Bueno, a assessora Betise Assumpção, o executivo da Senna Licensing Celso Lemos e o fisioterapeuta e amigo Joseph Leberer. A área foi isolada com cortinas e quem tinha passagem para aquele setor foi transferido para a Primeira Classe. Havia 103 passageiros a bordo.

              Telefonei à noite para o jornal para confirmar que no dia seguinte voltaria ao Brasil. O velório aconteceria durante toda a quarta-feira e o enterro estava marcado para a quinta, 5 de maio. Alguém, já não lembro quem, me informou que não, eu não deveria voltar, e que a ordem era permanecer na Itália para acompanhar o inquérito sobre o acidente. Argumentei que aquilo não fazia muito sentido porque um processo daqueles levaria anos até que se chegasse a alguma conclusão, que o jornal tinha correspondente no país para seguir o desenrolar dos fatos e que minha presença no funeral seria importante para ajudar na cobertura. Mas a posição da Secretaria de Redação era irredutível. “Nós decidimos e você fica”, me falou o interlocutor – ou interlocutora. Endureci e respondi que quem decidia o que fazer da minha vida era eu, e não o jornal. Comuniquei que iria voltar, pedi demissão e desliguei o telefone. Fui dormir, depois de várias noites com pouquíssimas horas de sono. Antes, pedi à recepção do hotel que não me passasse mais nenhuma ligação para o quarto.

              Na manhã seguinte, enquanto fechava a conta, me entregaram algumas papeletas registrando telefonemas recebidos durante a madrugada. Peguei meu carro, um Fiat Punto cor-de-vinho, e fui para o aeroporto. Mario Andrada e Silva estava comigo. Ele tomaria um voo para Pisa e, depois, voltaria a Londres, onde estava sediado como correspondente do “Jornal do Brasil”. Eu seguiria de carro para Milão e, na sequência, embarcaria no aeroporto de Linate para Madri – naquele ano, a “Folha” fechou uma parceria com a Iberia e todas minhas viagens passavam pela capital espanhola. Hospedei-me no Tryp Hotel da Gran Via, centro da cidade, liguei para meu editor, Melchíades Filho, e avisei que estava demissionário, caso ele ainda não soubesse. Depois fui ao cinema assistir ao filme “Proposta indecente”, com Demi Moore e Robert Redford. Embarquei na quinta de manhã em Barajas e cheguei a São Paulo na noite do mesmo dia. Senna já tinha sido enterrado, depois de um velório que durara mais de 22 horas e fora visitado por cerca de 240 mil pessoas no salão nobre da Assembleia Legislativa do Estado.

              Na sexta, dia 5, fui ao jornal formalizar minha saída. Nem todos sabiam que tinha me demitido, e quando cheguei à editoria de Esporte para me despedir, o editor-assistente que fechava a edição, Júlio Veríssimo, apertado com o horário, me entregou um pedaço de papel e falou: “Anãozinho, corre que estamos fechando!”. O papel era a retranca que indicava o tamanho em centímetros da coluna “Warm Up” para ser publicada no sábado, contendo também as informações sobre a medida do título, as dimensões da fotografia que ilustraria o artigo e o espaço na página onde o texto deveria ser publicado.

              Essa coluna nunca foi escrita, e na segunda-feira seguinte, 9 de maio de 1994, fui oficialmente desligado da “Folha” por insubordinação. Perdi os dois GPs seguintes, em Mônaco e Barcelona, mas na corrida do Canadá já estava de volta, enviado a Montreal pela Rádio Jovem Pan – com quem já colaborava como comentarista desde o início da temporada.

              Nas semanas que se seguiram à saída da “Folha”, decidi ficar em casa vendo os jogos da Copa dos EUA pela TV e esperando convites para trabalhar em algum outro lugar. Afinal, já tinha um nome no mercado e certamente alguém me ofereceria um emprego. Não recebi convite algum. Fiz apenas alguns “frilas”, um deles para a revista “Carta”, criada pelo histórico jornalista Mino Carta – publicação inicialmente mensal que, depois, se transformaria na semanal “CartaCapital”. Era uma pauta meio ridícula sobre o que um dos editores da revista entendia ser uma explosão de interesse dos brasileiros pelo golfe, um esporte de elite que, na cabeça dele, estava se popularizando no país. Mas pagaram bem, US$ 800, e gostaram da matéria. Na porta do campo de golfe onde fui entrevistar alguns jogadores estava acontecendo uma manifestação do MST, e foi com isso que abri o texto – que no fim das contas não registrava explosão nenhuma de interesse por golfe no Brasil.

              Um dia, em agosto, me liga Ricardo Tedeschi, ex-empresário de Barrichello, amigo de autódromos pelo mundo. Queria almoçar comigo. Já com as contas apertando o calo, vivendo de “frilas” e ganhando uns trocos da Jovem Pan, fui ver o que ele queria. O almoço foi no In Città, restaurante dele num flat do Itaim-Bibi, bairro chique de São Paulo. Ricardo estava tocando uma equipe de Fórmula Chevrolet e precisava de um assessor de imprensa. E ajudava também a cuidar das carreiras de alguns meninos, como Tony Kanaan e Cristiano da Mata. Mas eu não queria ser assessor de imprensa de equipe nenhuma, muito menos de pilotos.

              Então, me deu um estalo. Antes mesmo de irmos para a mesa, em meio a amendoins e um suco de tomate na área de espera do restaurante, tive uma ideia repentina. O Ricardo era um cara bem relacionado, conhecia muita gente de empresas ligadas ao automobilismo, patrocinadores de pilotos e equipes, e propus a ele, sem ter a menor noção de que poderia dar certo, a criação de uma agência de notícias. O quê? “Sim, uma agência de notícias de Fórmula 1”, falei. “Olha só: eu vou continuar viajando pela rádio, só quatro jornais têm repórteres cobrindo Fórmula 1, a ‘Folha’, o ‘Estadão’, ‘O Globo’ e o ‘JB’. Vamos oferecer minha cobertura para todos os outros. De graça. A gente só pede um rodapé da página em quatro edições por GP. Quando tivermos uma rede com um monte de jornais e uma tiragem enorme, você vai à luta, arruma um patrocinador para ocupar esses espaços de anúncios e a gente racha a grana.”

              Tedeschi gostou. “Vem trabalhar no meu escritório”, convidou, e alguns dias depois lá estava eu numa mesa dividindo a sala com ele no último andar de um lindo e modernoso prédio na esquina das ruas Joaquim Floriano e Bandeira Paulista. Meu primeiro investimento foi um computador, um IBM Aptiva 486 financiado pelo ABN-Amro Bank. Comprei também o anuário do “Meio & Mensagem” com endereços, telefones e fax de todos os jornais do Brasil. E uma caixa de etiquetas adesivas, mais um programinha em disquete para imprimir endereços nelas. Estávamos em 1994. Não existiam e-mails nem internet. Mandei rodar numa gráfica uma mala-direta. O folheto, impresso em duas cores – preto e vermelho –, anunciava a criação da agência de notícias “Warm Up Motorsports Coverage”, do famoso jornalista Flavio Gomes, que oferecia a cobertura do Mundial de Fórmula 1 de 1995 sem custo algum, apenas com a destinação de espaços para anúncios nos jornais. E acrescentava: com exclusividade para a cidade onde cada jornal era publicado. Junto com o panfleto seguia um modelo de carta de intenção, que deveria ser preenchida, assinada e enviada por fax para a sede da nova empresa jornalística em São Paulo.

              No dia 27 de setembro de 1994 fui a uma agência dos Correios na avenida Brigadeiro Luís Antônio com uma caixa de papelão no porta-malas do meu Twingo vermelho – meu primeiro carro zero quilômetro, que tinha comprado na semana do GP de San Marino em que Senna morreu. Dentro dela, mais de três centenas de envelopes fechados e etiquetados. Naquele dia, os Correios enviaram minha mala-direta para mais de 300 jornais do país inteiro, e fiquei esperando as respostas. Todo mundo ia querer Fórmula 1 de graça, como não? Ainda mais uma cobertura feita por Flavio Gomes, o grande Flavio Gomes, da “Folha” e da Jovem Pan.

              Menos de cinco jornais se interessaram. O primeiro deles foi o “Diário de Votuporanga”, pequena cidade no extremo noroeste de São Paulo, o primeiro a topar a cobertura da agência de notícias “Warm Up” – que era o mesmo nome da coluna que eu tinha na “Folha” até ser demitido, nome sugerido pela jornalista Alessandra Alves. Mais dois responderam em seguida: “O Paraná”, de Cascavel, e o “Diário Popular”, de Pelotas.

              Mas a gente precisava de mais, muito mais, para poder oferecer a um patrocinador que o Ricardo teria de encontrar. E então foram meses pendurado no telefone, ligando de um em um. Comprei um mapa do Brasil, mandei emoldurar, e pendurei na parede do escritório. O primeiro alfinete foi espetado em Votuporanga. Os dois seguintes, em Cascavel e Pelotas. A cada telefonema, uma alegria ou uma decepção. Sim, queremos. Não, obrigado. Manda a mala-direta de novo, aqui não chegou. E os alfinetes de cabeça vermelha começando a se espalhar pelo mapa… Umuarama, “Umuarama Ilustrado”. Campinas, “Diário do Povo”. Santo André, “Diário do Grande ABC”. Belo Horizonte, “O Tempo”. Curitiba, “O Estado do Paraná”. Jaú, “Comércio do Jahu”. Araraquara, “Tribuna Impressa”. Petrópolis. Teresópolis. Maceió. Salvador. Vitória. João Pessoa. Macapá. Goiânia. Passo Fundo. Joinville. Itatiba. Campina Grande. Brasília. Cuiabá. Macapá. No final do ano, eram 55 jornais formando a rede “Warm Up”, mais de três milhões de exemplares diários, sete milhões de leitores, agora vai ser fácil vender.

              Enquanto Ricardo saía a campo atrás de um patrocinador, eu começava a me preocupar em como mandar matérias para toda aquela gente direto dos autódromos. Telex não se usava mais. Fax era a única opção, porque nenhum jornal tinha computadores em rede capazes de receber arquivos de texto. No mesmo andar do nosso escritório havia uma pequena empresa de tecnologia. Conversando com o vizinho, ele me indicou outra firma, de um amigo, que poderia criar alguma solução para essa comunicação autódromos-redações. Ao mesmo tempo, escrevia para todas as equipes pedindo tudo que elas pudessem me mandar de fotos em grande quantidade, para que eu enviasse aos jornais como parte do acordo editorial — textos e fotos, era o prometido. E chegavam pacotes e mais pacotes de cromos, fotos em papel, coloridas, preto & brancas, e eu ia mandando tudo para os jornais, gastando os tubos com correio. E com telefone.

              Fui à empresa indicada. Ficava perto da PUC e se chamava ProdutoBrasil. José Otávio era o dono, louco por Fórmula 1 e pela Ferrari. Prestava serviços para a Microsoft, seu escritório era cheio de computadores e eu não entendia nada do que acontecia lá dentro. Uma confusão dos diabos, monitores e cabos por todos os lados, e o fiel escudeiro Alexander sempre pronto para resolver qualquer pepino a qualquer hora do dia, da noite e da madrugada. Expliquei o que precisava. Zé bolou um esquema maluco. Eu mandaria meus textos conectando a uma linha telefônica o laptop que tinha comprado meses antes, da marca Leading Edge, usando um programinha de fax. Esses textos chegariam a um outro computador no Brasil, que distribuiria tudo por outras quatro linhas telefônicas que, automaticamente, discariam para os números de fax dos jornais. E, assim, mandariam o material para eles. Mas ia custar caro. Era tudo interurbano, afinal. OK, vamos nessa.

              Jornais fechados, esquema de transmissão definido, faltava o principal: um patrocinador. Nosso cálculo era de faturar trinta mil reais por mês, para que pudéssemos rachar o lucro e pagar as despesas. E o tempo passando, e a economia derrapando, e no fim das contas o Ricardo não conseguiu vender. Eu estava estrepado. Cinquenta e cinco jornais tinham contratado minha agência e eu não tinha um centavo para bancar a operação. Minha carreira tinha acabado.

              Mas sempre tem um jeito. E aos 44 do segundo tempo, eu mesmo consegui um patrocinador. Um santo, na verdade: ele se chamava Beto, e era o dono das Antenas Santa Rita. Sua empresa era a maior fabricante de antenas parabólicas do Brasil, e ele patrocinava até o Rubinho na Jordan. Beto era doido por corridas, gostou da ideia dos anúncios em jornais, e acabamos fechando o patrocínio em oito mil reais por mês. Daria para pagar as despesas de transmissão, não mais do que isso. Mas era um começo. Mandamos fazer os anúncios, tudo em fotolito e três tamanhos, e tome correio de novo, as peças enviadas em envelopes enormes, uma empresa de clipagem contratada para que eu pudesse mostrar os anúncios publicados ao Beto, e assim nasceu a “Warm Up”.

              Em 1995, a cobertura de FÓRMULA 1 em 55 jornais brasileiros foi patrocinada pela Antenas Santa Rita. No ano seguinte, já com 62 jornais, consegui, com a ajuda do radialista Milton Neves, vender o patrocínio para a cervejaria Schincariol. A Pan me contratou com carteira assinada, e aluguei uma salinha no mesmo prédio da rádio, na avenida Paulista. E visitava empresas, e vendia publicidade, e comecei a apresentar um jornal diário na rádio, e viajava, e me virava. Em 1996, o Zé Otávio, da ProdutoBrasil, desenvolveu um novo sistema de transmissão, por BBS: os arquivos eram enviados por mim para um computador e os jornais que começavam a se informatizar pegavam os textos direto do servidor fazendo apenas uma ligação local, sem precisar de fax.

              No ano seguinte vendi o patrocínio da cobertura para a Credicard, e lembro muito bem quando eles me mandaram um fax para Monza fechando  o contrato para 1997. Eu nem acreditava. Chorei sozinho no terraço da sala de imprensa do autódromo italiano. Ao mesmo tempo surgia o diário “Lance!”, um jornal esportivo ambicioso com sedes no Rio e em São Paulo, para quem cobri as corridas até 2010. Logo veio a internet em seus primórdios, e Zé Otávio criou o site www.warmup.com.br, onde a gente republicava meus textos com um ou dois dias de atraso para não “furar” os jornais. E depois vieram os e-mails, parei de gastar com fax e interurbanos, e depois fechei com a Sonax, patrocinadora da Williams, eu mesmo vendi, era incrível, e em 1999 veio a Petrobras, e depois a Elf, a VW Caminhões, a Repsol…

              E no final de 1999 nasceu o site “Grande Prêmio”. A internet estava começando a bombar, surgiam portais e sites a cada minuto, e um de meus ex-chefes na “Folha”, Matinas Suzuki Jr., me chamou para fazer um site de automobilismo para o iG, um portal novo que revolucionaria a internet dando acesso de graça aos usuários — que, naqueles tempos, tinham de pagar taxas mensais a provedores para ter uma assinatura e uma conexão à rede.

              Para tocar o site, que estrearia junto com o iG no comecinho de 2000, chamei um menino, Tales Torraga, que conhecera uns anos antes quando fui dar uma palestra numa faculdade de Mogi das Cruzes. Ele era maluco por Fórmula 1, conhecia tudo, um pequeno gênio que resolveu fazer jornalismo por minha causa. Contratei também outro moleque, Everaldo Marques, que me ajudava a produzir o Fórmula Jovem Pan na rádio. Escrevíamos o dia todo, notas e mais notas, e eu viajava para os GPs, e apresentava a “Hora da Verdade”, e comentava as corridas, e também fazia reportagens, dezenas de boletins diários, entrevistas, gravações…

              Em 2003, a internet já era meu maior negócio e os jornais foram diminuindo. Ainda assim, fiquei com alguns deles até 2011, quando já não havia patrocinador nenhum para a cobertura no impresso e os poucos que sobraram me pagavam um pouquinho por mês para receber textos, fotos e colunas. Pouco antes, no fim de 2001, saí da Pan e fui para a Rádio Bandeirantes, onde fiquei até o fim de 2005. No mesmo ano, passei a fazer TV também, na ESPN Brasil. Nesse meio tempo, vivemos uma baita crise na internet, entre 2002 e 2005, quando o dinheiro do iG simplesmente acabou. Nosso modelo de venda de conteúdo foi para o brejo, me endividei, mas mantive o “Grande Prêmio” no ar, consegui não mandar ninguém embora, acreditando piamente que um dia o jogo iria virar de novo — a internet era o único caminho possível para o jornalismo que a gente queria fazer. Virou, a grana voltou, e ficamos no iG até o início de 2012, quando nos tornamos parceiros do MSN, depois do UOL, depois do Terra, e em 2016 passei o negócio para meus funcionários, já que meu novo trabalho em TV, agora no Fox Sports, me tomava tempo demais.

              Fizemos muita coisa nesse tempo todo. Programas de vídeo no começo dos anos 2000, quando não havia banda larga. Revista impressa. Jornal para distribuir no autódromo. Podcast. Revista eletrônica. Livro com as colunas “Diários de Viagem” – “O Boto do Reno”, cuja primeira edição foi publicada em 2005. Coberturas in loco maravilhosas, na contramão da maioria que fica sentada no sofá. Viajamos o mundo, fomos a todos os autódromos do Brasil, denunciamos casos de doping, de desvio de dinheiro público, de desmandos na cúpula do esporte, compramos brigas, fomos processados, passamos a ser odiados por alguns, admirados por outros, mas sobretudo, e acho que é o que mais importa, respeitados como uma empresa que fazia jornalismo de verdade.

              Quando olho para trás, dou uma folheada na histórica “A Patada Quadrada”, no robusto “São Paulo Agora”, reviro minhas pastas com recortes de jornais arquivados, vejo meus antigos álbuns de fotos, tento organizar centenas de credenciais de corridas, Copas do Mundo e Olimpíadas, percebo que uma história foi escrita. E tenho orgulho dela.

              Lembro com carinho dos primeiros passos no “Popular da Tarde”, da insegurança a cada entrevista gravada com cientistas para a SBPC, do espanto ao entrar na Redação da “Folha” no quarto andar do prédio de pastilhas da Barão de Limeira, da breve passagem por “Placar” atrás de um sonho de criança, da primeira corrida em Jacarepaguá, das primeiras viagens para a Europa, da timidez diante dos microfones de rádio e das câmeras de TV. E gosto de quem sempre fui.

              Cada segundo nessa vida maluca valeu. O jornalismo é um belo ofício. Foi ele, afinal, que me deu a chance de ver o mundo. E de contar aos outros o que vi. Porque, no fundo, é o que somos, os jornalistas: contadores de histórias.

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    FOTO DO DIA

    SÃO PAULO – 30 de abril de 1994. Se forçarem a vista, no canto inferior direito da foto tem a data. As máquinas fotográficas mais modernas — como a linda Canon que eu tinha (ainda tenho), comprada três anos antes em Nevers, num GP da França — registravam as datas. Eu achava muito chique, isso.

    Poucas horas antes, o “press officer” da FIA (trabalhou na Ford depois, como era o nome dele mesmo? Martin Whitaker!) anunciou na sala de imprensa que Roland Ratzenberger havia morrido ao dar entrada no Hospital Maggiore, em Bolonha.

    Pela luz da foto, dá para perceber que o sol estava se pondo em Ímola. Tinha terminado meu trabalho, fui dar uma volta pelo paddock. Passei atrás dos boxes da Simtek e tirei a fotografia. A única daquele dia. Revelar filme era caro.

    No dia seguinte, com as rodas bem lavadas, David Brabham, companheiro do austríaco na equipe estreante, foi para o grid na 24ª posição. Depois de 27 voltas, rodou e abandonou.

    Corridas são assim. Não dá muito tempo de parar pra pensar.

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    CHEGA DE MADRUGADA!

    Seguem os horários do GP de Miami pra vocês se programarem.

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    FUSCA DO DIA

    Força, Mujica!

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    Blog do Flavio Gomes
    no Youtube
    1:54:35

    ÍMOLA, 1994 (BEM, MERDINHAS #159)

    Barrichello na sexta, Ratzenberger no sábado, Senna no domingo. No programa de hoje, lembranças de Ímola, 1994. As lições daquela corrida, a tristeza das mortes e os detalhes da cobertura jornal�...

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    MERCEDES VAI PRA CIMA DE VERSTAPPEN (RÁDIO GOMES, 26/4/24)

    Agora a coisa ficou séria. A imprensa alemã avisa que Max Verstappen e a Mercedes vão se reunir depois do GP de Miami para falar sério sobre o futuro. Em crise interna, apesar dos resultados espl�...